A universalidade tem sido discutida ao longo dos séculos como um conjunto de direitos inerentes a todos os indivíduos em áreas distintas, atreladas aos direitos humanos. De acordo com o verbete no Dicionário de Educação Profissional em Saúde, editado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a universalidade, nesse sentido, “tornou-se pauta do Estado liberal nas constituições inglesa e francesa no século XVIII”. Os textos se caracterizavam pela defesa às liberdades individuais, direito à propriedade privada e organização política, estendida a todos os indivíduos. No campo da saúde brasileira no século XX, a universalidade foi definida como um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), presente no artigo 196 da Constituição Federal. Esse é um princípio fundador e estruturante do SUS, visto que, por muito tempo, o acesso aos serviços de saúde esteve atrelado a uma lógica de proteção específica para os trabalhadores com vínculos formais e, posteriormente, aos contribuintes da previdência.
Segundo o texto constitucional, O Estado deve garantir a todos os brasileiros — portanto, de forma universal — o acesso à saúde. “A universalização é o princípio que confere ao direito à saúde o status de direito de cidadania”, explica Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Apesar da sua importância, no entanto, segundo pesquisadores da área, a efetivação desse princípio tem sido dificultada nesses mais de 20 anos por fatores políticos, financeiros e administrativos.
Antes do SUS
Lígia Bahia conta que o sistema de saúde no Brasil antes da criação do SUS era “legalmente segmentado”, sob responsabilidade dos órgãos estaduais e municipais, que eram administrados independentemente. O Ministério da Saúde possuía hospitais especializados em tratamentos de doenças, como a tuberculose: “As redes de postos, centros de saúde e hospitais das secretarias estaduais e municipais de saúde eram voltadas para o atendimento de toda a população, especialmente daqueles que não possuíam os direitos assistenciais organizados pelo Ministério da Previdência Social”, explica Lígia, referindo-se a instituições como os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), organizações ligadas a várias categorias trabalhistas, com atendimento restrito a seus membros — portanto, nada universal. “Os prestadores privados de saúde complementavam os serviços próprios ou constituíam a rede assistencial dos IAPs. Os regulamentos admitiam que a assistência médica e hospitalar pudesse ser prestada diretamente ou mediante contratos ou convênios com outras entidades oficiais ou particulares. A expansão das coberturas e as reorientações sobre a relevância da assistência médica como benefício previdenciário estimularam a aquisição e construção de serviços próprios pela maioria dos IAPs, no final da década de 1940 e início da de 1950”, explica Lígia, no texto ‘O SUS e os Desafios da Universalização do Direito à Saúde’ do livro ‘Saúde e Democracia: Histórias e Perspectivas do SUS’. Além dos IAPs, o atendimento em saúde por ‘meritocracia’ foi realizado posteriormente pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que hoje é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), e por último, pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), extinto em 1993.
Depois do SUS
Gustavo Matta, pesquisador da EPSJV e autor do verbete sobre universalidade no Dicionário, cita países que, antes do Brasil, aplicaram a universalização a seus sistemas de saúde pública: “Nos países onde o socialismo de fato existiu, as áreas como saúde e educação foram estatizadas e consideradas um direito. Em 1948, com o plano Beveridge, na Inglaterra, surgiu o sistema nacional inglês: foi quando um país capitalista apropriou a saúde como um direito, passando a ser público e universal”, explica.
No Brasil, foi com a Reforma Sanitária que as discussões sobre de um sistema de saúde universal tiveram início. “Isso ocorreu em meados da década de 1980, com a 8ª Conferência Nacional de Saúde”, comenta Gustavo. No texto constitucional, que consagrou as mudanças no sistema de saúde então existente, a saúde ficou estabelecida como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Interpretações diferentes
Ruben Mattos, doutor em saúde coletiva e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que, de acordo com a Constituição, o acesso à saúde pode ser visto de dois modos: como o direito de todos os indivíduos à saúde, que é o sentido mais comum; e como acesso desses mesmos indivíduos a todos os serviços de todos os níveis de complexidade do sistema. Esta última definição de universalidade, segundo Ruben, merece atenção. “Há grande estrangulamento na garantia dos procedimentos ditos de média complexidade. Isso me parece produzido, por um lado, pela expansão da atenção básica — que, embora com qualidade questionável, fez com que se garantisse muito desse nível de atenção. A alta complexidade também expandiu, mas, por outro lado, apresenta outros problemas, principalmente o fato de que vários planos privados de saúde não oferecem a cobertura adequada a alguns procedimentos”, diz. Gustavo Matta completa: “Muitas vezes, o SUS entra em duas faixas em que nenhum plano de saúde quer entrar. Ações como imunização e promoção da saúde, por um lado, e, por outro, ações de altíssima complexidade, mais custosas”.
Segundo Ruben, essas duas interpretações de universalidade têm consequências distintas. “A ausência da universalização em saúde como direito de todos significa a impossibilidade dos outros princípios do SUS. Inclusive, isso afeta muito além das políticas de saúde: afeta o direito das pessoas de terem condições dignas de vida, já que a saúde é produzida por outros elementos”, diz. Mas quando a universalidade falha no segundo sentido apontado pelo pesquisador, a efetivação de outros princípios, como a integralidade , também fica prejudicada. “A ideia de universalidade está intimamente associada à igualdade, ou seja, não é aceitável que um brasileiro tenha acesso diferenciado de outro às ações de saúde de que necessitam. A ausência de universalidade compromete a igualdade. A possibilidade de não haver universalidade e igualdade também compromete definitivamente o princípio da integralidade – eles andam juntos”, diz Ruben.
Dificuldades para a universalização
Apesar de ser um princípio definidor do SUS, ainda existem dificuldades para a plena efetivação da universalidade. E a questão em geral apontada como o grande problema é a falta de recursos financeiros. Mas, para Ligia Bahia, os obstáculos são mais profundos e também têm a ver com a relação entre público e privado. “A principal dificuldade é no âmbito da política, ou seja, na natureza, origem e exercício do poder. Não apenas do poder de acessar ou não serviços de saúde, mas sim no poder de levar adiante políticas universais. As coalizões políticas que dão suporte aos governos não se mostraram, até o momento, propensas a aderir de fato à universalização da saúde. Embora todos apoiem o SUS, para muitos isso significa apenas uma intenção e não a adoção de uma sucessão de gestos que alterem a correlação de forças no sentido da efetivação do SUS. Desses obstáculos políticos deriva o próprio subfinanciamento do SUS”, diz. E completa: “Afirmar que as origens dos problemas da universalização restringem-se ao financiamento impede que a trama política das relações entre o público e o privado seja desvelada e contribua para orientar ações transformadoras da realidade. A rede pública de saúde no Brasil cumpre além, de outras funções, a de ‘ressegurar’ os planos e os seguros privados de saúde. Tudo que de fato é muito dispendioso, como a formação de pessoal, pesquisa, medicamentos excepcionais, entre outros itens, é atribuição pública”, diz.
Para Ruben, a falta de recursos é agravada pela sua má administração: “A escassez de recursos se divide em pelo menos três itens: primeiro, não temos nenhuma clareza sobre o volume de recursos que seriam necessários para dar conta do direito universal e igualitar o acesso as ações de saúde. Porém, temos a certeza de que os recursos colocados no SUS não são plenamente insuficientes para dar conta do acesso universal. Além disso, essa limitação é agravada por usos ou acessos de serviços não necessários. Por último, existe a qualidade de gestão: se os recursos são mal geridos, falta mais”.
Outra questão nessa discussão é o que se chama de ‘universalização setorizada’, destinada a grupos específicos. Ligia Bahia, no entanto, não vê isso como um problema: “Penso que a universalização do tratamento da AIDS, por exemplo, é extremamente positiva, sinaliza permanentemente que o Brasil tem um SUS e que foi esse SUS que nos levou a ocupar lugar destacado nos programas internacionais de DST/AIDS. Da mesma forma é extremamente importante destacar o tratamento universal para os portadores de insuficiência renal crônica, por exemplo. Precisamos estender esses avanços para outros âmbitos assistenciais”, defende.
Público e privado
Na opinião de Gustavo Matta, para se ter universalização, não é preciso que o atendimento seja realizado exclusivamente pelo sistema público. “A saúde é um direito, mas não necessariamente realizado pelo sistema público. O público pode contratar o privado para prestar esses serviços: a existência de serviços privados conveniados ao SUS está definido e previsto na Constituição e não compromete a universalidade. Nós não temos a possibilidade, hoje, de assegurar as ações e serviços necessários exclusivamente no setor de provisão público”, afirma.
Mas Ligia Bahia ressalta que, embora isso seja verdade, o Estado precisa cumprir seu dever de garantir o direito à saúde. “A assistência e o cuidado não necessitam ser executados por organizações estatais. No entanto, para efetivar a universalização, é preciso que o Estado seja o principal financiador dos serviços de saúde. Essa primazia do Estado pode ser exercida desde a regulação dos preços até a oferta direta dos serviços e cuidados. O que ocorre no Brasil hoje é uma inversão. Os gastos privados com saúde superam os públicos”, analisa.