O subtítulo do fichário da Reforma Administrativa apresentado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que coordenou o GT de elaboração da proposta, é “um Estado com foco em resultados, eficiente, digital e justo”. E o deputado deu várias declarações explicando que o objetivo da proposta é melhorar a produtividade e a eficiência do serviço público brasileiro, que é um direito do cidadão. Objetivos e justificativas semelhantes foram dadas em outros momentos de propostas de reformas. Mas nós temos um diagnóstico sobre isso? Esse GT, especificamente, fez um diagnóstico para subsidiar as propostas que estão sendo apresentadas?
Não. Toda a concepção dessa reforma, principalmente quando se trata do diagnóstico, é de que o setor privado é mais eficiente do que o setor público. E é extremamente errada e ideológica essa visão, porque quando você olha os dados oficiais, dos próprios governos e dos institutos de pesquisa, dois pontos são fundamentais: em todas as áreas, há um subfinanciamento, [falta] de recursos públicos para fortalecer o serviço público e existe [no Brasil] uma quantidade de servidores baixa, até na comparação com outros países do mundo que têm economias mais atreladas à visão do Estado mínimo. Ou seja, há, de fato, ainda uma necessidade muito grande de mais recursos, mais servidores e mais estrutura para oferecer serviços públicos. Eles argumentam que o Estado não teria recursos para isso e que a iniciativa privada poderia entrar de forma maior para a execução de serviços públicos. Usam essa informação para direcionar seu ponto de vista e justificar uma reforma com um viés mais privado, mais fiscalista. Veja que em vários países está acontecendo o contrário: várias áreas que foram privatizadas estão voltando para o controle público. Saneamento, Educação, Saúde foram transferidas para a iniciativa privada [em vários países], tiveram seus custos aumentados e não foram eficientes, como prometeram. Então, voltaram para o controle público. A discussão [dessa PEC] é muito permeada pela visão pessoal do relator de que o setor privado poderia resolver os problemas que, na realidade, como eu mencionei, [existem] por falta de recursos e servidores.
O Brasil teve algumas Emendas Constitucionais que, embora em níveis diferentes, modificaram aspectos da administração pública. Uma página do portal da Câmara dos Deputados cita as Emendas Constitucionais nº 19/1998, nº 20/1998, nº 41/2003, nº 47/2005 e nº 103/2019. A primeira pergunta é: todas essas podem ser consideradas reformas administrativas? Qual o efeito dessas mudanças sobre o serviço público no país?
No pós-Constituinte houve, em especial, uma revisão constitucional, em que se tentou fazer mudanças, mas não se implementou. No governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], como você mencionou, avançou a Emenda Constitucional 19, que criou novos princípios no artigo 37 [da Constituição] e fez algumas mudanças, instituindo a avaliação de desempenho dos servidores, para ser regulamentada por lei complementar. Digamos que esse foi o tema mais profundo, do ponto de vista constitucional, dessas mudanças que você mencionou. Nos governos FHC e [Fernando] Collor, foi feita uma série de mudanças que reduziram mais de 50 direitos dos servidores públicos através de Lei Ordinária, ou seja, alterando a Lei 8.112, que trata do Estatuto dos Servidores Públicos. De lá para cá, a mudança mais drástica foi a criação do teto de gastos [Emenda Constitucional 95]. Tentou-se, em vários governos, fazer mudanças pontuais. Nos governos Lula [da Silva] e Dilma [Rousseff], houve expansão do serviço público, criação de [vagas para] servidores, remuneração adequada, mas também reformas direcionadas à Previdência dos servidores. Não houve mudança na administração pública estruturalmente, mas houve reformas por dentro da máquina pública: no Executivo, portarias e decretos reorganizaram a carreira e o funcionamento da administração pública da União. [Temos que] lembrar que não só o Poder Legislativo fez isso, mas também o Executivo e o próprio Poder Judiciário, com o STF [Supremo Tribunal Federal] promovendo decisões como, por exemplo, a que acabou com a obrigatoriedade do Regime Jurídico Único [RJU] para a contratação de servidores públicos. Cada poder, de certa forma, fez inovações, sejam elas consideradas positivas ou negativas. Então, quando se fala que não houve uma grande reforma administrativa nos últimos anos, é uma mentira.
Veja que a Emenda Constitucional 95, que criou o teto de gastos, promoveu uma Reforma Administrativa bem profunda nos governos [Michel] Temer e [Jair] Bolsonaro. E isso ainda hoje está em vigor, mas dentro de um novo arcabouço fiscal, que coloca limites para o Estado: não se faz concurso público como antes, é limitada a disponibilidade orçamentária. O processo de digitalização avançou de forma muito acelerada nos últimos governos e no atual governo. A máquina pública e o funcionalismo estão passando por essas transformações de forma geral, então, não é verdade quando aqueles que defendem a Reforma Administrativa dizem que não houve avanço nos últimos anos. Houve avanço sim. Vamos pegar fatos recentes, em que o setor público foi extremamente essencial para a sociedade, como no caso da pandemia. Pega o Pix, que recentemente foi criado exclusivamente pelo Estado. São casos específicos que comprovam que houve um avanço, uma adaptação do serviço público à nova realidade. O que falta é avançar e adequar às novas modernidades as carreiras e as profissões. E esse é um processo que tem que ser gradual, com transição, pensando na ponta, porque não se pode romper com um modelo e começar outro criando um espaço que prejudique a sociedade. Tanto o governo como o movimento [sindical] dos servidores públicos querem apresentar propostas, só que há divergências em relação ao que está sendo colocado, em especial na PEC 32 [apresentada pelo Executivo no governo de Jair Bolsonaro] e na PEC 38, apresentada recentemente, que tem uma nova roupagem para a mesma PEC 32 que foi apresentada em 2020.
Mas o Brasil precisa de uma Reforma Administrativa?
Sim, claro que precisa. Primeiro deve-se colocar o serviço público não como um problema. Quando coloca um teto de gastos, você limita a capacidade do Estado de atender a sociedade com o que está previsto na Constituição. Para isso, [temos que] discutir o tamanho das carreiras, remuneração. [A questão dos] privilégios e altos salários é um tema fundamental para se enfrentar porque são distorções, [embora haja] categorias que mereçam receber um bom salário porque o Estado tem que reter esses profissionais altamente capacitados, [como] cientistas [e outros] em várias áreas, se não se perdem esses talentos para a iniciativa privada. Também se poderia avançar na discussão e na regulamentação da negociação coletiva, que é um dos temas principais que está se defendendo junto ao governo, a discussão de mudanças que passem por uma participação maior dos servidores nas mesas de negociação com o Poder Executivo. Hoje não existe isso, a discussão é só do ponto de vista da remuneração. Não há espaço para os servidores discutirem de forma mais profunda com as equipes do prefeito, do governador e do presidente uma estrutura mais adequada, geralmente é imposto aos servidores um modelo de carreira e de reestruturação. Então, a negociação coletiva e a regulamentação são um passo fundamental para modernizar essas relações e aprofundar reformas consensuais. Se a mesa [de negociação] conseguir construir acordos dentro do Executivo, é mais fácil levar essa discussão para dentro do Poder Legislativo. [Há também a questão do] avanço das novas tecnologias, da inovação ou digitalização dos serviços públicos, que de um lado beneficia a população, mas, por outro lado, também, a depender do perfil do estado ou do município, pode [fazer com que] as pessoas encontrem sérias dificuldades para acessar seus direitos. Essa é uma discussão [sobre a qual] há propostas colocadas. Mas eu acho que [outro] ponto, para o qual também há propostas, seria as entidades discutirem a avaliação de desempenho dos servidores, mas não da forma que está. Na forma que está [na PEC 38/2025], há uma decisão que fica só com a chefia e é muito orientada pela questão fiscal e fazendária. [Seria preciso] ter uma avaliação que, de fato, dê condições de avaliar não só para remunerar o servidor, mas para aperfeiçoar, formar, atualizar, enfim, preparar os servidores para esse novo ambiente. Isso é fundamental. Então, acho que a avaliação de desempenho dos servidores e a negociação coletiva são temas que hoje ajudariam muito a agilizar essa modernização do ponto de vista dos servidores.
Eu queria que você fizesse uma avaliação geral da PEC 38/2025, levando em consideração os quatro eixos em que ela foi dividida: Estratégia, Governança e Gestão; Transformação Digital; Profissionalização; e Extinção de Privilégios.
A espinha dorsal do projeto é estimular novas formas de ingresso no serviço público, como o contrato temporário, a terceirização e ampliação de prestação de serviço pela iniciativa privada. A discussão central não se dá pela digitalização. [Em relação à proposta de] digitalização que está colocada no texto, a gente tem total apoio, esse processo até já está [acontecendo] com o atual governo. Nos últimos governos, isso já está sendo implementado, [a PEC] só está levando para a Constituição e impondo que estados e municípios tenham metas em relação a isso, tenham planos de digitalização do serviço público.
Mas o que está colocado e é a espinha dorsal da discussão é que as mudanças propostas estabelecem um formato novo, que é criar um planejamento estratégico, que não está preocupado em melhorar a prestação de serviço ou torná-la mais eficiente, como se diz, mas sim em reduzir custos. A PEC fala, por exemplo, que [a realização de] concurso público deve ser precedida por um estudo que mostre que é preciso fazer o concurso e [para isso] é preciso ver a prestação de serviço indireto, ou seja, via terceirização e contratações temporárias, entre outros modelos. Ela está dizendo que a estabilidade, o concurso público, tudo aquilo que estava na Constituição e que garante baixa influência política [no trabalho dos servidores] e entrega para a sociedade, é opcional. O principal [objetivo] é colocar para a iniciativa privada esse serviço público. Isso traz um problema e distorce toda a agenda de se combater privilégios. O central, quando se fala da reforma, é esse ponto: ela quer reduzir cargos que chama de desnecessários ou obsoletos e estimula a contratação indireta de serviços para, só depois, ter o concurso público. Está muito claro que a reforma está orientada por aí.
[A proposta] traz outros pontos que completam essa leitura. Quando diz que tem que criar uma tabela única de remuneração dos servidores, é impraticável. União, estados e municípios têm várias realidades diferentes para se estabelecer um padrão. [No texto] não está garantida a reposição da inflação [na remuneração dos servidores], o que está engessando mais ainda a valorização dos servidores públicos em todas as áreas. [O texto] inclui também que nos próximos dez anos [deve haver] uma reestruturação das carreiras para garantir que o salário inicial seja 50% da tabela final, prevendo 20 faixas, no máximo, de progressão de carreira. Traz esse viés de não discutir essa adequação, mas de cortar gastos com a remuneração dos servidores públicos. Esses são alguns exemplos de pontos que são estruturais, na minha avaliação, dentro da reforma. Há os outros assuntos colocados, como você mencionou, por exemplo, a digitalização. Mas a digitalização é um processo que exige muito recurso público e hoje a PEC [38/2025] institui um teto de gastos para estados e municípios com despesas de pessoal e investimento. Como é que você coloca que vai expandir, se não vai ter orçamento disponível para poder investir em digitalização de serviços públicos? A Caixa Econômica Federal, que é um banco que tem lucro, não consegue avançar na digitalização dos seus serviços por falta de recurso, imagine a administração pública, em que praticamente 99% dos recursos já são carimbados e sobra pouco para investimento.
Está muito claro que a discussão da reforma está muito direcionada para uma visão fiscal e não de modernização, como a gente imaginava
Sobre o tema dos privilégios [de algumas carreiras do serviço público], a PEC não tratou especificamente. O detalhamento do que pode atingir carreiras de juízes, magistrados, a proposta não tratou, deixou para discutir em outro momento. Está muito claro que a discussão da reforma está muito direcionada para uma visão fiscal e não de modernização, como a gente imaginava. Mesmo os pontos de modernização, como a criação de um bônus pelo desempenho dos servidores, estão atrelados [à questão fiscal]. Você pode ter o melhor desempenho, mas se não tiver o recurso, não vai ser pago. A reforma está direcionada para enxugar o serviço público. Ela usa uma narrativa, uma abordagem, que é muito parecida com a da Reforma Trabalhista e a da Reforma da Previdência, de que é [voltada para o] corte de privilégios, para melhorar o gasto público, etc. Mas ambas as reformas só contribuíram no sentido de reduzir a aposentadoria e aumentar o tempo de contribuição, demorando mais para [as pessoas] se aposentarem e, no caso da Reforma Trabalhista, com outros contratos de trabalho precário. Para estados e municípios, essa Reforma Administrativa vai ser uma situação muito complexa. Tem município que tem contrato temporário que é maior do que [o número de] servidores públicos concursados. E muitos não têm nem contrato com a prefeitura.
A reforma hoje, do jeito que está, representa um atraso
[A PEC] até avança quando regulamenta esses contratos de trabalho [temporário], [estabelecendo] prazo até cinco anos e garantindo os direitos trabalhistas. Agora, será que isso de fato vai ser regulamentado e efetivado pelas prefeituras? A realidade é que, como está colocada, a proposta é jogar todo mundo para a CLT, uma situação mais precária que pode ampliar a interferência política nessas indicações, porque você tira servidor concursado que tem autonomia administrativa e passa a ter contratos temporários ou prestadores de serviço sem essa autonomia. A reforma hoje, do jeito que está, representa um atraso. Eu acho que tem que ter liberdade para os prefeitos, de certa forma, só que [a PEC] não está dando liberdade de contratação, está impondo um modelo.
Eu queria pedir para você destrinchar melhor, na Proposta de Emenda Constitucional, isso que você caracterizou como a espinha dorsal do projeto. Eu destaquei alguns pontos do texto. Um deles estabelece um “limite de gastos com pessoal”, um mecanismo pelo qual a despesa com pessoal só pode aumentar até o limite da inflação dos últimos 12 meses. Outro cria uma revisão anual de gastos pelo poder Executivo. E fala-se ainda em dimensionamento prévio da demanda por força de trabalho antes de se realizar concurso público. É a essas medidas que você se refere? Há outras?
É. Isso tudo está dentro do chamado planejamento estratégico. Isso está na própria PEC e nas regulamentações, vai depender de uma segunda fase [de votação] do Projeto de Lei ordinário complementar. Nessa regulamentação, [o texto] deixa muito claro que as etapas para fazer esse planejamento e seguir esses parâmetros mencionados [significam] avaliar se precisa contratar o serviço público ou se há necessidade de ter serviços que ele chama de “indiretos”. Agora, por exemplo, quem é que vai discutir esse assunto? Vai ser só o grupo fazendário? Não vão estar os servidores? Há uma discussão que ainda não está clara sobre quem vai participar dessa formulação.
O coordenador do GT, deputado Pedro Paulo, fez questão de ressaltar muitas vezes que a Reforma Administrativa não vai mexer na estabilidade dos servidores públicos. E, de fato, o texto não traz nada que aborde diretamente esse tema. Isso é verdade?
Indiretamente, quando estabelece que tem que ter limites orçamentários, que o planejamento estratégico e o redimensionamento do serviço público têm que ser feitos e coloca condições para isso, [o texto] está dizendo que o serviço pode ser executado de forma indireta, está apontando outro caminho, que não é o concurso público. E o concurso público é o único caminho para a estabilidade. Então, ele usa de forma habilidosa um novo caminho para não enfrentar diretamente essa discussão. Quando a PEC propõe a regulamentação da avaliação de desempenho, quando trata da questão do concurso público e do estágio probatório, deixa muito claro que vai ter uma avaliação rigorosa. Eu acho que isso não é um erro, o problema é quem vai avaliar. Uma decisão colegiada pode demitir o servidor, a depender da chefia, das relações e por aí vai. E se houver uma avaliação colegiada, e não transitada e julgada, que estabeleça o desligamento desse servidor, ele perde a estabilidade. Então, a PEC mexe [na questão da estabilidade] nos dois caminhos. A PEC exige manter os três anos do estágio probatório, mas aprofunda nos requisitos, [incluindo a não existência de] disponibilidade orçamentária: se o governador, o presidente ou o prefeito acharem que [aquele cargo] é desnecessário, depois de ter passado no concurso, o servidor não vai ser efetivado. Simples assim. Vai estar tudo condicionado agora à questão orçamentária. Se o Estado fez um concurso público e depois desistiu, mesmo tendo passado no concurso público e seguido rigorosamente as etapas, a pessoa hoje não vai ter mais o direito [à vaga]. Isso é inconcebível do ponto de vista dessa estabilidade.
Não sei se a administração pública vai estar preparada para eventos drásticos como a pandemia com uma reforma dessa
A sociedade, na ponta, olha e acha que isso vai resolver, que vai ter mais gente para atender, mais médico, mais enfermeiro, mais segurança. E não é bem assim, porque o que [a Reforma Administrativa] está propondo são alternativas via setor privado. Vários lugares, como o Rio de Janeiro e Brasília, colocaram OS [organizações sociais] como solução para os hospitais porque poderiam contratar mais médicos, mais enfermeiros, etc. E não resolveu o problema. O exemplo mais recente foi a pandemia [de covid-19]. Foi o setor público, com sua estrutura de pessoal e com recurso público, que viabilizou o atendimento das pessoas, salvou vidas, salvou empresas, ajudou a economia. Isso foi pelo público. Não sei se a administração pública vai estar preparada para eventos drásticos como esse com uma reforma dessa.
A proposta de reforma autoriza a extinção de carreiras do serviço público sem passar pelo Legislativo, dando uma certa autonomia ao Executivo. Isso é preocupante?
É preocupante porque o papel do poder Legislativo de fiscalizar, seja a União, o estado ou o município, é fundamental. E, com isso, você reduz o poder de pressão dos servidores. Fica muito centralizada essa discussão sem ter uma lei, sem um debate público. Então, há uma preocupação em relação a isso. Mas [o texto] traz isso mais vinculado à questão orçamentária, ao planejamento, à reestruturação. Tudo ele coloca nesse contexto fiscal e orçamentário. Agora, o próprio governo federal já tem avançado [nessa direção]. Por exemplo, quando se coloca na PEC que, preferencialmente, a contratação deve se dar para carreiras transversais, ou seja, força que se reduzam as carreiras. Porque há muitas carreiras: uma para o economista, outra para o administrador, o contador, o técnico... O que se está propondo é que isso tudo seja uma só, considerada transversal, ou seja, em vez de você fazer um concurso para cada órgão, você faz um concurso para o administrador em vários [órgãos]. Isso já está, de certa forma, sendo implementado pelo Governo Federal. É um assunto sobre o qual há certo consenso para avançar e organizar melhor. Porque hoje isso é espalhado e o custo de se fazer um concurso para uma vaga é muito alto. Há assuntos convergentes em relação ao que está colocado, mas a preocupação é a questão da espinha dorsal, que muda todo o princípio da reforma.
Você comentou que um dos princípios que tem sido anunciado por quem defende a PEC é a redução de privilégios, mas que o texto não enfrenta isso. Alguns pontos que a PEC tenta vedar costumam, no entanto, ser considerados privilégios de algumas categorias, como as férias superiores a 30 dias e o adicional de férias superior a 1/3 do salário, além da aposentadoria compulsória como sanção. Qual a sua avaliação sobre isso? A proposta, de fato, não atinge os segmentos do funcionalismo que são mais privilegiados?
Esse ponto é central. E alguns deles são um avanço – principalmente aqueles em relação aos magistrados, que vedam a questão das férias e a aposentadoria compulsória. Tem lá a discussão de um auxílio alimentação que é muito superior às demais carreiras, de um auxílio creche, de um auxílio moradia, até de um auxílio paletó. Enfim, é destoante de todas as carreiras. Mas isso está muito atrelado ao funcionamento do Poder Judiciário. O fato é que [no texto] estão proibidas também, por exemplo, todas as progressões de carreira exclusivamente por tempo de serviço. Esse é um assunto que foi colocado nessas vedações. A questão de adicional de insalubridade e outros adicionais, que antes era vinculada por categoria, agora tem que ser individualmente. Então, se o servidor é da mesma categoria, mas está em uma área dentro do órgão que não é insalubre, ele passa a não ter mais esse direito. A questão das paridades em relação a aposentados e pensionistas acaba. Retroatividade em relação a decisões judiciais também fica vedada. Então, outros pontos colocados nas vedações são considerados um atraso. Pode acontecer, por exemplo, uma orientação da administração de não ter avaliação [de desempenho do servidor] para não dar progressão por conta de questão fiscal e fazendária. Hoje é um direito adquirido desses trabalhadores que tenham esses reajustes garantidos, não está vinculado à chefia e a essas avaliações. Então, há pontos que avançam e outros que não avançam desse ponto de vista da questão de privilégio. O problema é que [para combater] só o privilégio do juiz, você traz um prejuízo para a maioria dos servidores que ganham, no máximo, dois, três ou quatro salários mínimos. A média [salarial dos servidores] do Poder Executivo é de R$ 5 mil. Você pega um caso [o dos juízes] que tem uma realidade totalmente diferente e avança com uma reforma que prejudica 90% dos servidores, em especial aqueles que ainda vão ingressar [no serviço público].
Você fez referência à PEC 32/20 que foi apresentada pelo governo Bolsonaro. Num texto de junho de 2025, publicado no site do Diap, você afirmava que a Reforma Administrativa que voltava ao debate com o GT criado no governo Lula era muito diferente daquela apresentada pelo governo anterior, exatamente com a PEC 32/20. Finalizada a proposta do GT, está claro que sua avaliação não é a mesma. Qual foi a participação do governo federal nessa proposta e o que as organizações sindicais esperam dele neste momento? Além disso, a PEC 32/2020 ainda tramita na Câmara. Qual a expectativa em relação a ela?
Agora é que, de fato, a discussão vai começar. A PEC foi apresentada e hoje depende do despacho do presidente da Câmara. Uma das possibilidades de despacho seria apensar a PEC 32 ou outras PECs que tratam de pontos específicos a ela. Toda a chance de [esse texto] avançar ou não depende de alguns fatores. Um primeiro é essa questão de como o Congresso vai lidar com esse assunto e como vai ser o despacho do presidente [da Câmara]. A princípio, [a proposta] teria que pelo menos passar na Comissão de Constituição e Justiça, que é a primeira fase, e depois poderia ir para o plenário, para a votação direta na Câmara dos Deputados. No decorrer da tramitação, ela tende a passar por uma lipoaspiração, digamos assim. Tem muitas gorduras ali colocadas, por exemplo, como obrigações para estados e municípios. A proposta deve ficar mais enxuta, para ter condições de ser votada no plenário da Câmara dos Deputados. Então, depende de como vai ser a condução e a tramitação na Casa. O segundo ponto é qual vai ser a posição do governo, o que é determinante. Eu vejo que o sucesso da proposta depende do envolvimento do governo federal para dar peso, para [orientar] sua base a apoiar a votação. E as articulações são fundamentais porque o governo atual, inclusive, tem pretensão de ser reeleito e [se a PEC for aprovada], ele teria que governar dentro dessa nova lógica. Então, ele tem forte influência. Tem um terceiro cenário, que envolve as eleições. As eleições, sendo no próximo ano, influenciam a votação, forçam que os presidentes da Câmara e do Senado tenham que conversar com o governo. E tem também a pressão dos servidores e de setores de dentro do Congresso Nacional, a princípio, para [o texto] não avançar e, num segundo momento, para negociar. Na votação no plenário, hoje se precisa de 308 votos. A PEC, para ser apresentada, precisava de 171 assinaturas. E não foi fácil ter o apoio das 171 assinaturas. Já tem deputados que assinaram e estão pedindo a retirada do nome. Lógico que isso não faz cair a proposta, mas é uma sinalização de que a pressão dos servidores e outros setores está funcionando. E isso coloca para o presidente da Casa e para o relator [da PEC] a necessidade de ir lapidando essa proposta para tentar um texto de acordo. Então, são cenários diversos. Eu aposto que ela não sai do jeito que entrou. Vai ter que ter muito acordo para votar. Os juízes fizeram uma grande mobilização com parlamentares [em relação à] PEC, como outros setores também estão fazendo. E [este] é um ano em que o Congresso se colocou numa situação muito ruim do ponto de vista do eleitorado, porque pautou votações que blindavam os mandatos, aumentou a quantidade de deputados federais, tem exacerbado o uso de recursos do Fundo Eleitoral individual das emendas [parlamentares] e tem privilegiado uma agenda mais ao mercado. Esses assuntos também pesam muito nesses cenários. O cenário hoje é de que, para avançar, o Congresso tem que reduzir ao máximo os assuntos. Eu acho que a discussão da avaliação de desempenho e até questões de carreira que, mesmo que estejam na PEC, já estão sendo promovidas no Poder Executivo Federal, são assuntos que, na avaliação do governo, se teria mais disposição para negociar. Agora, a criação de novas formas de contratação no serviço público e a imposição de obrigações para os entes subnacionais eu acho que não teriam apoio. Veja que a PEC está limitando a quantidade de secretarias para governadores e prefeitos e também está mexendo nos salários. E esses são assuntos que geram muita polêmica.
O GT foi composto por parlamentares de diferentes partidos políticos, inclusive aqueles mais à esquerda e identificados com as demandas dos servidores públicos e trabalhadores em geral, como o Psol, o PT e a Rede, embora a PEC apresentada à Câmara seja assinada por parlamentares de direita e extrema direita. Como foi a atuação desse GT e como se explica o resultado?
O Grupo de Trabalho foi criado buscando esse equilíbrio, mas ele não funcionou plenamente, porque houve divergências sobre o ponto de vista do método e do conteúdo. Como é o relator que tem o poder de definir o conteúdo em relação aos membros, ele elaborou, fez audiências públicas, mas [o GT] não teve um funcionamento pleno. Esse Grupo de Trabalho deveria ter aprovado esses documentos para depois eles serem protocolados na Casa. Então, houve aí uma resistência...
Então as propostas apresentadas à Câmara nesta semana não foram aprovadas pelo GT?
Não, não foram deliberadas pelo GT. Deveria ter sido, se tivesse consenso. Mas não foi feito isso. O Pedro Paulo tocou esse assunto e, de certa forma, o Grupo de Trabalho nem foi encerrado porque [os documentos] precisam ser aprovados. Foram recolhidas as assinaturas [de parlamentares] para apresentar [à Câmara]. Cada deputado que assinou [o fez pela] sua convicção, sua visão, seu ponto de vista da reforma do Estado. Você pode ver que entre os deputados do PT, PDT, PSB, PCdoB, PV, Rede, entre outros, o bloco mais [próximo ao] governo, ninguém assinou a PEC, pelo que eu vi. Então, já mostra uma divergência no nascedouro. E isso tem sido percebido no decorrer [do processo para] protocolar [a PEC]. Tem parlamentares retirando assinatura, o governo está neutro, mas a ministra [da Gestão e Inovação em Serviços Públicos no Brasil] está dando muita ênfase à questão da estabilidade e das contratações precárias em relação à administração pública. Então, há um distanciamento, do governo, das entidades e desses parlamentares em relação ao texto.
O Pedro Paulo quis tentar legitimar alguma reforma, mas não deu certo porque não houve concordância com o relatório final. O Hugo Motta [Republicanos-PB, presidente da Câmara], que de fato é o arquiteto da coisa, queria alguma proposta, com alguma legitimidade. Mas hoje não existe, a Casa está dividida, essa é a sensação. Então, o cenário futuro hoje é imprevisível e negativo para o assunto, o que significa que não vão votar. Não é por acaso que o próprio Hugo Motta está procurando o governo para tentar negociar pontos da proposta porque ele não vai ficar isolado em véspera de campanha com mais uma pauta que vai colocar a Câmara contra a sociedade, contra os servidores. Ele tem que envolver o governo nisso.
E tem outra coisa: ainda pode ter um nível muito alto de inconstitucionalidade na discussão da PEC. Caso seja aprovada, ela pode depois ser questionada porque a iniciativa de todos esses assuntos deveria ser do poder Executivo e não do Legislativo. Quando se trata de Reforma Administrativa, a competência para propor questões de pessoal, estrutura, etc. é do presidente da República, não do Poder Legislativo. Então, essa discussão nasce toda distorcida. Para consertar, exige muita coisa, inclusive que o Poder Executivo legitime, o que hoje eu acho difícil porque ela vai na contramão do que eu acredito que a maioria do governo pense.
Nas ruas e no parlamento, que outras ações as entidades representativas do funcionalismo público vão encaminhar contra essa proposta? E quem, do outro lado, está defendendo essa reforma?
O momento em que foi colocada essa discussão favoreceu essas mobilizações e manifestações, como as que vão acontecer hoje [29 de outubro]. Em relação à correlação de forças dentro do Congresso, foram as frentes parlamentares vinculadas a um ambiente de negócio, empreendedorismo, agronegócio que deram sustentação para que o Hugo Motta e o Pedro Paulo apresentassem essa proposta. Eles estão bem representados, têm maioria. Se quiserem encarar a discussão, eles têm maioria dentro da Câmara para aprovar.
O fato é que esse ambiente de incertezas que eu mencionei vai fazer com que muitos parlamentares, em função dessa pressão, repensem neste momento o apoio [à PEC]. As entidades dos servidores vêm de um processo de vitória desde a PEC 32. E não só. No Grupo de Trabalho, se conseguiu reduzir a celeridade: pretendia-se ter essa proposta já apresentada no meio do ano e ela só foi apresentada agora. Os bastidores do Grupo de Trabalho [mostram que] só foi apoiada a participação nele para não se discutir mais a PEC 32, para se discutir e [fazer] tramitar uma nova proposta. Esse foi o acordo central. Essa pressão agora vai surtir muito efeito porque os parlamentares não querem problema em ano de eleição. Muitos, inicialmente, queriam encarar essa discussão porque achavam que tinham recursos de campanha, as emendas, que elegeram seus prefeitos e vereadores e que não tinha problema botar esses assuntos. Só que mudou um pouco esse retrato e eles estão repensando isso. E, no último caso, se terá uma proposta bem desidratada. Mas eu acho que o cenário hoje é que, do jeito que está, vai ter que se mexer muito no texto para que consiga um apoio mínimo até de partidos do Centrão.
Uma coisa é clara: este ano não se vota nada porque precisa passar na Câmara e ainda no Senado, onde tem duas etapas. Então, mesmo que a Câmara consiga avançar, tem o Senado e não daria tempo, em função do calendário, de votar este ano ainda. E o Senado tem tido um comportamento diferente da Câmara: eles têm discutido nas comissões, enquanto a Câmara tem, em alguns casos, [criado] muitas comissões especiais e grupos de trabalhos para votar [diretamente em] plenário. E ano que vem, é mais difícil ainda votar [em função das eleições]. O cenário é incerto, mas acho que os servidores estão, de fato, unificados para combater a PEC. Não estão propondo negociar nenhum ponto dela. Desde os juízes até o servidor na ponta, no município, o servidor de entrada, estão unificados. E isso é fundamental para derrotar.
Os servidores têm que pensar em disputar visões de gestão pública e de modelo de Estado, que são fundamentais
Mas outro ponto fundamental é que eu acho que os servidores, as entidades e o próprio governo têm que apresentar propostas. A gente sabe que a correlação de forças é difícil, mas num próximo governo tem que se discutir propostas para sinalizar para a sociedade mudanças do ponto de vista de uma visão de eficiência do governo e dos servidores, para melhorar a máquina pública. Porque não vai ser essa solução simplista de colocar a iniciativa privada no jogo que vai resolver. Na minha avaliação, as entidades têm que buscar um protagonismo de disputar propostas no Congresso Nacional e não ficar só na defensiva. Existe uma hora em que, se não se apresenta proposta, valem as que estão colocadas para a discussão. Acho que essa é uma lição também. Em todos os temas dos últimos tempos só se tem optado por essa estratégia e isso tem mostrado para a gente derrotas [em relação ao] trabalho, previdência e o serviço público. Os servidores têm que pensar em disputar visões de gestão pública e de modelo de Estado, que são fundamentais.