Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Alexandre Bahia

'O STF se colocou muito nos holofotes'

O Plenário do Senado aprovou no dia 22 de fevereiro a indicação de Alexandre de Moraes para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Por 55 votos a 13, os senadores aprovaram o nome indicado pelo presidente Michel Temer para ocupar a cadeira deixada por Teori Zavascki, morto em janeiro em um acidente de avião. A indicação, polêmica, levantou o alerta de que a atuação de Moraes no STF pode significar uma tentativa de abafar as denúncias levantadas pela Operação Lava-Jato, que entre seus alvos tem integrantes da base de apoio do governo Temer que possuem foro privilegiado. Nesta entrevista, realizada no final do ano passado para uma matéria da revista Poli sobre a função do STF, e atualizada essa semana para tratar da aprovação do ex-ministro da Justiça pelo Congresso, o professor de direito constitucional da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Alexandre Bahia fala sobre o papel e o funcionamento do STF, seus limites, e faz uma análise sobre a relação nem sempre harmoniosa do órgão com os poderes Executivo e Legislativo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/02/2017 10h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Qual a função do STF no ordenamento jurídico brasileiro?

Ele é o órgão de cúpula do poder judiciário. De acordo com a Constituição de 1988, ele ficou responsável por ser o último a dar palavra no país sobre a Constituição. Até 1988, ele era o último a dar a palavra sobre a Constituição e as Leis Federais. Com a Constituição essa função foi dividida e, abaixo dele, foi criado o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Ele tem uma importância central, porque é o último a poder falar, sem possibilidade de recurso, sobre a constitucionalidade das Leis. Somado a isso, ele tem papel muito importante no julgamento de algumas pessoas que têm chamado foro privilegiado. E isso dá a ele uma posição central nas grandes discussões políticas.

Por ser o guardião da Constituição, ele está o tempo inteiro dialogando, se relacionando com o Executivo, mas, sobretudo, com o Legislativo. Pensando nessa relação entre os poderes, quem julga ou quem pode revogar ou questionar o próprio STF? Existe essa instância na democracia brasileira?

Na verdade, sim. Uma boa parte das decisões do STF têm o poder de serem vinculantes. De qualquer forma, toda tese que o STF constituir é vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Executivo. Mas elas nunca são vinculantes para o Legislativo. Então, quando o STF, por exemplo, declara uma lei constitucional, nada impede que o Legislativo aprove uma lei ou até uma emenda à Constituição no sentido contrário àquele que o STF decidiu. Apesar de a gente dizer que o STF dá a última palavra sobre a Constituição, o Legislativo sempre tem a primazia. Então, salvo quando o Legislativo não pode mudar a Constituição - que é o que nós, tradicionalmente, chamamos de Cláusula pétrea - ele pode falar o que ele quiser. E, nesse sentido, o STF tem que se submeter às mudanças feitas pelo Legislativo.

Mas peguemos um exemplo concreto. Nós temos hoje tramitando no Legislativo brasileiro, entre outras coisas, um projeto de lei que foi apelidado de Estatuto da Família. Uma vez aprovado esse Estatuto ou outra lei equivalente, cai a decisão que nós temos reconhecida hoje do STF de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo?

Pois é. Na verdade, a relação não é simples mesmo. O problema estaria em o Legislativo aprovar uma lei que ofende a Constituição. Não é que o Legislativo não possa aprovar uma lei como o Estatuto da Família, que eu considero realmente um retrocesso enorme, mas, ao mesmo tempo, o STF pode declará-la inconstitucional, inclusive, citando precedente da DPS 132. Essa relação é tensa mesmo. Não espero que ela seja uma relação muito harmônica. Tem épocas um pouco mais tranquilas e épocas não tão tranquilas. Mas a aprovação de uma lei como essa ofende sim uma série de construções que o STF já vinha fazendo sobre o conceito de família, etc.

Ouvimos todo o tempo que juiz são atores passivos, que só podem se manifestar se forem provocados. Nesse caso do Estatuto da Família, o STF pode se manifestar espontaneamente ou alguém precisa entrar com uma ação para que ele possa julgar ou declarar a inconstitucionalidade de uma lei aprovada no Legislativo?

Não, ele precisa ser provocado. Quando digo que o STF pode declarar inconstitucional o Estatuto da Família, é porque já estamos dando como tão certo que se ela for aprovada, alguém vai fazer uma ação. Mas, sim, ele precisa ser sempre provocado. Aliás, algo que é muito preocupante nos dias de hoje é justamente o fato de que determinados juízes ou ministros do STF começam a agir, dar declarações à imprensa fora dos autos, né? Porque, pelo Estatuto dos Juízes, juiz só pode falar nos autos. Essa história de juiz ficar dando opinião, principalmente em processo em curso, em situações políticas em geral, não é muito ortodoxa. Aliás, isso beira à ilegalidade.

E como se pode cobrar essa postura dos juízes? Quem julga o comportamento de um ministro do STF?

Seria o CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. O CNJ pode receber pedidos contra o comportamento de quaisquer juízes que tenham agido contra a lei.

Pode receber de qualquer pessoa?

De qualquer pessoa. Qualquer cidadão pode fazer esse tipo de denúncia. O que a gente tem que lembrar é que a maioria absoluta dos membros do CNJ é formada por juízes também.

E o Presidente é o Presidente do STF, não é?

E o Presidente é o Presidente do STF. Dois terços da composição do CNJ é formada por juízes de algum Tribunal. Então, o CNJ, que era originalmente pensado para ser um órgão de controle externo, é bem pouco externo no final das contas. Mas, teoricamente, há o CNJ. Inclusive, lá há vários pedidos contra o juiz Sergio Moro. No caso de ministro do STF, outra instância seria um pedido de impeachment, que aí seria feito diretamente ao Senado Federal. Já houve mais de um pedido de impeachment no bojo de toda essa discussão, contra o Lewandowski e até mesmo contra o Gilmar Mendes. Então, o presidente do Senado poderia acatar um pedido de impeachment contra um ministro do STF e ele perderia o cargo. O pedido pode ser feito por qualquer cidadão.

O senhor disse que já houve vários pedidos como esse. O que acontece quando chega ao Senado?

O presidente do Senado rejeita, né? Argumenta que não vislumbra qualquer hipótese que possa ensejar crime de responsabilidade ou que não se demonstrou haver nenhuma razão suficiente e arquiva. E aí não tem muito o que fazer. Até poderia haver um recurso da minoria no Senado, mas é muito pouco provável isso acontecer.

Nunca houve na história do Brasil alguma providência no sentido de julgar um ministro do STF?

Não. Nunca houve um processo que tenha ido adiante contra nenhum ministro do STF. A gente tem algumas decisões do CNJ contra juiz de primeiro grau, até de segunda instância, mas contra ministro do STF não.

Essa ideia de uma Corte Suprema é comum ao sistema jurídico de todos os países?

Varia um pouco. Nós temos, na verdade, dois tipos de Tribunal Supremo. Tem as Cortes Constitucionais, como existe na Alemanha, Inglaterra e em outros países da Europa, que têm função mais reduzida. Elas teriam o equivalente às funções mais políticas do STF, de controle de constitucionalidade. E existe um outro modelo, que é o das Supremas Cortes, que, na verdade, o Brasil copiou dos Estados Unidos. Nele, o Tribunal Superior não é um Tribunal de cúpula, mas um tribunal que recebe recursos. No caso das Cortes Constitucionais, elas não recebem propriamente recursos. Elas são competentes para alguns tipos de processos, como seriam as nossas ações diretas de inconstitucionalidade, e para o julgamento de algumas pessoas. O STF, no final das contas, soma essas duas funções. Ele é tanto uma Corte constitucional quanto uma Corte de recursos. Até 1965, o STF era muito parecido com a Suprema Corte dos Estados Unidos. A partir daí, principalmente depois da Constituição de 1988, é que se faz uma mixagem.

O que mudou em 1965 e 1988?

Em 1965, você tem criação da primeira “ação”, entre aspas direta de inconstitucionalidade, um controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato, em que eu não tenho exatamente um caso concreto, mas sim uma comparação entre a Constituição e uma lei. Isso não teve muita importância em 1965 por causa da ditadura. Mas vai ganhar uma importância muito grande a partir da Constituição de 1988. Com a redemocratização, há uma ampliação desse controle. E isso faz com que o STF ganhe uma projeção política muito grande. Imagine um partido que votou contra o Estatuto da Família. Se o projeto for aprovado e sancionado pelo Presidente, ele pode, no dia seguinte, fazer uma ação pedindo que o STF declare inconstitucional. Ele não precisa ter nenhum caso concreto. E isso dá ao STF a projeção política que a gente vê hoje.

Como você avalia esse modelo do Brasil? Ele é mais ou menos eficaz?

Eu acho que ele foi uma boa combinação. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, qualquer juiz pode declarar uma lei inconstitucional. É claro que quando um juiz qualquer faz isso, ele só tem efeito para aquelas pessoas que estão no processo. E isso é que vai subindo e dá a oportunidade para o STF se manifestar. Isso é uma garantia democrática muito grande, porque permite que ninguém seja obrigado a ter uma lei que viole a Constituição aplicada ao seu caso. Na Alemanha, por exemplo, um juiz comum pode deixar de aplicar uma lei porque ele a considere inconstitucional. Então, a combinação dos dois sistemas no Brasil, acho que é muito rica.

Os ministros do STF são indicados pelo Presidente da República, passando por uma sabatina no Senado. Eu queria que o senhor analisasse o grau de imparcialidade que se pode esperar desse cargo a partir desse modelo de indicação.

O método de escolha de ministro do STF é copiado justamente da Suprema Corte dos Estados Unidos. Lá também é feito esse tipo de questionamento, de que o ministro indicado por um presidente democrata, por exemplo, tende a ser liberal, enquanto um ministro escolhido por um presidente republicado tende a ser conservador. Espera-se, inclusive, isso. Eu estou falando com relação à grande visão ideológica. Com relação à vinculação pessoal, tanto lá como aqui, eu acho que existe um esforço muito grande dos ministros de não transparecer que eles têm vinculação direta pessoal com aquele que indicaram. O fato de as grandes ações contra o PT, como o Mensalão por exemplo, terem sido julgadas por uma maioria de ministros indicados pelo próprio Lula mostra muito uma tentativa de se mostrar afastados de qualquer alegação de que o fato de ter sido indicado por um presidente de um partido x vai fazer com que ele necessariamente julgue a favor daquele partido. Então, essa é uma questão sempre levantada. E aí quando você tem um ministro que vota contra o que talvez a grande mídia ou determinada opinião pública quer, logo se vai olhar quem o indicou e falar, “ah, ele foi indicado por fulano, é por isso que está julgando assim”. Só que se esquece de que ele, muitas vezes, é voto minoritário e que a maioria que está votando a favor - por exemplo, da condenação do José Genuíno ou do José Dirceu - também foi indicada por aquele mesmo partido. Se a gente pegar o espectro do STF, isso não tem sido um fator determinante na hora de eles julgarem.

Agora, não podemos esquecer que o Alexandre Moraes, que acaba de ser nomeado para o Supremo, defendeu que uma pessoa que está no governo não deve ser indicada para o STF. Ele defendeu isso na sua tese de doutorado. E eu acho que a gente evoluiria muito se essa tese do Alexandre Moraes realmente vingasse. O que, infelizmente, não foi o caso agora. Porque ele foi indicado e não recusou a indicação. Seria muito interessante para evitar que uma pessoa tão próxima de um governo ocupe esse lugar. Porque é complicado alguém se desvincular totalmente, né? Estamos falando de alguém que um dia era ministro de um governo e no dia seguinte vai ter que julgar casos que envolvem esse mesmo governo.

Os governos do PT têm sido usados como exemplo para isso, por conta do mensalão. Mas, se pensarmos em governos anteriores na História do Brasil, também não se encontra essa relação mais direta entre interesses do presidente e o ministro indicado?

Durante a Ditadura Militar. A ditadura chegou a mexer na composição do STF duas vezes, uma vez aumentando e outra diminuindo o número de juízes, forçando, inclusive, a aposentadoria compulsória, justamente para conseguir dobrar o STF. Na primeira vez em que se ia aumentar o número de ministros, de 11 para 16 - salvo engano foi no AI-2 -, foi justamente para que o presidente da época pudesse indicar cinco novos ministros e garantir a maioria no STF. Então, a relação do STF com a República, desde a sua fundação, não é muito harmônica. Várias vezes os ministros do STF foram confrontados. Mas acho que a grande diferença é que, historicamente, o STF normalmente se calava. Talvez a grande diferença desse STF pós-Constituição de 1988 é que ele hoje enfrenta os outros dois poderes.

Queria falar, em relação ao STF, o que se tem chamado de judicialização da política ou ativismo jurídico. O senhor cita a decisão do STF em relação à união homoafetiva como um exemplo positivo porque o tribunal estaria ali vocalizando os direitos de minorias que, muitas vezes, não estão representadas no Legislativo. Agora está nas mãos do STF a decisão da terceirização do trabalho, outra sobre os limites da judicialização da saúde... Qual a linha de corte objetiva de onde o STF pode ou não pode?

Eu acho essa linha bastante complicada. Vamos tentar trazer pelo menos alguns parâmetros que eu acho que podem ser utilizados na discussão. Uma coisa que eu acho que essas questões todas têm em comum é o fato de que, muitas vezes, para o Legislativo, e às vezes para o governo, é muito cômodo não ter que decidir sobre determinadas coisas por causa do custo político que isso envolve. A questão da união homoafetiva é um exemplo bom disso. Porque desde 1995 está tramitando no Congresso um projeto de lei da então deputada Marta Suplicy sobre a chamada parceria civil, que nem era união homoafetiva, era uma coisa mais ampla. E o Congresso Nacional se recusa a falar sobre isso. Então, nesse sentido, a decisão do STF de falar sobre a união homoafetiva me parece correta. Porque ele decidiu justamente porque o Congresso se recusa a falar sobre aquilo. Quem deveria estar falando sobre isso era o Congresso. Mas eles não falam nem que sim, nem que não. Fica inerte. E aí você tem uma minoria com o direito à igualdade violado. Nesse sentido, esse tipo de judicialização eu acho interessante porque o STF age no que a gente chama de fator contra majoritário. Esses outros casos, como por exemplo a questão da terceirização, me parece um problema um pouco diferente. Talvez aí se esteja caminhando para o que eu, criticamente, chamo de ativismo judiciário. Veja, eu sou muito favorável a essa judicialização da política. Na verdade, isso é um dado da modernidade. Agora, o ativismo é uma escolha. O Tribunal se meter ou não em questões políticas, subvertendo a ordem do Legislativo, é uma escolha. Não me parece que caberia ao STF falar sobre terceirização, ao menos que fosse para defender os direitos da parte mais fraca da relação de trabalho, que é o trabalhador. Ao falar sobre terceirização para levar uma precarização da relação de trabalho, o STF está fazendo a política que talvez o Congresso não tenha coragem de fazer. A diferença é que ele não está agindo em defesa de nenhuma minoria, está agindo ao contrário.

Qual a diferença entre judicialização da política e ativismo político?

O Judiciário vai tratar de questões que, tradicionalmente, a gente chama de políticas. Isso é um fenômeno que vai acontecer em todas as democracias do mundo Pós-Segunda Guerra Mundial. O Brasil demora um pouco até nesse sentido. Isso vai se consolidar no Brasil com a Constituição de 1988. Essa judicialização da política é um fenômeno bem conhecido em todas as democracias ocidentais pelo menos. Agora, ativismo judiciário é uma forma em que o Tribunal age para além daquilo para qual ele foi chamado a falar, estabelecendo regras que não estavam exatamente no pedido que foi feito a ele. A decisão que o STF deu um tempo atrás sobre compra de remédios foi tipicamente ativista. O STF tinha perguntado sobre o caso concreto de um remédio que tinha sido solicitado e que não estava na lista dos remédios do Ministério da Saúde. O STF, em vez de simplesmente dizer se deviam ou não deviam comprar, criou uma regra geral sobre quando é que se deve comprar e quando é que não se deve comprar remédio. Nesse sentido, a decisão é ativista, ele vai muito além daquilo que foi pedido a ele. Ao invés de só resolver o problema do caso concreto, ele cria quase uma norma. Essa regra até que foi muito boa. Resolveu um problema muito sério. A minha crítica, na verdade, é que não cabia a ele fazer isso.

Me dê, então, um exemplo de ativismo jurídico com resultados negativos.

O julgamento da ação penal 470, do Mensalão. É um julgamento bastante complicado do ponto de vista do conteúdo. A Teoria do Domínio dos Fatos não é nem de longe aquilo que foi proposto originalmente. O STF transforma aquilo e cria uma decisão tão excepcional que nunca foi aplicada em outros casos depois. Acho que essa decisão da ação penal 470 do Mensalão ou a própria decisão do STF sobre a presunção de inocência são bons exemplos de um ativismo, muitas vezes alimentado por uma opinião pública midiatizada, num processo em que os ministros acabam decidindo muito influenciados pelo que a opinião pública está dizendo. No caso do julgamento do Mensalão, um dos ministros do STF chegou a afirmar em Plenário que estava julgando com a faca no pescoço, referindo-se à pressão dos órgãos de mídia em cima do processo. E, ao dar uma decisão assim, você escapa do caso e acaba julgando de acordo com aquilo que vai te colocar melhor com a opinião pública. Isso é um problema muito sério.

Uma das ministras na época disse: “eu não tenho elementos para condenar, mas a doutrina me permite” ou alguma coisa assim. A Teoria do Domínio dos Fatos, como foi incorporada, permitiu que o STF fizesse determinadas condenações que se ele tivesse usando aqueles mesmos critérios que os demais juízes do Brasil usam todos os dias, com todos os réus, ele não condenaria pelo menos uma boa parte dos que foram condenados. E tem um outro problema também: foi uma decisão extremamente complicada, em que o STF entendeu que ele mesmo poderia caçar o mandato de dois deputados que haviam sido condenados, em sentido frontalmente contrário à Constituição. A Constituição tem uma regra – da qual eu até discordo - de que um deputado ou senador só pode perder o mandato se houver manifestação da Casa a que ele pertence. Isso é uma regra ruim, mas está na Constituição. E aí o STF vem e diz: “não, a minha decisão basta para cassar o mandato desse deputado”. Pouco tempo depois, o STF teve a oportunidade de fazer o mesmo com um outro deputado – acho que foi condenado – e a decisão foi de que dependia necessariamente da manifestação da Casa. Ele mesmo não seguiu os seus precedentes depois.

Recentemente teve a prisão do senador Delcídio Amaral...

Sim. Esse é um outro caso de violação flagrante à Constituição. Você pode não gostar da regra constitucional, pode achar que ela é ruim, mas a Constituição não permitia a prisão do Delcídio como foi feita. A Constituição fala que ele precisaria ser preso em flagrante de crime inafiançável. O STF faz um malabarismo enorme para dizer que o crime dele era um crime continuado, permanente e, por isso, a flagrância se prolongaria. E, a partir do fato de que havia uma flagrância, ele considera um crime inafiançável. Ou seja, ele faz um malabarismo enorme para justificar a prisão do senador. Isso é algo muito preocupante, porque ao fragilizar essas garantias, primeiro contra políticos, mas também agora com relação à presunção de inocência contra qualquer um de nós, o STF larga a posição de guardião da Constituição e passa a ser dono dela.

Estamos vivendo um momento de violação desse princípio da independência dos poderes?

Eu acho que está havendo uma tensão que normalmente não existe entre o Legislativo e o STF. A tensão normalmente era com o Executivo, do Executivo com o Legislativo, do Executivo com o próprio STF. Isso é novidade até então e meio que é uma herança do Eduardo Cunha. Tem aí uma relação, inclusive, bastante problemática porque, por exemplo, um dia o presidente do Senado fala que os ministros do STF e os juízes em geral ganham acima do teto, daí alguns dias depois um processo contra esse mesmo presidente do Senado que estava meio parado, de repente ele vem à pauta. Há algumas coincidências aí, não é? Um dia, aparece uma pauta no Legislativo contra o Judiciário. No dia seguinte, o Judiciário dá uma resposta pegando colocando esse processo em pauta. Enfim, há uma relação de bastante tensão mesmo. O que o STF deveria fazer é agir de maneira a não ficar dando resposta. O STF não tem que ficar dando resposta à provocação dos demais poderes. O STF tem que agir como Tribunal, tem que dar resposta àquilo que é colocado para ele, não àquilo que os poderes ficam provocando. Infelizmente, tanto os juízes dando opinião em órgão de mídia, quanto o próprio STF pautando determinados assuntos - aparentemente, em resposta a provocações dos outros poderes - mostram uma fragilização muito grande do próprio Tribunal.

Há juristas criticando essa prática de ministros do STF serem fonte em matérias jornalísticas sobre diversos temas, emitindo opinião pelos jornais. Na sua avaliação, isso viola de alguma forma o papel do Supremo?

O Tribunal era um pouco mais recatado, vamos dizer assim, mais colocado na função dele. Nas democracias, você não vê ministro de Suprema Corte aparecer todo dia no telejornal dando opinião sobre tudo. Eu acho que isso é um sintoma mesmo da fragilização do Tribunal. Ele se colocou muito nos holofotes. Em alguma medida o STF procurou isso, até alguns anos atrás. Ao se colocar no holofote sob opinião pública, ele está sujeito a ser ovacionado ou vaiado. E quando você pensa que um ministro do STF pode, em determinado momento, tomar uma decisão pensando em como isso vai repercutir na mídia, isso é muito sério. Porque o papel do Supremo muitas vezes é decidir, inclusive, contra a opinião da maioria. A favor da Constituição e contra a opinião da maioria. É o que eu espero de um ministro do STF. É por isso que nós damos a eles a garantia da vitaliciedade, por exemplo. São garantias dadas ao juiz justamente para que ele tente decidir não de maneira neutra - porque não existe neutralidade - mas de maneira imparcial.

Eu queria que o senhor fizesse uma avaliação do papel do comportamento do STF no controle de eventuais excessos e erros na Operação Lava Jato, que têm sido apontados por alguns juristas.

O que eu espero que o STF faça é justamente lembrar que ele tem que decidir, ainda que a maioria da população ache que tem que botar esse pessoal numa ilha deserta e esquecer. Não é papel do STF decidir de acordo com esse tipo de vontade. Tem que verificar, realmente, se há provas e se houver qualquer dúvida razoável, a decisão tem que ser pela absolvição. Com relação a abusos especificamente, eu preciso deixar muito claro que o que uma das coisas que mais me causa espanto nesse julgamento é aquele vazamento do áudio entre o ex-presidente Lula e agora a ex-presidente Dilma. Aquilo é uma soma de tanta coisa errada que é até difícil começar a dizer por onde. Vou te falar três. Toda interceptação telefônica só pode ser feita com autorização judicial. Tem um prazo de início e um de fim. O que foi mostrado em cadeia nacional é o trecho de uma gravação de quando a autorização já havia cessado. Essa autorização depois foi renovada, mas já com base no conteúdo que havia sido alcançado. Ou seja, ela não é válida, no final das contas. Em segundo lugar, como envolvia uma pessoa com foro privilegiado, que era a Presidente da República, uma vez que a Polícia Federal obtém essa gravação e o juiz bota a mão nisso, ele não tem que se manifestar sobre ela. Ele tinha que pegar o material e mandar para o STF, nada mais. Além de não fazer isso, ele [Sergio Moro] ainda divulgou isso para um jornal. O que viola pelo menos três normas que eu consigo imaginar aqui agora: viola a Constituição, quando fala em direito à privacidade, intimidade, bem privado; viola a lei 9296, que trata sobre interceptação telefônica; e viola uma resolução do CNJ, que diz que juízes e servidores do Judiciário que vazarem informações obtidas com quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico estão sujeitos à responsabilização - coisa que o Tribunal Regional Federal que julgou a representação contra o Moro, infelizmente parece desconhecer. Não é uma questão de interpretação. Não há nenhum cenário normativo do Brasil que permitiria uma coisa daquela.

E o que cabe ao STF numa situação dessas?

Chegou a ter um recurso ao STF. Ele chegou a dizer que o juiz estava errado. Essa prova, especificamente, foi obtida por ilícito e jamais vai poder ser utilizada no processo. Então, se eventualmente houver uma condenação - talvez do Lula, por exemplo -, e isso servir como uma das provas, deve ser anulado pelo STF. Não é possível um processo desses se basear numa prova obtida por meio ilícito. E, ao contrário do que até as medidas contra corrupção [propostas pelo Ministério Público] estão dizendo, prova ilícita não pode permanecer no processo de jeito nenhum, sob pena de se ter uma fragilização enorme no Estado de Direito. Com relação ao juiz, especificamente, o que me espanta é o fato de o CNJ não ter dado a devida resposta aos vários pedidos que foram feitos sobre esse caso. Hoje você tem o processo tramitando no CNJ sobre isso e eles não têm resposta. E isso é algo que preocupa muito.

Não tem resposta quer dizer que eles simplesmente não responderam?

Não decidiram nada. A única decisão que eu conheço sobre isso é da segunda instância. A maioria absoluta do Tribunal Federal da Quarta Região, à qual o Moro está vinculado, diz que não havia problema nenhum naquilo que foi feito, que era uma situação excepcional. O que me deixa mais preocupado ainda. Porque o juiz pode fazer o que ele quiser se a situação é excepcional.

tópicos:

Leia mais

O que é, o que faz e quais os principais dilemas do STF no Brasil