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Entrevista: 
Lúcia Souto

‘A população brasileira e seus direitos têm que caber no orçamento’

No dia 7 de abril é comemorado o Dia Mundial da Saúde, instituído pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1950 como forma de chamar atenção para a importância da saúde e das políticas públicas voltadas para essa área. O tema desse ano, ‘Nosso planeta, nossa saúde’ dialoga diretamente com a pandemia de Covid-19, deflagrada pela OMS no início de 2020. Nesta entrevista, a presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Lúcia Souto fala sobre a importância da data em meio à crise sanitária que, somente no Brasil, fez mais de 660 mil vítimas. Ela explica que este ano a data marca o lançamento da Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde 2022, por meio da qual a Frente pela Vida – articulação criada em 2020 para denunciar as falhas na resposta à pandemia e apontar caminhos para seu enfrentamento – pretende dinamizar um processo de mobilização social em defesa do SUS
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/04/2022 14h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

O que o Dia Mundial da Saúde representa em meio a uma pandemia que já dura mais de dois anos, com mais de 600 mil vítimas só no Brasil, e que acelerou um processo de piora em inúmeros indicadores sociais no país?

Esse momento que nós estamos vivendo em 2022 no Brasil é crucial. Nós tivemos uma destruição total dos direitos da população desde 2016. E as consequências são muito impactantes: a volta da fome, 19 milhões de desempregados, 40 milhões de trabalhadores precarizados - se não é que esses números aumentaram agora -, uma população de rua monumental. São vários indicadores que mostram que aquilo que nós da Saúde Coletiva tanto colocamos, que é a questão da determinação social do processo saúde-doença, está sendo profundamente afetado. Pessoas sem comida, sem moradia, sem direitos. Todas as contrarreformas neoliberais que foram feitas no Brasil atingem na alma a vida e a saúde da nossa população.

Tivemos a pior gestão da pandemia do mundo: 660 mil mortes, que devem chegar a 700 mil, cerca de metade delas evitáveis, segundo estudos de vários pesquisadores. Isso por conta de um projeto de necropolítica, de destruição. A partir de 2016 temos a Emenda Constitucional 95, que atinge o coração do SUS e da saúde como direito e não mercadoria. Ela é única no mundo. Ninguém tem uma emenda de teto de gastos por 20 anos. É uma situação que depauperou, fragilizou, vulnerabilizou o SUS, e elevou um patamar histórico de subfinanciamento para um de desfinanciamento. Perdemos R$ 22,5 bilhões em recursos para o SUS logo de cara. mesmo com o orçamento de emergência que foi aprovado em 2021 para enfrentar a pandemia. E agora não tem mais isso. Continua uma situação terrível de desfinanciamento do SUS. Não tem sequer previsão para vacina no orçamento deste ano. Isso é só um exemplo. Para além disso, há uma outra dimensão, que é a escalada da privatização, por exemplo, pela Adaps [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde], que avança sobre o orçamento público. Temos um percentual de 9,6% do PIB que é gasto com a área da saúde, que mostra a importância da saúde no PIB do país. Só que mais de 50% são gastos privados em saúde. Essa equação tem que mudar radicalmente.

Nosso desejo é marcar historicamente o ano de 2022 com uma grande manifestação do povo brasileiro em torno da saúde como direito e não como mercadoria


A pandemia contribuiu para reforçar a importância do SUS e da saúde pública no imaginário dos brasileiros, na sua visão? De que forma as entidades da Reforma Sanitária podem se beneficiar disso no sentido de reverter esse processo de desmonte que você descreve?

Eu creio que a sociedade brasileira passou a ter uma compreensão maior da importância do SUS e da saúde pública, da importância do financiamento das políticas públicas. Nossa agenda hoje é pela reconstrução de direitos, e ela vai exigir muita mobilização social. Sem essa participação, mobilização popular, sem uma ampla consciência crítica da sociedade brasileira, nós não vamos conseguir reverter esse estrago. É uma tarefa crítica e nós temos que estar preparados para enfrentar esse desafio que está colocado para nós que vivemos esse momento no Brasil.

A Frente pela Vida, que se constituiu no início da pandemia, em 2020, teve uma ação enorme, apresentando denúncias, mas também o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19 [lançado em dezembro de 2020]. Também organizamos no final de 2020 a campanha ‘O Brasil Precisa do SUS’. Essa foi uma articulação fundamental que se consolidou, porque as entidades históricas do Movimento da Reforma Sanitária brasileira, o Cebes, a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], a Rede Unida, a Sociedade Brasileira de Bioética, entre outras, se agregaram à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], à OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], centrais sindicais, movimento agroecológico, movimento ambientalista, que é outra temática crucial, intimamente ligada à emergência de pandemias.

Diante desse sofrimento monumental e desse luto gigantesco que estamos vivendo - porque ainda é uma situação muito critica que nós atravessamos -, muita gente se deu conta de que enfrentar isso só foi possível com o SUS, mesmo fragilizado. E foi graças à divisão tripartite, porque os estados, através do Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], tiveram ação fundamental, muitos municípios tiveram uma ação importante, embora o Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde] não tenha tido a mesma presença e postura do Conass. Isso conseguiu de alguma maneira mitigar a ausência do Ministério da Saúde, mas também mostrou como é fundamental a gente realmente enfrentar essa agenda de reconstrução em 2022.

Mas é fundamental continuar a mobilização. Porque os agentes da privatização estão mobilizados. Não podemos ter ilusões. É uma disputa de projetos de país. É disso que se trata

Para isso nós estamos lançando hoje, Dia Mundial da Saúde, a Conferência Nacional Livre Democrática e Popular de Saúde. A ideia é realmente mobilizar amplos setores, juntar parlamentares, além de todas as nossas entidades, que estão indo para Brasília para o lançamento na Câmara dos Deputados. A ideia é construir essa ampla mobilização nacional, que é um processo que vai implicar, na nossa opinião, a construção de comitês populares de saúde. Nosso desejo é marcar historicamente o ano de 2022 com uma grande manifestação do povo brasileiro em torno da saúde como direito e não como mercadoria. É um desafio grande e estamos nos organizando para isso. A Conferência será realizada no dia 5 de agosto, que é o Dia Nacional da Saúde, então estamos empenhados em construir esse momento histórico.


Quais as principais reivindicações?

Ao longo dos 34 anos da Constituição Federal, que consagrou a saúde como direito de cidadania e dever do Estado, nós tivemos muitas grandes barreiras à efetivação desse direito. Nós estamos com um documento que está na página da Frente pela Vida e das nossas entidades, com diretrizes preliminares que defendemos como estratégicas nesse momento: saúde 100% pública, de modo a interromper o processo e a escalada de privatização da saúde no Brasil, porque, se não, não teremos saúde como direito de cidadania; a questão da saúde como eixo estratégico de desenvolvimento, porque é isso que ela é, uma síntese das políticas de bem estar e qualidade de vida; revogação imediata da Emenda Constitucional do teto dos gastos; financiamento estável para o SUS, porque não dá para ficar mendigando recursos; e carreira de Estado para os profissionais do SUS. Esse é basicamente o nosso pleito.

Mas é fundamental continuar a mobilização. Porque os agentes da privatização estão mobilizados. Não podemos ter ilusões. É uma disputa de projetos de país. É disso que se trata. Estamos disputando o Brasil. O papo neoliberal de que a saúde não cabe no orçamento, que direitos não cabem no orçamento, é uma falácia, é uma mentira insustentável. O orçamento serve para garantir bem estar e qualidade de vida para nossa população, moradia digna, trabalho digno, saúde. A gente tem que quebrar esse discurso único de que não cabe no orçamento. A população brasileira e seus direitos têm que caber no orçamento.


Em que medida você vê um risco de que a pandemia acelere um processo de adoção da tecnologia como uma espécie de panaceia para a saúde, especialmente em um contexto de desfinanciamento do SUS? Me parece que nunca se falou tanto quanto hoje em telessaúde, telemedicina...

Como panaceia é um risco total. O que funciona é o atendimento, o cuidado presencial, no território, o acompanhamento, a vigilância em saúde. A rede integral de atenção e cuidados, regionalizada. Isso é que funciona. Você pode ter o uso das tecnologias para completar. Isso funciona nas especialidades, uma consulta eventual do profissional que está na unidade. Agora, não é a panaceia de nada. Claro que precisamos usar esses dispositivos que estarão à nossa disposição, mas sempre pensando a saúde como direito, 100% pública. É por isso que a gente está batalhando.

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Motivações que pautam as associações criadas vão desde a articulação com ideais da década de 1970, pela democratização e fortalecimento do SUS, até a solidariedade, mas também incluem prestação de serviços ao setor público e privado