Havia um movimento dos educadores nos anos 50/60 que foi reprimido pela ditadura militar. Que mudanças os professores propunham para o sistema educacional brasileiro? Alguma coisa foi implementada antes de 1964?
Uma das reivindicações dos professores era a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional. A Constituição Federal de 1946 já falava que ela deveria ser elaborada. Mas o primeiro projeto só foi apresentado em 1948. E sua aprovação é de 1961. Ela foi fruto de muitos compromissos e conciliações das diferentes forças que lutavam pela educação no Brasil. Por isso, a Lei, que deveria falar da escolarização como um todo, deixava de fora a pré-escola, por exemplo.
O que mudou depois do Golpe de 1964 na educação brasileira?
Com o início do regime ditatorial, os militares não revogaram a lei da educação nacional, mas foram mudando a LDB progressivamente, por meio de outras leis. A primeira modificação aconteceu em 1968, ano da Reforma Universitária, que era uma coisa pela qual os estudantes reclamavam desde o início dos anos 60. Os universitários queriam mais verbas e mais vagas para as instituições de ensino superior. Então, em novembro de 68, os militares promulgaram a Lei nº 5.540, que é considerada a lei da modernização da universidade brasileira. Uma modernização entre aspas. De fato, ela acabou com a cátedra, instituiu os departamentos e um novo tipo de vestibular, classificatório. Mas também tentou desarticular politicamente os estudantes, já que mudou o modelo anterior, em que uma turma freqüentava as mesmas disciplinas até o fim do curso, sempre junta. Além disso, não acabou com o principal problema apontado pelos jovens: os excedentes. Explico: uma pessoa fazia o vestibular para uma determinada escola de uma universidade pública; a de medicina, por exemplo. Digamos que naquela escola houvesse 50 vagas para o curso. E que, quando saiu o resultado, um aluno conseguiu a média pra passar, mas ficou em 70º lugar. Então, ele era considerado um excedente. Passou na prova, mas não entrou na universidade por falta de vaga. Então, veio a Reforma Universitária, mas ela não resolveu esse problema. Apenas acabou com a figura do excedente e não com o excedente propriamente dito. Uma vez que o vestibular passou a ser classificatório, se uma determinada escola tem 50 vagas, são chamados os 50 primeiros. Os outros sequer ficam sabendo se foram aprovados, que nota tiraram. Houve uma mudança muito grande, mas não era na direção que os estudantes queriam. Como era um momento de grande repressão, a coisa teve que ser engolida.
Qual é a relação entre a lei da Reforma Universitária e o Ato Institucional nº 5 (AI-5)?
Segundo alguns estudiosos, a lei da Reforma Universitária teria a função de aplacar os ânimos dos estudantes, que estavam bastante exaltados. Porque, apesar da repressão militar, os alunos protestavam. Então, essa era mais uma forma de tentar silenciá-los.
Muitas pessoas falam da relação próxima dos militares brasileiros com os Estados Unidos. Os norteamericanos influenciaram a política educacional do Brasil? Como?
Durante a ditadura, houve os famosos acordos entre a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento) e o MEC para melhorar a educação brasileira. Eram contratos mais ou menos pontuais, que previam aporte financeiro. O governo brasileiro também se cercou de consultores norte-americanos. Um deles, o Rudolph Atcon, veio ao Brasil e visitou algumas universidades. Fez isso também em outros países da América Latina, como o Chile. E, depois disso, ele fez um relatório. Houve dois documentos básicos que subsidiaram a elaboração da lei da Reforma Universitária: os relatórios Meira Mattos e Atcon. Os dois citavam as constantes manifestações dos estudantes, falavam que a universidade brasileira era muito retrógrada e propunham uma modernização. O Atcon também tem outra publicação, menos conhecida, o ‘Manual sobre o planejamento integral do campus universitário’, que influenciou a nova organização dos prédios das nossas universidades. Na sua concepção, a universidade deve, por exemplo, colocar seus serviços nas extremidades para evitar que gente de fora circule pelos prédios. Então, se existir um hospital universitário, ele tem que estar logo na entrada do campus. Outra regra, seguida nos Estados Unidos, é afastar a universidade da influência ‘perniciosa’ das cidades. Então, as instituições de ensino superior ficam no campo mesmo ou na periferia da cidade, simulando uma espacialidade rural. Os militares decidiram adotar esse modelo norte-americano e começaram a construir o campus das universidades, normalmente fora da cidade. Antes da ditadura, os prédios ficavam na cidade mesmo. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, tinha prédios na Praia Vermelha e no Centro. E o que governo ditatorial fez? Construiu a Cidade Universitária na Ilha do Fundão, para onde foi transferida a maioria dos cursos. A intenção era abafar a movimentação estudantil.
E o que mudou nos currículos?
A modificação mais significativa no currículo foi a instituição dos créditos. Ou seja: antes um aluno que cursasse história, por exemplo, fazia todas as disciplinas com a mesma turma. Depois da lei nº 5.540, as disciplinas do curso de história, continuando no mesmo exemplo, passaram a receber matrícula de estudantes de qualquer curso da área de humanas, misturando estudantes de diferentes cursos e períodos. Isso esfacelou a unidade das turmas.
Em relação ao ensino profissional, em 1971, o governo promulgou a lei nº 5.692, que fixou diretrizes para o 1º e 2º graus (hoje Ensino Fundamental e Médio). Na prática, quais foram as modificações feitas nos cursos técnicos?
Antes da lei nº 5.692, havia o 2ºgrau clássico, voltado para aqueles que fariam um curso universitário da área das humanidades, e científico, para as carreiras de exatas. Mas o que começou a acontecer é que a pessoa fazia o clássico ou científico e não ia para o ensino superior. Ia trabalhar como secretária, por exemplo. E não tinha sido preparada para exercer essa profissão. Então, essa questão de dar uma terminalidade para o 2º grau – discutida desde o Império – estava posta novamente. Os cursos técnicos, por sua vez, existiam, mas eram paralelos ao 2º grau, ou seja, não se cruzavam nunca com o secundário. Isso acontecia desde o governo Vargas, quando Gustavo Capanema era Ministro da Educação e Saúde. Por exemplo: se você entrasse numa escola profissional e fizesse quatro anos, que corresponderiam ao 2º grau clássico ou científico, e depois quisesse ir para a universidade, não poderia, teria que fazer tudo de novo. E os industriais criticavam isso, dizendo que era escolar demais, que não preparava para o trabalho. Queriam que, em pouco tempo, as pessoas pudessem trabalhar com as máquinas. Mas a escola, sobretudo a pública, não tinha as máquinas mais modernas (o Senai nasce como uma proposta dos industriais de formar trabalhadores especializados em pouco tempo). Por isso, quando a lei 5.692 foi para o Congresso, os deputados acharam maravilhoso. Era a oportunidade de formar técnicos de nível médio, que supostamente a sociedade estava precisando. Digo ‘supostamente’ porque não havia nenhum estudo que comprovasse isso.
Então, o que os militares fizeram? Garantiram, em lei, uma terminalidade real para o Ensino Médio, integrando o ensino profissional a ele, obrigatoriamente. Existiam dois objetivos nisso: o primeiro se refere ao fato de o país estar se desenvolvendo e, por isso, precisar de mais técnicos. Em segundo lugar, a lei nº 5.692 teve o que o professor Luiz Antônio Cunha, da Escola de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama de “função contentora da lei”. Quer dizer: os militares acreditavam – mesmo que isso não fosse verbalizado – que se os alunos do Ensino Médio, que estava sem dúvida alguma recebendo mais alunos do que antes, fossem preparados para uma profissão, muitos deixariam espontaneamente de procurar o ensino superior. E aqueles que, mesmo assim, se aventurassem, iriam se deparar com um vestibular classificatório.
Só que a lei não pegou. O governo não destinou recursos suficientes. As escolas particulares até tinham recursos, mas não tinham interesse em oferecer o curso. E as escolas públicas não tinham recursos pra montar escolas profissionais de verdade. Então, as escolas escolhiam os cursos técnicos que iriam dar e, claro, quando era uma escola acostumada a preparar para o vestibular, oferecia, por exemplo, o técnico em análises clínicas e dava aulas de biologia para o aluno passar no vestibular da área da saúde. Assim, em 1982, foi promulgada a lei nº 7.044, que desobriga que o ensino profissional seja junto com o médio, ficando a cargo da instituição de ensino fazê-lo ou não.
Com a lei nº 5.692, duas disciplinas se tornam obrigatórias: educação moral e cívica e educação física. Isso ’pegou’?
Sim. Não só no 1º e 2º graus, como na universidade também. Os militares achavam que no Brasil todo mundo era muito relaxado com o civismo. Então, a obrigatoriedade de uma disciplina como Educação Moral e Cívica era um meio de formar as pessoas para defender o seu país e obedecer às leis; de tornar o cidadão menos questionador e mais obediente. Isso continuou valendo mesmo depois da lei nº 7.044. No ensino superior, essa disciplina normalmente era dada por professores convidados. E ela acabou indo de encontro ao que os próprios militares queriam porque tinha docente que aproveitava esse espaço justamente para fazer a crítica ao regime.
Outro ponto colocado na lei nº 5.692 é a relação entre desenvolvimento e educação. Em que ela é baseada?
Na época da ditadura, essa relação fica muito clara. Os militares adotaram a Teoria do Capital Humano, que dizia que educação não é gasto, é investimento no desenvolvimento do país.
Outro programa educacional do governo militar foi o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), implementado pelo então ministro da Educação, Jarbas Passarinho. De que forma esse projeto contribuía para a manutenção do status quo da ditadura?
Os militares acabaram com todo o movimento da educação de adultos do início dos anos 60, liderado por Paulo Freire, que tentava alfabetizar os adultos e, ao mesmo tempo, despertar sua consciência política. Esse método de alfabetização foi substituído pelo Mobral, que é uma técnica desidratada. Trabalhava-se com palavras geradoras, como Paulo Freire propunha, mas eram palavras que não davam margem a discussões muito elucidativas. Não tinha nada a ver com aqueles movimentos mais contestatórios, que alfabetizavam discutindo a política do país. E foi um fracasso.
Por que, em geral, no mundo inteiro, o ensino primário dura quatro ou cinco anos? Porque é o período necessário para que o aluno incorpore a leitura, a escrita, o cálculo e aprenda de uma forma definitiva. O problema de campanhas de alfabetização, por melhores que sejam, é que as pessoas até aprendem, mas esquecem. O aluno que não é inserido num círculo alfabetizado em pouco tempo esquece. E o Mobral foi apenas uma campanha. Não deu continuidade à educação.
Você é autora, junto com Paolo Nosella, do livro ’A educação negada: introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea’. Nele, vocês entrevistaram nomes importantes da educação, como Paulo Freire, e pessoas que participaram da elaboração de políticas educacionais, inclusive durante a ditadura militar, como Jarbas Passarinho. Como foi a escolha dos personagens?
Queríamos, na época, começo dos anos 90, falar sobre a educação brasileira com aqueles que tinham vivido as diversas mudanças, seja como professor, seja como político. Buscávamos a história oral, as memórias, mais do que as correntes pedagógicas, que já tínhamos nos livros. Procuramos, então, pessoas que quisessem contar o que viveram e como enxergavam a educação. Também era importante entrevistar pessoas com concepções de sociedade e educação diferentes para não termos um único discurso.
O livro é resultado de uma pesquisa financiada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). As entrevistas foram bem longas, mas no livro há apenas trechos delas. Conversamos com o Paulo Freire, por exemplo, durante mais de quatro horas. O mesmo ocorreu quando falamos com o Passarinho. Lembro que esta última entrevista foi muito boa, principalmente porque ele não estava com nenhum cargo político e pôde falar de forma mais solta.