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Supremo Tribunal Federal

O que é, o que faz e quais os principais dilemas do STF no Brasil
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 24/01/2017 14h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Já era a noite do dia 29 de novembro de 2016 quando os jornais divulgaram uma decisão do STF que “abria brecha” para a descriminalização do aborto realizado até o terceiro mês de gravidez. Mal começava a madrugada do dia 30 quando uma nova notícia foi anunciada: o presidente da Câmara dos Deputados instalou uma comissão para rever essa decisão. “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Rodrigo Maia (DEM-RJ), abrindo mais um capítulo de uma relação que tem se tornado cada vez mais tensa entre os poderes da República. E no centro desse debate está o papel do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro.

Não é um caso isolado. Em 2011, por exemplo, o Supremo experimentou polêmica parecida, quando reconheceu a união estável entre homossexuais. Neste exato momento, aguardam apreciação da Corte temas como os limites da judicialização da saúde – definindo as situações em que um usuário pode reivindicar medicamento ou tratamento na justiça – e a abrangência da terceirização do trabalho.

O STF é composto por 11 ministros indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado. Devem ter idade entre 35 e 65 anos, “notável saber jurídico” e reputação ilibada”. O cargo é vitalício.

Para que serve?

O julgamento de “infrações penais comuns” cometidas por pessoas com foro privilegiado – como presidente e vice-presidente da república, parlamentares e procurador-geral – é de responsabilidade exclusiva do Supremo – daí a polêmica sobre as gravações de conversas telefônicas envolvendo a ex-presidente Dilma Rousseff, autorizadas pelo juiz Sergio Moro na Operação Lava Jato. Conflitos entre os entes federados e entre estes e outro país ou organismo internacional, além da extradição de estrangeiros, também são julgados pelo Supremo. Mas a Constituição também atribui ao STF o papel de “processar e julgar” demandas apresentadas por integrantes dos outros poderes e da sociedade civil organizada sobre qualquer tema, desde que se refiram a questões constitucionais. Isso se dá por meio das chamadas Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), que ‘provocam’ o Supremo a se manifestar sobre a constitucionalidade ou não de uma lei ou ato normativo.

Pelo menos três assuntos que ganharam destaque em 2016 foram objeto de ações como essas. Mais recentemente, o Psol apresentou uma ADI, ainda não julgada, contra a Medida Provisória 746, que institui a reforma do ensino médio. Durante as eleições municipais, a mesma legenda protagonizou outra batalha contra uma lei que, entre outras coisas, estabelecia que candidatos de partido com menos de dez deputados não precisariam ser convidados para os debates. Esse é o exemplo de um caso em que a decisão do Supremo – favorável à ADI – invalidou parte de uma lei aprovada no legislativo, por considerar que ela feria a Constituição Federal. Também em 2016, o indeferimento de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44) gerou uma das maiores controvérsias jurídicas em relação a decisões do Supremo. A demanda era por uma orientação do STF de que as penas só podem ser aplicadas depois do julgamento em segunda instância. A Corte negou, criando o que, para os críticos da decisão, representa o fim da presunção de inocência no Brasil. E o julgamento de ADI e ADC tem “efeito vinculante”, o que significa que deve ser seguido por todos os juízes e tribunais do país.

Formalmente, o STF pode também declarar a “repercussão geral” de alguns casos julgados. Mas, mesmo fora dessas situações, tradicionalmente as decisões do Supremo  acabam se tornando referência. É a essa ‘tradição’ que as manchetes dos jornais se referiam quando anunciavam a “brecha” aberta pela decisão relativa ao aborto.

Nesse caso, a ‘provocação’ veio ‘subindo’, a partir de uma ação judicial – um pedido de habeas corpus para profissionais de uma clínica clandestina de aborto - iniciada num tribunal do Rio de Janeiro, até chegar ao STF. Isso é possível quando, em algum momento do processo, uma das partes alega que a decisão envolvia uma “matéria constitucional”.

Segundo Alexandre Bahia, professor de direito constitucional da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), esse desenho é um “mix” de dois modelos: o europeu e o norte-americano. Em todos os casos, o papel desse Tribunal é “guardar a Constituição”. Mas ele explica que, nos Estados Unidos, a Suprema Corte julga a constitucionalidade das leis apenas a partir de casos concretos que vão subindo dos tribunais comuns. Já em países como Inglaterra e Alemanha, as Cortes Constitucionais não recebem recursos de outros processos, limitando-se a julgar pessoas que tenham situação equivalente ao foro privilegiado no Brasil e processos semelhantes ao que aqui se chama de ADI e ADC. “O STF, no final das contas, soma essas duas funções”, diz Bahia, lembrando que não foi sempre assim. “Até 1965, o STF era muito parecido com a Suprema Corte dos Estados Unidos”, diz, explicando que foi nesse ano que o Brasil teve sua primeira ‘Ação Direta de Inconstitucionalidade’ – entre aspas, ressalta, porque não era exatamente essa a nomenclatura. Isso inaugura o que ele caracteriza como um “controle de constitucionalidade concentrado no abstrato”, ou seja, decisões que não precisam se dar a partir do julgamento de um caso concreto. Essa novidade, no entanto, não fez muita diferença naquele momento, porque o país vivia em plena ditadura. “Mas vai ganhar uma importância muito grande a partir da Constituição de 1988, fazendo com que o STF ganhe uma projeção política muito grande”, explica.

Judicialização X ativismo

Outra diferença do Supremo pós-Constituição de 1988, na avaliação de Bahia, está na relação com os outros poderes. Segundo o professor, problemas existem desde a fundação da República, mas, historicamente, em situações de conflito, o STF “se calava”. Ele conta que, na ditadura, o Executivo chegou a intervir na composição da Corte, aumentando ou diminuindo o número de juízes e forçando aposentadoria compulsória para que o presidente da época pudesse indicar novos ministros e garantir maioria. Remetendo-se a uma ditadura ainda mais antiga, Gisele Citadino, professora da PUC-RJ, lembra o fato de, em 1936, a Corte ter negado o pedido de habeas corpus que garantiria a permanência e o julgamento da militante judia Olga Benário no Brasil, endossando, assim, a decisão de Getúlio Vargas de entregá-la ao governo nazista. Na ocasião, a decisão sequer considerou o argumento de que a prisioneira estava grávida.

Alexandre Bahia acredita que, no último período de redemocratização, houve uma mudança: “Agora o STF enfrenta os outros dois poderes”, opina. A professora da PUC também não reconhece submissão por parte do Supremo, ao contrário: identifica uma postura ativa – e até progressista –, por exemplo, no julgamento de temas como aborto e união homoafetiva como uma forma de reação à omissão do Legislativo . Mas, do ponto de vista político, ela considera que o STF teve e ainda mantém uma postura “covarde”. “A Corte Suprema não pode ser apática, não pode se colocar como espectadora num momento tão difícil como esse”, critica.

Na base dessa relação está a diferença entre judicialização da política e ativismo judicial. Gisele explica que a judicialização da política é a resposta do judiciário a grupos que, por serem minorias, não têm seus interesses representados no Congresso. “Em qualquer lugar do mundo, alguém que se elege para o Legislativo está pensando em agradar o seu eleitor. E se esse eleitorado é majoritariamente contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo, os homossexuais, que são minoria, nunca vão ter seus direitos reconhecidos nesse espaço. Então, essa minoria judicializa o direito”, explica, avaliando que o STF está agindo certo quando responde a esse chamado. Alexandre Bahia lembra que desde 1995 tramita um projeto defendendo o que, na época, foi chamado de “parceria civil”. “Quem deveria estar falando sobre isso é o Congresso, mas ele não fala nem que sim nem que não. Fica inerte. E aí uma minoria tem seu direito à igualdade violado”, analisa, dizendo que, nesse caso, o STF está exercendo corretamente sua “função contramajoritária”.

Já o ativismo judicial estaria caracterizado, segundo Bahia, quando “o tribunal age para além daquilo para o qual ele foi chamado a falar, estabelecendo regras que não estavam exatamente no pedido que foi feito”. No recente julgamento sobre o aborto, por exemplo, o professor da UFOP reconhece os dois processos. “Quando o STF decide o caso, dizendo que a figura do aborto, do Código Penal de 1940, não foi recepcionado pela Constituição e que caracterizá-lo como crime viola uma série de princípios constitucionais, temos um caso de judicialização. Podemos concordar ou não com o mérito, mas eu entendo que isso está dentro do poder do Judiciário de decidir”, elogia. Mas completa: “No entanto, quando o [ministro Luís Roberto] Barroso diz que a criminalização do aborto seria inconstitucional se a gestação tiver até três meses, isso descamba para o ativismo judiciário porque, apesar de o Tribunal estar resolvendo um caso concreto, ele acaba por ‘abrir uma janela’ para uma regra ‘geral e abstrata’”. Mas isso não acontece em outros casos? “O problema é que o Barroso não tem elementos na Constituição para dizer isso. Aí está o ativismo”, explica, mostrando que a questão não é ser contra ou a favor da descriminalização do aborto.

O problema do ativismo, nesse e em outros exemplos, é o Supremo ultrapassar o limite do que prevê a Constituição que ele tem a função de guardar.

“Holofotes”

Bahia acredita que o ativismo judiciário está muitas vezes influenciado por uma preocupação com a expectativa da sociedade, vocalizada pela mídia. E quando a Corte Suprema de um país passa a julgar não pelo que diz a Constituição mas pelo que a opinião pública espera dela, estamos, na avaliação do professor, diante de “um problema muito grave”. Dois exemplos claros são, segundo ele, a recente decisão que elimina a presunção de inocência e o julgamento da ação penal 470, conhecida como Mensalão. “Um dos ministros do STF chegou a afirmar em Plenário que estava julgando com a faca no pescoço, referindo-se à pressão dos órgãos de mídia que estavam em cima do processo”, conta. Na mesma linha, Gisele comenta que a decisão sobre a presunção de inocência foi tomada “com base no senso comum”, para responder aos “clamores da sociedade”. “Isso é apequenar a Corte Suprema”, sentencia.

Parte desses problemas se explicam, segundo Bahia, pelo fato de o STF ter se colocado “nos holofotes”. Apontando o que considera uma “fragilização do Tribunal”, ele critica que ministros do Supremo estejam regularmente na mídia. “Juiz só pode falar nos autos. Essa história de ficar dando opinião, principalmente sobre processo em curso, mas também sobre situações políticas em geral, não é muito ortodoxo. Aliás, beira à ilegalidade”, avalia, apontando as consequências: “Ao se colocar para a opinião pública, um Tribunal está sujeito a ser ovacionado ou vaiado. E pensar que um ministro do STF pode tomar uma decisão pensando em como isso vai repercutir na mídia é muito sério. Muitas vezes ele tem que decidir a favor da Constituição e contra a opinião da maioria. É o que se espera de um ministro do STF”.

Leia mais

O Plenário do Senado aprovou no dia 22 de fevereiro a indicação de Alexandre de Moraes para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Por 55 votos a 13, os senadores aprovaram o nome indicado pelo presidente Michel Temer para ocupar a cadeira deixada por Teori Zavascki, morto em janeiro em um acidente de avião. A indicação, polêmica, levantou o alerta de que a atuação de Moraes no STF pode significar uma tentativa de abafar as denúncias levantadas pela Operação Lava-Jato, que entre seus alvos tem integrantes da base de apoio do governo Temer que possuem foro privilegiado. Nesta entrevista, realizada no final do ano passado para uma matéria da revista Poli sobre a função do STF, e atualizada essa semana para tratar da aprovação do ex-ministro da Justiça pelo Congresso, o professor de direito constitucional da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Alexandre Bahia fala sobre o papel e o funcionamento do STF, seus limites, e faz uma análise sobre a relação nem sempre harmoniosa do órgão com os poderes Executivo e Legislativo.