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Entrevista: 
Talíria Petrone

Doutrinação: ‘Isso é uma falácia, uma invenção que dialoga com o pensamento conservador de um Brasil’

“Todos os professores, estudantes e funcionários são livres para expressar seu pensamento e opinião nos termos do artigo 206, incisos I e III da Constituição”. Esse é o primeiro artigo do Projeto de Lei 502/2019, da deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), que institui o programa ‘Escola Sem Mordaça’, e tomou como base o texto anterior do projeto do ex-deputado federal do Psol Jean Wyllys, batizado com o nome de ‘Escola Livre’ (PL 6.005/2016). A proposta foi apresentada no dia 6/2, em oposição ao ‘Escola sem Partido’ (PL 246/2019), protocolado no primeiro dia da nova legislatura (4/2), pela deputada Bia Kicis (PSL-RJ). O Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou as duas deputadas para uma reportagem. E agora publica a íntegra das duas entrevistas (leia ao fim a entrevista com Bia Kicis), em formato de pergunta e resposta. Nesta entrevista, Talíria explica do que se trata o ‘Escola Sem Mordaça’, a diferença entre as duas proposições e defende que essa suposta “doutrinação nas escolas”, de que fala o ‘Escola Sem Partido’ é “uma falácia”, “uma invenção que dialoga com o pensamento conservador de um Brasil que ainda não encerrou a colonização”. A deputada também explica por que se fez necessário um projeto para defender que a escola ‘não tenha mordaça’: “Mesmo sabendo que o ‘Escola Sem Partido’ é um projeto inconstitucional, consideramos importante afirmar nossa convicção pedagógica, ou seja, a importância de permitir autonomia a alunos e professores no processo de ensino-aprendizagem e de inserção no mundo”.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 21/02/2019 14h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Você, junto às demais parlamentares do PSOL na Câmara Federal, protocolou, na primeira semana da nova legislatura (6/2), o Projeto de Lei nº 502/2019, que institui o programa “Escola Sem Mordaça”. Do que se trata esse projeto?

Este é um projeto que garante que a sala de aula seja um espaço da pluralidade, da diversidade, da inclusão, de todos os alunos e alunas, independente da origem. É uma proposta que visa garantir que a escola seja um espaço da pluralidade, da diversidade e instrumento para que, através do processo de aprendizagem, [se chegue à] correção da desigualdade histórica deste país. Em um país em que a quarta causa de morte dos jovens é o suicídio, em que jovens não são aceitos na escola e, também, em casa, a escola não pode ser lugar de perseguição dos agentes de educação, não pode ser um lugar de segregação de alunos. O que queremos com esse projeto é que a escola seja um lugar onde caibam todos os adolescentes e crianças, conforme previsto no ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente].
 

Já havia um projeto do PSOL (6.005/2016) semelhante, o ‘Escola Livre’, de autoria do ex-deputado Jean Wyllys. Você aproveitou conteúdos desse projeto? Existe diferença entre os dois?

Em debate com profissionais de educação, resolvemos mudar o nome do projeto, sob o entendimento de que o Escola sem Partido foi quem colocou mordaça, é quem quer silenciar os profissionais da educação. Trata-se não só de uma adaptação ao texto anterior, como uma homenagem ao nosso companheiro Jean.
 

Parte do projeto parece responder diretamente ao Projeto de Lei 246/2019 que institui o ‘Escola Sem Partido’, apresentado pela deputada Bia Kicis dois dias antes (4/2). Por que vocês entenderam que era necessário um projeto para defender que a escola não tenha mordaça?

Embora a Constituição e uma série de dispositivos legais tratem disso, a gente achou que, como o Brasil vive um momento de instabilidade democrática, mesmo sendo esse um projeto inconstitucional, se faz necessário que essa Casa [Parlamentar] aprove uma proposição de educação que afirma uma convicção pedagógica que não seja da instrução, e sim de construção de um aluno que seja autônomo no seu processo de aprendizagem, no seu processo de inserção no mundo.
 

O Projeto Escola Sem Partido estabelece “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Um dos trechos fala que o professor deve “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria”. Qual a diferença entre as duas propostas em relação a esse assunto?

Apesar de isso estar escrito no texto do Escola Sem partido, o projeto proíbe algumas vezes ou mesmo interdita o debate de gênero, por exemplo, dizendo que é um debate da família. Na argumentação do Escola Sem Partido, falar de racismo não implica falar sobre a escravidão. O que esse projeto propõe é perseguir ideologias do campo democrático. Esse trecho em destaque de neutralidade política, ideológica e religiosa não reflete o que é o projeto como um todo. Embora receba o nome ‘Escola Sem Partido’, o projeto toma parte, tem lado, o da manutenção das desigualdades históricas do Brasil, quando não permite, por exemplo, à escola discutir homofobia, feminicídio ou mesmo contextualizar o processo histórico-político do país. Em um país em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, a escola precisa discutir educação sexual. Em um país em que 70% dos jovens são negros, faz-se urgente abordar a questão do racismo na escola. Não permitir que a escola seja um espaço de debate, pluralidade e diversidade é estar na contramão da realidade brasileira. Precisamos reafirmar uma concepção pedagógica baseada em Paulo Freire, com uma expectativa libertadora.
 

Uma das novidades do novo PL ‘Escola Sem Partido’ é que ele assegura ainda ao estudante o direito de gravar as aulas. Qual a sua avaliação sobre isso?

Eu considero absurdo parlamentares eleitos, pessoas que deveriam ser guardiões da Constituição, se unirem em uma prática que viola os direitos dos cidadãos, a dignidade humana, a liberdade de cátedra, incentivando alunos a filmarem os professores para que esses sejam depois perseguidos. A gente vê isso com muita tristeza e indignação. Há vários processos contra profissionais da educação, pessoas que estão ficando cada vez mais adoecidas. Como se não bastasse aumento do corte nos investimento de educação, precarização da educação, escolas sem investimentos, refeitórios que caem quando chove, professores exaustos que fazem dupla jornada, além disso, a escola agora passa a ser policiada.
 

O Brasil convive, historicamente, com políticos, vinculados a partidos e que até exercem cargos eleitos, e que são professores, com trabalho em sala de aula, seja da direita ou da esquerda. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, é um exemplo; o ex-ministro e candidato nas últimas eleições Fernando Haddad, do PT, é outro; o ex-deputado Chico Alencar, do seu partido (Psol), e a deputada eleita por Santa Catarina Ana Campagnol (PSL), a quem já fizemos menção, é outro exemplo. A partir da concepção do seu projeto de lei, professor pode ter vínculo e militância partidária? Como se estabelece o limite entre a inserção partidária e o trabalho educativo?

Isso não se trata nem de esquerda ou direita. Essa é uma questão importante. Quando falamos de uma educação libertadora, é porque acreditamos na pluralidade de ideias e concepções da própria História. Quando alguém dá uma aula de História, por exemplo, esse professor tem também a sua avaliação sobre o processo histórico. Quando se trata da ditadura nas escolas, obviamente, o professor precisa abordar o tema sob a perspectiva dos direitos humanos, de que nós somos signatários. Haverá certamente um professor que não concorda com o capitalismo, mas isso não implica afirmar que ele não trata o tema sob perspectivas diversas em sala de aula. Então o problema não é ser de esquerda ou de direita. O problema é quando se exclui a diversidade e a pluralidade em sala de aula.
 

Seu PL ‘Escola Sem Mordaça’ tenta garantir respeito à “livre manifestação da orientação sexual e da identidade e/ou expressão de gênero”. Isso não entra em conflito com parte da sociedade que denuncia uma suposta “ideologia de gênero” nas escolas e que feriria os princípios das famílias. Como você vê isso?

Imagina um aluno que está descobrindo a sua sexualidade na adolescência, como é próprio dessa fase, e se descobre gostando de menino, apanha na escola porque tem um jeito afeminado, porque manifestou um desejo... A escola não precisa discutir LGBTfobia? A escola é um espaço coletivo, especialmente a escola pública, que tem que respeitar as escolhas individuais, todas as crenças religiosas e não religiosas, bem como todas as manifestações no plano individual. É um espaço que tem que respeitar os princípios constitucionais, o Estado laico, a liberdade de cátedra, o ECA, que diz que não se pode segregar nenhuma criança e adolescente no ambiente escolar. E quando você usa uma religião, uma fé para imprimir algo que deveria ser coletivo, você segrega alguns corpos. Então, o lugar para manifestar a fé não é a escola. A fé é uma manifestação individual, cada um tem direito a escolher a sua ou de não tê-la.
 

O PL do Psol garante a liberdade de expressão de professores e alunos. O Movimento Escola sem Partido, no entanto, defende que em sala de aula só pode existir liberdade de cátedra, não de expressão, porque o aluno é uma audiência cativa, que se encontra em posição diferente (e de alguma forma subordinada) ao professor. Qual a sua avaliação sobre isso?

Pedagogicamente, isso é um absurdo, e estou falando agora enquanto professora. A escola precisa ser um lugar de ensino-aprendizagem, o que implica saber que o aluno não é uma tábula rasa ou uma folha em branco, um lugar a que o professor chega e coloca conteúdo na cabeça dele. O aluno é parte do processo da construção da aprendizagem, sendo assim, este aluno tem o direito a se organizar por meios de grêmios, garantido pela legislação vigente, a opinar, a construir junto com os outros agentes da escola o processo de ensino-aprendizagem.
 

O Movimento Escola sem Partido e os parlamentares que têm apresentado projetos nesse sentido denunciam que a escola brasileira enfrenta um grave problema de doutrinação. Seu projeto não aborda esse suposto “problema”. Por quê?

Porque a gente não acredita nisso. Aliás, se houvesse essa tal ‘doutrinação’ nas escolas, não teria sido eleito um presidente que prefere um filho morto a ser gay, que tem saudade da ditadura civil-militar. Porque sabemos que a escola precisa ser um lugar da pluralidade, da diversidade, conforme os marcos democráticos. Porque sabemos que as escolas não têm nem um quadro para escrever, que o professor nem tempo de preparar a aula tem, porque tem que trabalhar em outras escolas. Como teria tempo para fazer essa tal ‘doutrinação’? Isso é uma falácia, uma invenção que dialoga com o pensamento conservador de um Brasil que ainda não encerrou a colonização.
 

O projeto garante também “a laicidade e o respeito pela liberdade religiosa, de crença e de não-crença, sem imposição e/ou coerção em favor ou desfavor de qualquer tipo de doutrina religiosa ou da ausência dela”. Como a proposta dialoga com o “direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos” defendido por muitas famílias e de que também trata do PL da deputada Bia Kicis?

Quanto à educação moral e religiosa, os pais têm todo o direito de fazê-la em casa. A escola, como já disse, tem que respeitar o Estado laico. Portanto, poderemos ter nas escolas um menino do terreiro, do candomblé, o evangélico, o budista, o ateu. A escola não pode escolher nenhuma religião dessas. Então, cabe aos pais em casa oferecer a educação moral e religiosa dos seus filhos e cabe à escola ser um lugar de ampliar a visão de mundo, inclusive enfrentando os problemas sociais de violência doméstica, racismo, entre outros.
 

O novo PL Escola Sem partido se volta só às escolas públicas. O seu se volta às escolas públicas e particulares. Por quê?

É porque mesmo uma escola particular católica, por exemplo, não pode segregar um estudante que não é católico. Isso está presente no ECA, na Constituição.
 

Qual a sua avaliação sobre o Projeto de Lei 246/2019, que institui o Programa Escola Sem Partido, da deputada Bia Kicis (PSL-RJ)?

Ele fere todo o preceito constitucional. Inclusive, em Niterói (RJ), quando estive como vereadora, obtivemos uma grande vitória: a declaração de inconstitucionalidade de uma emenda que seguia a linha do Escola Sem Partido. Trata-se de um projeto inconstitucional, que impede que a escola seja um lugar da discussão. A instrução serve para quê? Para formar um aluno, ser mão de obra barata para o mercado. Não faz um aluno com pensamento plural, com autonomia para escolher seus próprios rumos. Eu acho que este PL vai na contramão da construção pedagógica que deveria prevalecer nas escolas.

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A deputada Bia Kicis (PSL-RJ) protocolou no primeiro dia da nova legislatura (4/2) um novo texto do Projeto de Lei ‘Escola sem Partido’, o PL 246/2019. Trata-se de uma atualização do projeto anterior (PL 7.180/2014) — de autoria do deputado Erivelton Santana, eleito pelo PSC, mas hoje filiado ao Patriota —, que foi arquivado em dezembro do ano passado. Tal qual a proposta anterior, cujas ideias são evocadas pelo Movimento Escola Sem Partido (Mesp), criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o projeto entende ser necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir uma suposta prática de “doutrinação política e ideológica” nas escolas, bem como a “usurpação dos direitos dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. No mesmo dia, a deputada Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou o Projeto ‘Escola sem Mordaça’, que vai no sentido contrário. O Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou as duas deputadas para uma reportagem. E agora publica a íntegra das duas entrevistas (leia ao fim a entrevista com Talíria Petrone), em formato de pergunta e resposta. Nesta entrevista, Bia Kicis explica as mudanças feitas ao novo texto, como a possibilidade de os alunos gravarem as aulas e a proibição de manifestação político-partidária nos grêmios estudantis. No texto do projeto, ela escreve ser “fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas”.
A Câmara dos Deputados recebeu dois projetos sobre o que deve ou não ao professor ensinar. O primeiro, ‘Escola Sem Partido’, propõe combater a “doutrinação” nas escolas. O segundo, ‘Escola Sem Mordaça’, busca garantir a “livre expressão de pensamento e manifestação”
O projeto ‘Escola sem Partido’ seria votado hoje (31/10) pela Câmara. O texto, que está em uma comissão especial, sofreu modificações na véspera. A versão atual mantém a proibição do uso dos termos "gênero" e "orientação sexual" nas escolas, bem como veda a promoção do que o projeto de lei chama de "ideologia de gênero" e "preferências políticas e partidárias". Mas, se antes o projeto dizia que essas noções não poderiam estar presentes em livros didáticos e paradidáticos, avaliações para o ingresso no ensino superior, provas de concurso para o ingresso na carreira de professor e instituições de ensino superior, respeitada a autonomia didático-científica das universidades, agora a proibição é mais abrangente: pelo novo substitutivo, as regras serão aplicadas também às políticas e planos educacionais, aos conteúdos curriculares e aos projetos pedagógicos das escolas. Além disso, a todos os materiais didáticos e paradidáticos, e não só aos livros. Em julho, a Revista Poli nº 58 publicou matéria sobre o Escola Sem Partido e como o movimento está alinhado a parlamentares ligados a segmentos religiosos, evocando um discurso moralista para atacar a autonomia docente