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Entrevista: 
Dante Moura

'É um ataque ao direito dos filhos da classe trabalhadora de terem acesso ao conhecimento'

No dia 8 de outubro, o Ministério da Educação (MEC) lançou o programa Novos Caminhos. Voltada para a Educação Profissional e Tecnológica, a iniciativa tem como meta elevar em 80% o total de matrículas em cursos técnicos e de qualificação profissional, saltando de 1,9 milhão em 2018 para pouco mais de 3,4 milhões em 2023. Ainda segundo o governo, a maior parte desse incremento precisa vir das redes estaduais de ensino. O Novos Caminhos, no entanto, não acena com uma indução via recursos financeiros, mas com outras formas de incentivo, como o compartilhamento da infraestrutura dos Institutos Federais. Além disso, parte da carga horária dos cursos será feita pelo que o ministro Abraham Weintraub chamou de “ensino parcial”, com conteúdos teóricos oferecidos a distância e aulas práticas em laboratórios “uma a duas vezes por semana”. Outra ênfase do governo é nas “demandas do setor produtivo”. “A educação tem que estar voltada para o mercado de trabalho”, defendeu Ariosto Antunes, titular da Setec, a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do MEC. Para o entrevistado desta edição, o Novos Caminhos escolhe um percurso político bastante conhecido: o da certificação em massa para melhorar indicadores. Dante Moura, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e coordenador do grupo Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), alerta ainda para a coincidência do novo programa com a implantação da reforma do ensino médio, obrigatória a partir de 2020.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 06/11/2019 15h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Qual é a sua análise geral do Novos Caminhos?

Novos Caminhos será um programa para alterar os indicadores enganando a população que, ao final, até vai receber um diploma de técnico em alguma coisa, mas não vai ter acesso ao principal, que são os conhecimentos correspondentes àquele diploma. Com relação ao conteúdo, o programa não traz muita novidade. É, na verdade, a continuidade do Pronatec, programa lançado no governo Dilma [Rousseff] que, por sua vez, ia em sentido contrário ao conjunto de medidas tomadas entre 2003 e 2016 que foram ao encontro dos interesses da classe trabalhadora, na perspectiva da inclusão com qualidade. Ao invés de caminhar para a integração entre a formação geral e a formação profissional, o Pronatec operou na separação entre elas. E o que é mais grave: foi responsável pelo boom dos cursos FIC [Formação Inicial e Continuada], voltados para jovens e adultos com baixa escolarização, mas descolados da possibilidade de se elevar a escolaridade dessa parcela da população. Essa é a história sintética do Pronatec. O que acontece depois? O governo [Michel] Temer lança o MedioTec – que também é o Pronatec com outro nome. E, agora, temos o Novos Caminhos. Embora, no lançamento, o governo tenha dado ênfase maior aos cursos técnicos, não se falou em cursos técnicos integrados ao ensino médio. São cursos técnicos concomitantes ao ensino médio, na mesma linha do Pronatec, com um grande agravante, que é a ênfase na modalidade a distância via parceria com o setor privado.

E embora o MEC cite o Plano Nacional da Educação, que promete aumentar em 80% as matrículas na educação profissional técnica de nível médio, a partir da Emenda Constitucional 95, que congelou os recursos destinados à educação por 20 anos, ficou decretado o fim das metas e estratégias do PNE. Aumentar matrículas nessas condições é avançar em um processo exclusivamente certificatório. O sujeito vai ser formado de maneira aligeirada, pobre, para as atividades periféricas do mercado. E isso tem um destino certo: a classe trabalhadora empobrecida desse país.


A educação profissional é um segmento que engloba três níveis de ensino: a Formação Inicial e Continuada, que a qualificação para o trabalho, em geral de curta duração; os cursos técnicos, que exigem o ensino médio; e os cursos tecnológicos de graduação ou pós-graduação, que são de nível superior. O governo fala em mais 1,5 milhão de matrículas até 2023, mas não há clareza sobre quantas serão em cursos técnicos e quantas em cursos FIC.

É verdade, não temos mesmo segurança sobre o que vai ser. Não sei se por falta de conhecimento do ministro – creio que não –, ou se é uma cortina de fumaça mesmo, mas o fato é que os exemplos que ele deu no lançamento – encanador e eletricista – não são de cursos técnicos. Não existe curso técnico de eletricista nem de encanador. Existe em eletrotécnica e em construção civil, formações muito mais amplas. A denominação ‘encanador’ e ‘eletricista’ é muito mais coerente com os cursos FIC. E se houver continuidade com o Pronatec, [essa ampliação de matrículas] vai ser nos cursos FIC. Mas, acompanhando os dados, a gente infere que está havendo uma mudança. A trajetória do Pronatec é mais ou menos a seguinte: de 2011 a 2014 houve um crescimento vertiginoso da oferta de educação profissional principalmente nos cursos FIC. Foram seis milhões de matrículas em FIC e dois milhões em cursos técnicos. Mas em 2015, com o agravamento da crise econômica – que vem associada à crise política –, a oferta diminui drasticamente. Isso impacta mais os cursos FIC, de maneira que, em 2016, a matrícula dos cursos técnicos já é ligeiramente maior. E isso vem se mantendo.

A própria reforma do ensino médio comporta a possibilidade de oferta de cursos FIC para compor a formação do estudante no itinerário da educação profissional. Perceba que a denominação do itinerário é: formação técnica e profissional. A lei [13.415] e, principalmente, as Diretrizes Nacionais Curriculares do Ensino Médio deixam claro que o estudante pode fazer um curso técnico, que aí se encaixa na denominação ‘técnica’, ou um conjunto de cursos FIC cuja soma da carga horária alcance o mínimo necessário para que ele possa receber o diploma – o que é muito grave.

Dito isso, o Novos Caminhos pode investir nas duas possibilidades, tanto nos cursos técnicos, como nos cursos FIC associados ao itinerário da formação técnica e profissional. Também por isso há uma grande confusão quando o governo fala em “investimento em cursos técnicos”, mas dá como exemplo eletricista e encanador, que são cursos de qualificação profissional.

 

O Novos Caminhos promete “turbinar” a expansão de vagas, mas não crava quanto dinheiro será investido nessa direção. O que se sabe até agora sobre o financiamento do programa?

Quase nada. Uma das portarias [o site dedicado à iniciativa faz referência a quatro delas – 1717, 1718, 1719 e 1720] fala na destinação emergencial de R$ 500 milhões decorrentes de restos a pagar, mas só. Não há algo definido como perene para ser o financiamento desse programa que se coloca a ousada meta de aumentar em 80% as matrículas. Evidentemente isso não vai se alcançar. Pelo menos, não da forma que o Plano Nacional de Educação prevê. O PNE prevê triplicar a oferta de educação profissional durante seus dez anos de vigência. Nos cinco primeiros anos, dentre os quais nos três primeiros não existia o efeito da EC 95, houve uma ampliação de investimento e uma diminuição da oferta. Como, nos próximos dois anos, haverá uma ampliação de 80%? E sem a definição clara de uma fonte financeira?


Porque o Pronatec, mal ou bem, era um programa com bilhões a serem investidos...

Agora é o contrário. A forma histórica de indução utilizada pelo governo federal é o financiamento. Ao mesmo tempo, as Diretrizes Nacionais Curriculares do Ensino Médio foram aprovadas no final de 2018 e 2020 é o ano a partir do qual as redes estaduais são obrigadas a implantar a reforma. São obrigadas porque a lei determina, mas elas não têm condições nem estímulo financeiro do governo federal. Ao contrário da Rede Federal, em que cada instituição é uma autarquia com autonomia administrativa, didática, pedagógica e financeira, as escolas das redes estaduais não têm alternativa. A secretaria estadual de educação depende de recursos, e o recurso que existir será para fazer segundo este modelo, mais precarizado ainda do que o Pronatec.  É muito perverso perceber que isso tem um endereço certo. Os extratos médios e altos da sociedade não vão sofrer com isso. Quem vai sofrer é quem estuda na escola pública, que responde por 88% das matrículas do ensino médio brasileiro – sendo que 86% delas estão na rede estadual. É um ataque ao direito dos filhos da classe trabalhadora de terem acesso ao conhecimento.


No lançamento, o MEC apontou que a Rede Federal pode contribuir com 30% nessa projeção de expansão das vagas, mas que o restante deve acontecer nas redes estaduais. Uma das formas de indução parece ser o compartilhamento da infraestrutura dos Institutos Federais com estados. Isso é problemático? E como pode ser equilibrado diante de um contexto de restrição orçamentária, lembrando que a Rede Federal sofreu contingenciamento e não tem perspectivas de investimento na finalização de obras, compra de equipamentos, etc.?

O estudante vai continuar fazendo o ensino médio na rede estadual, mas não a educação profissional. O programa retira a responsabilidade de as redes estaduais avançarem na oferta do ensino médio integrado, que custa caro, precisa de investimentos. Então qual é a saída da rede estadual? É buscar a tal da parceria, ou com o Sistema S – que é meio híbrido porque recebe dinheiro público mas aplica esse dinheiro como se privado fosse –, com a rede privada, tipo Kroton, Estácio e outros grupos, ou com a Rede Federal. E o grande risco é a Rede Federal embarcar nesse projeto pela mesma via pela qual vai entrar a rede privada.

Observe como as coisas são relacionadas: a Rede Federal tem um corte orçamentário – a Emenda Constitucional 95 também é a matriz disso. Então, o governo federal diz: ‘você tem uma redução orçamentária, mas se aderir à oferta do Novos Caminhos terá um aporte adicional de recursos que vai suprir total ou parcialmente essa redução’. É uma encruzilhada que pode fazer com que as instituições busquem equilibrar seu orçamento por essa via. E, por outro lado, não aderir pode parecer falta de compromisso porque se a Rede Federal não faz, a rede privada e o Sistema S vão fazer. A gente defende que a Rede Federal não embarque nesse tipo de projeto, que não ofereça um curso técnico precarizado via educação a distância. Mas seguramente vai haver uma pressão.


E o Sistema S também está sofrendo ameaças de cortes e pode precisar recompor orçamento...

Também vai precisar de recursos. É um quadro muito difícil. E a solução é uma organização muito forte da classe trabalhadora no sentido de barrar essas medidas. Temos uma grande expectativa de que o Future-se não seja aprovado. Vários conselhos universitários se posicionaram contra e isso enfraquece o projeto. Tanto que, se a gente observar, a discussão do Future-se está um pouco congelada.


Mas o Novos Caminhos não teve tanta repercussão, talvez por ser uma ação voltada apenas para a educação profissional. Ainda não se viu tanta mobilização por parte dos próprios atores desse campo. Há o risco de essa mobilização contra o Future-se não se repetir no Novos Caminhos?

Há. Primeiro porque, historicamente neste país, educação profissional é coisa de pobre e educação superior não. E as próprias instituições do campo da educação profissional não conseguem ter uma resposta mais crítica a esses movimentos vindos do governo federal da forma como a educação superior consegue. As respostas no âmbito do ensino superior sempre são mais progressistas, mais críticas do que historicamente são as respostas no âmbito das instituições federais vinculadas à educação profissional e tecnológica.


Há uma ênfase grande na oferta a distância, batizada pelo ministro de “ensino parcial”. Segundo Weintraub, as aulas teóricas devem ser por EaD e as práticas presencialmente nos laboratórios. “Essa combinação reduz dramaticamente o custo do aluno por ano”, justificou. Em 2019, o número de vagas a distância no ensino superior ultrapassou pela primeira vez o presencial. O Novos Caminhos abre espaço para que o mesmo aconteça com a educação profissional? Ou essa tendência já está presente?

Não, e os movimentos são claramente nessa direção. É importante refletir um pouco sobre a educação a distância. Há duas posições muito claras que, para mim, estão equivocadas. A primeira advoga que ela vai resolver todos os problemas, acredita que dá para fazer EaD desde a educação infantil ‘porque as tecnologias estão aí para a gente se apropriar delas’, ‘é irreversível’, etc. E há um movimento que nega, diz que a educação a distância representa tudo de pior que pode haver. Eu penso que a regra geral é educação pública, gratuita, de qualidade e presencial porque estamos falando de uma prática social. Educação não é apenas acesso ao conhecimento, mas um processo de formação do ser humano. A escola é um espaço de convivência com o outro, onde se aprende que as pessoas são diferentes e que todos, de qualquer opção religiosa, orientação sexual, cor ou etnia, merecem respeito. Mas a educação a distância cumpre uma função em contextos específicos e para determinados sujeitos que não têm acesso ao sistema educacional de forma presencial. Principalmente na região amazônica, onde é difícil ter escola física em todas as comunidades. Ou no contexto prisional.

Outra coisa bem diferente é afirmar que a educação a distância é a solução porque é mais barata. Para se fazer uma educação a distância de qualidade é necessário um alto nível de investimento porque como um dos grandes desafios da EaD é minimizar o problema da interatividade, é preciso desenvolver uma série de instrumentos e aparatos. Por exemplo, para cada professor que, está ministrando uma determinada disciplina, é necessário uma quantidade de tutores na linha de frente mais direta com o estudante. É necessário montar em cada lugar um polo de educação presencial com laboratórios, onde algumas vezes por semana estarão professores habilitados para tirar dúvidas. É necessário planejar uma plataforma que seja amigável, que dialogue bem com os estudantes. E é preciso contratar especialistas para fazer isso de acordo com a realidade de cada sujeito, não dá para fazer uma coisa única para o Brasil todo.


Como se fosse Telecurso 2000...

E é de uma espécie de Telecurso 2000 que o ministro está falando, por isso que ele disse que é barato. Não creio que o pressuposto do ministro seja equivocado porque ele com certeza sabe disso. Mas como a preocupação dele é com a massificação no pior sentido possível, é viabilizar um processo certificatório, a qualidade não chega a ser uma questão. Dito isso, é preciso lembrar que a reforma coloca a possibilidade de que até 20% do ensino médio seja a distância para a faixa etária de 15 a 17 anos e até 80% no caso da educação de jovens e adultos. E também que a educação a distância se tornou o maior objetivo das empresas privadas do campo educacional porque elas podem fazer – com o aval do governo – algo barato, para muita gente e cobrar por isso. É muito mais interessante para os negócios do que investir em prédios, pagar custos fixos de eletricidade, limpeza, manutenção, se preocupar com relações trabalhistas... Isso é o que está dominando a educação superior hoje e é por isso que a quantidade de matrículas na EaD ultrapassou pela primeira vez o ensino presencial.


O programa coloca em primeiro plano “as demandas do setor produtivo” e a “empregabilidade”. Isso não é exatamente uma novidade no cenário brasileiro... Mas o que significa formar de acordo com essas demandas no contexto de um país periférico hoje?

O capital necessita fundamentalmente da força de trabalho, mas não de uma força de trabalho homogênea e, sim, de uma pequena quantidade de trabalhadores muito especializados para ocupar os postos que demandam um elevado grau de intelectualização – ou seja, aqueles que vão projetar as máquinas, os softwares – e uma grande massa de trabalhadores pouco especializados, pouco qualificados e até não qualificados. Como a nossa sociedade vive na lógica de mercado, o sistema produtivo induz o sistema educacional a espelhá-lo. Ou seja, ‘produzir’ em pequena quantidade trabalhadores muito especializados e em larga escala trabalhadores pouco ou mediamente escolarizados, pois é assim que eles serão absorvidos pelo sistema produtivo. Em suma, o mercado quer um sistema educacional seletivo e excludente. Mas do ponto de vista contra-hegemônico, da classe trabalhadora, qual é a nossa luta? É que a educação forme todos de maneira igual, que todos dominem as ciências, as letras e as artes – e que isso aconteça mesmo na sociedade capitalista para que, pelo menos, todos tenham as mesmas condições nesse mercado competitivo. E, no meio disso tudo, está o Estado. Como o Estado está dentro de uma sociedade capitalista, ele, em geral, atende aos interesses do capital, embora também possa atender às demandas da classe trabalhadora. Apesar de essa ser a lógica geral para praticamente todo o planeta, isso acontece de forma diferente nos países de capitalismo avançado e nos países periféricos como o nosso. Lá, a proporção de trabalhadores mais especializados é muito maior do que aqui porque a economia deles está voltada para produzir ciência e tecnologia a partir das matérias-primas que vêm dos países periféricos. Ao passo que para produzir commodities... E o sistema educacional é coerente com o sistema produtivo daquele país, daquela região onde ele está porque cada um tem um papel na divisão internacional do trabalho. E esse papel periférico, que é o do Brasil, é conveniente para as elites brasileiras, que estão produzindo commodities, serviços ou operando no mercado financeiro. Nesse contexto, atender à demanda do sistema produtivo é dar uma formação que vai custar barato, que vai permitir às pessoas entrar nessas atividades periféricas ou semiperiféricas. A reforma do ensino médio parte exatamente desse pressuposto, de se inserir na periferia do sistema produtivo.

É muito significativo o exemplo usado no lançamento do Novos Caminhos, de qualificar pessoas para operar drones na agricultura – não se quer formar pessoas que sejam capazes de pensar e produzir o próprio drone ou uma inovação semelhante, mas operadores para o agronegócio...

É exatamente isso. Essa é a posição que o Brasil ocupa na geopolítica mundial e,  portanto, na divisão internacional de trabalho – e que é cômoda às elites locais, que nunca tiveram um projeto de desenvolvimento para o país. Pois, mesmo na lógica do capital, que a gente critica, era possível ter um projeto mais ambicioso. Em vez de produzir minério de ferro bruto, transformar isso num produto com valor agregado.


O programa tem um eixo dedicado à “inovação e empreendedorismo”. Embora seja voltado à ampliação de uma iniciativa já em curso, que são os polos em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) nos Institutos Federais, parece haver uma novidade: a criação de um escritório de inovação e empreendedorismo para a educação profissional e tecnológica para gerir isso, articulando parcerias público-privadas. Como analisa isso?

Esse discurso do empreendedorismo é muito forte – e ele é ideológico. Tende a não apenas manter a desigualdade, mas potencializar e promover a desigualdade como valor. O neoliberalismo prega a exacerbação não da individualidade – todos nós somos sujeitos únicos e nossa individualidade é inalienável –, mas do individualismo, em que cada um deve bastar-se. Cada qual deve resolver o próprio problema. Isso é importante para o neoliberalismo porque retira do Estado qualquer responsabilidade do ponto de vista social de garantir à população educação, saúde, segurança, transporte, moradia. E, de acordo com essa lógica, se você é um empreendedor, você vai se resolver na hora da crise. O cara tem um carrinho de pipoca, mas agora ele não é mais um trabalhador, é um empresário, um microempreendedor individual. E esse tipo de empreendedorismo que se coloca não é a inovação a partir da produção do conhecimento científico e tecnológico, mas a inovação na arte da sobrevivência. Evidentemente as pessoas têm que lutar e na hora da crise cada um vai ter que lutar, mas é para naturalizar isso? É esse o projeto de nação que a gente tem? Nada contra alguém ser empreendedor. Outra coisa é colocar ‘empreendedorismo’ como disciplina no currículo escolar. O que vai para o currículo é aquilo que é para a vida de todos. Todas as pessoas vão ser empreendedores?


Qual é a sua análise sobre a mudança anunciada no Catálogo Nacional de Cursos?

O catálogo não foi uma construção consensual, mas para ser revisado, passou por estudos sérios que levaram à definição atual. Antes, existiam cursos com a mesma denominação, mas com conteúdo muito diferente e vice-versa. O catálogo deu uma organizada nisso. Hoje, um curso no catálogo tem que ter determinadas características: estar dentro de um eixo tecnológico, ter determinada base tecnológica. Por tudo isso, nos preocupa muito o anúncio da alteração do catálogo. Ainda mais porque a lei da reforma do ensino médio autoriza as instituições a criarem novos cursos, experimentais, sem que estejam no catálogo, dizendo que depois de alguns anos esses cursos podem ser incorporados a ele. Se isso se tornar rotina, voltaremos à situação anterior. E, do ponto de vista do mercado, pode se criar cursos que, na verdade, já existem, mas com nomes mais atrativos para as pessoas. Ou, pior, criar ocupações atrativas, da moda. Um curso para ser influencer ou coach, coisas que não têm uma base tecnológica, mas atraem.

Comentários

Excelente e oportuna entrevista. Destrói, com fundamentos, mais uma ilusão vendida aos trabalhadores e ao país como solução para o desemprego e para a economia mais do que cambaleante. Atentar para o fato de que a crítica não é feita por um "curioso" mas por profissional com profunda e qualificada atuação no campo da educação profissional

Parabenizando e me solidarizando com Dante. Infelizmente, a bandeira da Escola Média Unitária está sendo rasgada de vez. Educação Profissional Técnica de nível médio, Ensino Médio Integrado à Profissionalização, foi uma ideia que, apesar das boas intenções, causou um pequeno rasgo na bandeira da unitariedade. Do "pequeno rasgo", agora, pelas mãos dos que estão no governo e não pensam em formação máxima para todos, opera-se o rasgo completo. Precisávamos lutar pela elevação qualitativa do Ensino Médio Geral Público, 88% das matrículas, a velha escola secundária para todos, renovando-a, até eliminando, aos poucos, o período noturno e, sobretudo, pagando bolsa-estudo (trabalho) os alunos carentes e com bom desempenho, pelo menos os do 3º ano (17 anos). Claro, isso não impediria automaticamente o que está acontecendo, mas haveria maior clareza do posicionamento político. Dante, adoro você. Paolo Nosella

Ótima análise e um importante indicativo daquilo que já se desenhava com a MP da Reforma do Ensino Médio. Um utilitarismo conveniente às elites e ao capital e, ao mesmo tempo, ainda mais degradante aos jovens e às jovens pertencentes à classe trabalhadora.