Alguns países da Europa, como Alemanha e Áustria, têm debatido tornar a vacinação contra a covid-19 obrigatória, em meio a um aumento do número hospitalizações e óbitos nas últimas semanas, principalmente entre pessoas não vacinadas. Como vê a questão da obrigatoriedade da vacinação nesse momento e quais os limites desse debate em países democráticos?
O caminho da obrigatoriedade traz questões complicadas. Claro que com a pandemia você impossibilitar as pessoas de estarem em determinados ambientes sem estarem vacinadas, de viajarem sem estarem vacinadas, isso ajuda, mas a obrigatoriedade por si só, se funcionasse, o problema não existiria na Europa nem nos Estados Unidos. Os Estados Unidos principalmente, já tentaram várias situações de obrigatoriedade para outras vacinas. E se a gente lembrar da Revolta da Vacina, foi quando anunciou-se a obrigatoriedade da vacina. Então mesmo pessoas que querem se vacinar, que são a grande maioria no nosso país vale dizer, diferente da Europa e dos Estados Unidos, essas pessoas acabam sendo contra não a vacinação, mas a obrigatoriedade, e isso gera mais discussão que favorece aqueles que são contra a vacina, aumentando o número de conteúdos negativos em relação à vacinação, o que destrói mais ainda a confiança na vacinação.
No Brasil nós construímos a confiança na vacinação ao longo do tempo. E construímos uma confiança muito histórica, diferente de Europa e Estados Unidos que nunca tiveram a confiança nas vacinas nos níveis que a gente tem. A França por exemplo, a última que eu verifiquei a confiança, a não confiança na vacina na França é de 13%, sendo que a média no mundo é de 4, 5%. Aqui no Brasil é no máximo 5% de pessoas que realmente são contra a vacina. Quando a gente olha as pesquisas de intenção em vacinar contra a covid no Brasil o resultado é que 94% das pessoas querem se vacinar.
Agora, quando a gente fala de quarta onda, quinta onda, dependendo do país, tem países na Europa com coberturas muito baixas. Se olhar hoje a cobertura vacinal deles não é tão diferente da nossa, para duas doses, mas eles vacinaram há muito mais tempo. E a gente sabe que as vacinas têm uma limitação de tempo de proteção, é por isso que o Brasil está largando agora adotando a terceira dose para toda a população maior de 18 anos.
Você falou de uma cultura de vacinação construída no Brasil, diferente da Europa. Quais os fatores determinantes para isso, na sua visão?
Quando o brasileiro vê o risco ele busca a vacina. É no Brasil a gente vivia um longo período de alta mortalidade infantil. A maioria das causas principais de mortalidade infantil que são as doenças infecciosas, já não são um problema na Europa há muito tempo. Então a nossa população viu as crianças morrendo. É muito importante a percepção de risco para você procurar a vacinação. E o que a vacinação fez? Primeiro que tínhamos campanhas muito empáticas. Era quase uma Copa do Mundo você sair para vacinar nas campanhas. Estava todo mundo ali junto para acabar com a poliomielite, acabar com o sarampo, doenças que todo mundo conhecia. E sempre tivemos resultado imediato de adesão e muito precoce de resultado. A doença sumia. E o brasileiro entendeu que vacina pode ser importante. Ele viu na prática isso. Na Europa as doenças infecciosas não são a maior causa de mortalidade há muito tempo.
Eu nunca vi um europeu se negando a tomar a vacina da febre amarela para vir para o Brasil. Eu nunca vi um brasileiro se negando a tomar a vacina da febre amarela para viajar. Por isso que hoje com o cenário que a gente chama de infodemia é muito importante é a ciência se comunicar com a população
Mas no Brasil temos visto atualmente o alerta contra a questão da queda na cobertura vacinal contra o sarampo, com a reemergência da doença em alguns bolsões.
É, hoje não tem nenhuma vacina do calendário público para crianças que tenha atingido a meta de 95% de cobertura, hoje as nossas coberturas estão todas em média 60%, chegando em alguns estados a ter 30, 40%. É um problema. Vemos hoje um risco real de termos casos de poliomielite de volta ao país. Mas a percepção desse risco é zero. Essa baixa cobertura é multifatorial. E um dos principais fatores é a falta de percepção de risco, que com uma comunicação que o Ministério da Saúde não faz. Se antes a gente tinha essas campanhas empáticas, agora se limita na véspera da campanha a dizer venha tomar a vacina, e isso não chama mais ninguém.
No caso da Covid-19, o presidente se recusa a vacinar, o ministro vai e interrompe a vacinação dos adolescentes, depois volta atrás. E nada está sendo feito pelo Ministério da Saúde em relação as baixas coberturas. E uma das preocupações da Opas e de todos nós é que a América Latina vai ser alvo de muitos surtos por conta dessas baixas coberturas.
Eu queria que você falasse um pouquinho mais dessa questão da queda na cobertura, porque entre os motivos alegados não só na Europa, mas nos Estados Unidos, também circula muito essa questão da liberdade de escolha, liberdade individual, do que fazer com o próprio corpo. E essa discussão da queda da cobertura e o risco que ela traz para propagação de uma pandemia me parece ir de encontro um pouco com esse argumento.
É por isso que eu comecei dizendo que o pior caminho é obrigatoriedade, o caminho bom é a empatia, o caminho bom é uma comunicação adequada com a população. Na Europa você já encontra um campo minado, de muitas dúvidas, muitas incertezas em relação à vacinação de maneira geral, então obrigar certamente significa ser repreendido inclusive por quem é a favor da vacina. Porque a questão aí não diz respeito a vacinação, mas a questão da do direito de escolha. Só que existem várias outras situações que a gente não escolhe e eu nunca vi um europeu se negando a tomar a vacina da febre amarela para vir para o Brasil. Eu nunca vi um brasileiro se negando a tomar a vacina da febre amarela para viajar. Por isso que hoje com o cenário que a gente chama de infodemia é muito importante é a ciência se comunicar com a população.
Em que medida o sucesso da ciência no desenvolvimento de várias vacinas contra a Covid-19 gera inseguranças em relação à vacina na população, no sentido de que elas tiveram ritos de testagem mais acelerados em função da emergência sanitária?
É claro que isso gera dúvidas, gera excitação, gera escolher vacina. Ninguém queria Astrazeneca, agora todo mundo com medo da Pfizer e assim vai... Quando o ministro foi na televisão numa coletiva dizer que estava suspendendo a vacinação de adolescentes contra a covid, porque uma menina teria morrido depois de tomar vacina, mas que ele não sabia se era da vacina, mas achava mais seguro acho que era mais seguro, é claro que isso impactou.
Em 1998 houve o caso do estudo preliminar publicado na revista Lancet vinculando comportamentos autistas em crianças à vacina contra sarampo, rubéola e caxumba, o que acabou não ficando comprovado. Em que medida isso ainda permeia o imaginário das pessoas na Europa e contribui para a baixa cobertura vacinal?
O [Andrew] Wakefield famoso doutor que publicou esse estudo, ele continua até hoje falando por aí. Claro que muitos médicos e profissionais da saúde viram uma publicação no The Lancet com essa informação e pararam de prescrever a vacina. Até hoje tem gente dizendo que a vacina contra covid causa autismo. Essa coisa do autismo todo mundo conhece e manda essa. Na Europa teve um peso muito grande, eles são mais desconfiados, têm uma cultura contra a indústria farmacêutica.
Você vê um uso político do discurso contra a vacinação, na medida em que partidos da extrema-direita europeu têm fomentado esses discursos na população?
Sim, essa coisa do ódio é muito forte. Isso vai ser um problema muito grande no mundo todo, o sentimento de ódio, o fortalecimento do ódio, da politização da saúde. Infelizmente a politização tem um papel forte nessa questão da infodemia, da confusão. Você tem uma população assustada, vendo mortes todos os dias. E então isso tudo tende a destruir a confiança nas vacinas.