“Todos os grandes princípios do Sistema Único de Saúde têm um reflexo no território”. A afirmação de Christovam Barcellos, geógrafo e pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), evidencia a importância da compreensão do conceito de território para que se consiga fazer, na prática, aquilo que as políticas de saúde vêm preconizando: segundo Barcellos, universalização, descentralização e integralidade estão diretamente relacionados à ideia de território.
Antes de entender essa relação, é preciso responder à pergunta: afinal, o que significa território? Uma porção de terra demarcada legalmente; a extensão de um país, estado ou município; um local habitado e organizado pelo homem; um espaço delimitado por animais; uma área subordinada ao poder de determinada autoridade? Não existe uma acepção única, tampouco uma definição que seja isenta de críticas. Mas a tendência é que os estudiosos da área de saúde passem cada vez mais a entender o território para além da delimitação por fronteiras físicas: no Dicionário da Educação Profissional em Saúde, editado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Maurício Monken e Grácia Maria Gondim, pesquisadores da EPSJV, explicam que os territórios são estabelecidos por e a partir de relações de poder, e que “quando coexistem em um mesmo espaço várias relações de poder, dá-se o nome de ‘territorialidades’, de modo que uma área que abriga várias territorialidades pode ser considerada vários territórios”.
Assim, um único bairro ou município pode ser composto por diferentes territórios, de acordo com os ‘poderes’ que ali existem: “O presidente de um país, um governador e um prefeito são responsáveis por territórios. Mas também uma equipe de saúde da família e um agente comunitário de saúde são responsáveis por outros territórios, ouvindo a população, outras organizações e reforçando os poderes locais nessa gestão”, exemplifica Barcellos.
Há, portanto, territórios em diferentes escalas, e nem sempre é fácil reconhecê-los. Uma coisa é ter limites mais ou menos estáveis e claramente demarcados, como as fronteiras de um país ou de um estado – mas, como lembra Maurício Monken, nem sempre é dessa forma: a maior parte dos territórios não estão estabelecidos nos mapas. “Muitas vezes, eles obedecem a limites não muito objetivos, como cultura ou características socioeconômicas. Exemplo disso é quando, em um bairro, há territórios em que não entram pessoas de determinado nível social. Mesmo que não haja uma barreira física, existe uma fronteira cultural, que nem sempre é óbvia”, diz o pesquisador.
Para Ricardo Ceccim, professor do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), outra questão que dificulta o reconhecimento de territórios é a sua instabilidade: “Território é configuração – de táticas, de estratégias, de pensamentos. É sempre um ‘estar ’, atravessado por variados interesses, como questões políticas, culturais e redes de conversação. O território nunca é totalmente fixo. Ele é maleável, configurado, desconfigurado e reconfigurado o tempo todo”, explica. Esses processos, chamados territorialização, desterritorialização e reterritorialização, são, segundo Grácia, cada vez mais comuns num contexto de globalização. “Uma empresa transnacional, que põe sua marca em determinado território, constrói fábricas, gera empregos, muda o local. Se vai à falência ou simplesmente fecha uma filial, há uma desterritorialização. Isso também é comum quando, para construir usinas hidrelétricas, é preciso inundar uma área e os moradores da região precisam se reterritorializar em outro espaço”, exemplifica a pesquisadora. Quando se reconhece que o ambiente interfere na saúde, torna-se fundamental entender o espaço e pensar políticas públicas que levem em conta essas ideias. “É preciso usar o espaço do território e localizar os elementos que podem produzir saúde ou doença”, diz Grácia.
O Brasil e a territorialização em saúde
Como afirma Barcellos, o SUS tem estreitas ligações com o território. No Dicionário, Maurício Monken e Grácia Gondim explicam que o sistema local de saúde brasileiro redesenhou suas bases territoriais “para assegurar a universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a equidade da atenção”. A territorialidade, segundo os autores, se coloca como “uma metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias vigentes”. De acordo com Barcellos, o conceito sempre é importante em países que pretendam ter um sistema de saúde baseado nesses princípios. “Para viabilizar a universalização, delimitam-se áreas com unidades básicas de saúde, que encaminham para hospitais de referência quando há casos mais complicados – o que também demanda a descentralização. Além disso, a divisão em pequenos territórios possibilita a integração de ações: o saneamento básico, o controle de vetores, a construção de áreas de lazer são planejados nesses espaços”, afirma.
A preocupação em relacionar saúde e território começou a se consolidar no Brasil nos anos 1980. Nessa época, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) propôs uma estratégia de organização baseada no conceito de território – eram os Sistemas Locais de Saúde (Silos), tendo como foco a municipalização. O Brasil elaborou essa proposta a partir de uma releitura, pensando na divisão de espaços em distritos sanitários: “Estabelecemos uma divisão não em municípios, mas em uma perspectiva de regionalização. Tínhamos como base o conceito de vigilância em saúde, levando em conta a ideia de que a saúde é socialmente produzida”, lembra Eugênio Vilaça, que, na época, coordenava a área de serviços de saúde da Opas. De acordo com ele, alguns projetos-piloto foram implantados no Brasil para colocar a proposta em prática: Curitiba, Fortaleza e Belo Horizonte foram divididas em distritos sanitários a partir dos quais era possível organizar a atenção primária à saúde e montar os fluxos.
Mas, quando a Constituição de 1988 foi promulgada e o SUS foi instituído, a municipalização foi uma das diretrizes estabelecidas. Na opinião de Vilaça, essa não é a configuração ideal: “Ainda que tenha conseguido aumentar a oferta de serviços, ela traz um grave problema devido à falta de escala: 75% dos nossos municípios têm menos de 20 mil habitantes. Não dá para organizar uma rede em cada um deles, uma vez que é inviável ter hospitais, laboratórios e centros de especialidades médicas em cidades muito pequenas. A municipalização encheu o país de pequenos hospitais e laboratórios, que são muito caros e ineficientes”, critica. Para ele, uma solução é pensar em sistemas microrregionais de saúde. Nesses sistemas, todos os municípios pequenos devem oferecer atenção primária, mas a média e alta complexidade devem ficar a cargo de municípios próximos, que sejam maiores e atendam a todos os integrantes do sistema.
Para Ceccim, no entanto, existe ainda um outro problema: apesar de haver delimitações espaciais a serem levadas em conta nas políticas públicas, outros fatores são importantes. Ele acredita que, como os territórios são maleáveis, é necessário observar a forma com que os movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização ocorrem e as consequências que geram, para que se possa, assim, pensar políticas que melhorem a qualidade de vida da população. E, na opinião do pesquisador, essa ainda é uma deficiência da saúde no Brasil. “A saúde hoje ainda pensa o território principalmente como uma questão de delimitação espacial. Fala-se em áreas de inscrição e áreas de adscrição, por exemplo, na hora de direcionar as políticas. Na verdade, elas são inscritas em regiões que se consegue desenhar no mapa, mas é interessante pensar um território cuja cartografia seja móvel”, critica. Grácia Gondim completa: “Além dos limites – mesmo imaginários – dos territórios, há também os poderes. É importante compreender que a saúde tem um poder, mas que há outros envolvidos, como o das associações. Isso possibilita o fortalecimento da comunidade”, diz.
Território na formação
Para que a territorialização seja concebida de forma ampla, é preciso que esse conceito esteja presente também na formação dos profissionais de saúde. “É necessário mostrar ao estudante que todo local de atuação tem um componente de cultura e práticas sociais, para que ele reconheça que as pessoas que ali habitam não são apenas marcadores das políticas de treinamentos, não são apenas um certo número de hipertensos, diabéticos, bebês ou gestantes”, defende Christovam Barcellos, explicando: “Crianças, por exemplo, estudam em escolas e interagem com outras. Então, elas não são apenas uma faixa etária, mas, sim, redes de conexões. Se, ao longo do processo de formação, conseguirmos trabalhar com o estudante uma exposição forte ao componente da cultura, das linguagens, da subjetivação, podemos começar a pensar um território mais vivo do que apenas ruas, casas e prédios”.
Grácia acredita que, embora a formulação de políticas públicas como a Estratégia Saúde da Família levem o território em consideração, essa formação ampla ainda não é uma comum. Mas existem experiências positivas: de acordo com a pesquisadora, o território tem sido trabalhado com profissionais de nível superior, por meio de especializações em saúde da família; o Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância em Saúde (Proformar), que ofereceu cursos entre 2003 e 2006, também tinha essa preocupação. Segundo Maurício Monken, a vigilância em saúde é justamente a área que mais se apropria do conceito de território. “Ela trabalha em cima do planejamento estratégico, com o conceito de saúde ampliada, estudando determinantes sociais da saúde. Todas as ações, teoricamente, devem partir dessa compreensão”, explica.