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Pedagogia das competências

Tudo começou quando a indústria percebeu que o trabalhador seria mais produtivo se tivesse autonomia para organizar seu próprio processo de trabalho. Do ‘apertador de parafusos’ controlado de perto por um supervisor, ele passou a ser o membro de uma equipe, que trabalha em grupo e é reconhecido (leia-se remunerado) não pelo seu posto ou pelos seus títulos, mas pela sua capacidade de resolver problemas. Em outras palavras, pelas suas competências.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2010 16h50 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

No ambiente da produção, essa idéia de competências orientou uma mudança no modelo de gestão do trabalho . Só que elas foram além da fábrica: invadiram a escola e se tornaram pedagogia.

O processo original é mais ou menos assim: identifica-se um trabalhador ‘exemplar’, observa-se e faz-se uma lista das competências que lhe permitem enfrentar, com sucesso, as situações de trabalho. A partir daí, listam-se essas competências como aquilo que o trabalhador deve ter para desempenhar determinada função. E é aí que entra a escola, com o papel de ensinar os conteúdos que o meio produtivo elegeu como importantes. Esse pragmatismo, que de acordo com a descrição de Marise naturaliza a realidade da produção e reduz o papel da educação a uma adequação ao mercado, resulta na pedagogia das competências. “As competências são, hoje, o desdobramento de uma matriz liberal que defende que a educação deve ser adequada às necessidades da economia, voltada para a produtividade e a racionalidade econômica: uma educação para adaptar, dar ao trabalhador uma ‘sociabilidade fabril’”, resume Neise Deluiz, também professora-pesquisadora da EPSJV e estudiosa do tema.

Na legislação

E o que aconteceu foi que as competências viraram ‘lei’. Começando a influenciar as idéias educacionais do país na década de 1990, a pedagogia das competências foi formalmente introduzida na educação brasileira pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico, instituídas pela Resolução CEB nº 4, de 8 de dezembro de 1999, e, no ano seguinte, pelos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico. O Parecer 16/1999, que subsidia as Diretrizes Curriculares, define competências como “capacidade de articular, mobilizar e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”.

Todo esse movimento, no entanto, faz parte, do que Marise aponta como um conjunto de reformas pelas quais esse segmento da educação passou desde a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996 e, mais especificamente, desde o Decreto 2.208, de 1997, que impôs a separação entre ensino médio (formação geral) e ensino técnico (formação para o trabalho).

Na educação básica, onde as competências não têm tanta força quanto na educação profissional, o Brasil criou, na avaliação de Marise, um híbrido. Isso porque as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, embora prevejam a aquisição de competências e habilidades, organizam esse conteúdo por áreas de conhecimento: ciências humanas, ciências da natureza etc. “Elas não são totalmente instrumentais porque trabalham mais com um tipo de competência ‘cognitiva’, associada a um campo científico, do que com competências comportamentais. O resultado não deixa de ser interessante”, analisa.

Currículo: ensinar competências?

Referindo-se àquele trabalhador exemplar lá do começo do texto, Marise pondera: “O que não se percebe é que esse sujeito é competente exatamente porque tem autonomia diante da situação e usa suas especificidades, sua subjetividade. Quando você tenta transferir isso para outro, não funciona porque a competência depende da singularidade daquele que a usa”. No que diz respeito à educação, isso quer dizer, segundo ela, que competências são individuais, não são objetiváveis e, portanto, não é papel da escola elencar as competências que um aluno deve demonstrar no final do curso, como prega essa ‘nova’ pedagogia.

No currículo, a principal mudança trazida pela pedagogia das competências está na forma como se selecionam os conteúdos. “A tradição disciplinar do currículo tem a ciência como campo de referência, ou seja, a escola busca reconstruir os saberes científicos (da matemática, da história etc) como saberes escolares, organizados em disciplinas. No currículo por competências, a referência passam a ser os comportamentos esperados das pessoas no enfrentamento de um conjunto de situações da vida e do trabalho”, explica. E ilustra: “Na pedagogia das competências, o currículo é montado a partir da resposta às seguintes perguntas: ‘que situações os sujeitos vão enfrentar no trabalho? Que comportamentos precisam ter diante dessas situações? Que conceitos precisam aprender para ter esse comportamento?’. O resultado são conteúdos instrumentais”.

Mas é exatamente nessa fórmula que está a grande promessa da pedagogia das competências – e a razão pela qual ela foi tão acolhida, tornando-se inclusive obrigatória em diversos países, como o Brasil. Por fazerem um forte apelo à vinculação da formação ao mundo da vida e valorizarem a experiência dos alunos, as competências se anunciam como uma alternativa ao currículo dito ‘tradicional’, criticado por ser conteudista e não estabelecer relação entre os conhecimentos escolares e a realidade. Marise concorda com a crítica, mas garante que a pedagogia das competências é uma falsa solução. “Porque ela tenta resolver esse problema pela lógica do pragmatismo, segundo a qual só serve para ser ensinado o que é útil. E o pior é que, nesse caso, a ‘utilidade’ está dada pela demanda da produção e não da escola”, explica. Neise concorda e complementa: “Isso fez com que o aluno ficasse também muito imediatista: ele vai à escola para se preparar para o mercado de trabalho e acha que não precisa ganhar ‘moedas’ (conteúdos) que não tenham valor de troca nesse mercado”.

Para Marise, a raiz do problema está no fato de que a “instrumentalização” dos conteúdos feita pela pedagogia das competências é incompatível com a defesa de que o acesso ao conhecimento construído socialmente pela ciência deve ser universal. “Como a elite e as classes populares ‘enfrentam’ situações diferentes, pela lógica das competências, determinados conhecimentos serão fundamentais para a elite e considerados desnecessários para os trabalhadores. Indo ao extremo dessa análise, podemos dizer que o povo não precisaria, por exemplo, aprender conceitos ligados à semiótica, que, por outro lado, são importantes para permitir à elite apreciar uma obra de arte”, comenta. Ela lembra que essa é a mesma questão presente na luta pela não separação entre educação profissional e formação geral. “A lógica é igual: por que ensinar ciências básicas a um técnico de enfermagem, se já existe uma lista das situações que ele vai enfrentar e outra das competências e conteúdos que ele precisa para isso?”, exemplifica, apontando o caráter tecnicista desse raciocínio. “A pedagogia das competências se concentra nas situações que o sujeito vai enfrentar. Numa lógica mais histórico-crítica, nós olhamos para os problemas que a sociedade viveu, vive ou poderá viver. A perspectiva de enfrentamento de problemas também está presente, só que não são as questões individuais e cotidianas, e sim os problemas sociais. Porque esse é o papel da educação”, completa.

Novidade?

Neise destaca que a pedagogia das competências traz algumas propostas bem interessantes como, por exemplo, o foco na interdisciplinaridade, o trabalho em grupo e com projetos. A questão é que, segundo ela, nada disso é novidade. “Tudo isso também sempre foi importante para nós, que lidamos com uma perspectiva crítica e integrada de educação”, diz. Retirar o foco que uma educação ‘tradicional’ coloca apenas sobre o professor também é um ganho na pedagogia das competências, de acordo com Neise. Mas o problema, diz, é que cai no outro extremo, defendendo que não é o professor que ensina, mas sim o aluno que aprende. “O aluno aprende, mas o professor facilita essa aprendizagem. O foco precisa estar na relação entre os dois””, opina.

Na verdade, segundo Marise, pouca coisa é completamente nova na pedagogia das competências. Como especificidade, ela tem essa associação de mudanças na educação e no modelo de produção, já que surge na fábrica. Mas, pensando na escola, ela tem antecedentes na chamada ‘pedagogia dos objetivos’, que data da década de 1960. Segundo a pesquisadora, tratava-se de uma descrição “interminável” de objetivos a serem atingidos. “A diferença é que eram objetivos colocados para o processo de ensino. Quando isso é traduzido, tantos anos mais tarde, em competências, quem passa a ter que atingir o objetivo é o sujeito”, compara.

Criticada pelo tecnicismo e pela dificuldade de efetivação das suas propostas, essa pedagogia perdeu importância e ficou para trás. Mas, independentemente desse caráter prescritivo, Marise acha importante lembrar que sempre foi objetivo da escola desenvolver competências. “Só que elas não eram a referência nem o ponto de partida e sim resultado – subjetivo – do processo de aprendizagem. A apropriação dos conceitos científicos pelos alunos desenvolverá competências, obviamente. O problema é fazer delas uma trilha, por vezes linear, a ser seguida pelo aluno e pela escola”, conclui.