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Entrevista: 
Fabian Cabaluz

‘Em todos os níveis se configurou um sistema educativo profundamente desigual, que produz segregação social e endividamento’

Fabian Cabaluz, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão, no Chile, faz uma análise sobre o modelo educacional imposto pela ditadura de Augusto Pinochet a partir do golpe de Estado de setembro de 1973 e seu papel nas manifestações que eclodiram no país a partir de outubro de 2019.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/01/2020 13h18 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Nessa entrevista, Fabian Cabaluz, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão, no Chile, faz uma análise sobre o modelo educacional imposto pela ditadura de Augusto Pinochet a partir do golpe de Estado de setembro de 1973. Ao longo dos anos 2000, o modelo foi alvo de inúmeras mobilizações estudantis e de professores que, no entanto, não conseguiram dinamizar mudanças estruturais em um sistema que, segundo o pesquisador chileno, segue sendo profundamente desigual e privatizado, produtor de segregação social e de endividamento da população. Não por acaso, os protestos que eclodiram naquele país a partir de outubro de 2019 têm entre suas pautas a transformação da educação em um direito social, na esteira de discussões sobre a necessidade de uma nova Constituição no Chile, onde ainda vigora a Carta Magna imposta em 1980 pela ditadura civil-militar. A entrevista de Cabaluz, que agora é publicada na íntegra no Portal EPSJV/Fiocruz, foi utilizada na apuração da reportagem ‘As feridas abertas do neoliberalismo chileno’, que saiu na última edição da revista Poli (janeiro e fevereiro de 2020).

Quais eram as propostas que estavam sendo discutidas para a educação no Chile no contexto imediatamente anterior ao golpe civil-militar de setembro de 1973?

No período diretamente anterior ao golpe quem governava era a Unidade Popular, encabeçada pelo presidente Salvador Allende. A ascensão e a chegada da Unidade Popular ao poder em 1970 foi fruto de décadas de luta dos movimentos da classe trabalhadora e do movimento popular em geral no Chile que permitiu avançar para um governo de coalizão política entre o centro e a esquerda. O que aqui se chamava de processo de construção da via chilena ao socialismo, ou socialismo ‘com vinho tinto e empanada’ como também era denominado.

Nas políticas educacionais, o governo da Unidade Popular se preocupou com duas ou três grandes coisas. Primeiro em manter uma lógica de ampliação do acesso à educação nos níveis primário, secundário e universitário. Portanto, tinha que se criar nova infraestrutura. O governo de Salvador Allende foi muito assertivo nisso, com propostas de criar muitas escolas, incentivar a alfabetização popular. Ele vai, inclusive, retomar o legado de Paulo Freire que de 1964 a 1970 esteve no Chile. O governo da Unidade Popular vai retomar sobretudo o método de alfabetização psicossocial de Freire, vai ressiginificá-lo e vai incorporar às experiências de alfabetização chilenas.

Mas o projeto de educação mais importante do governo Allende é o Escola Nacional Unificada, conhecido pela sigla ENU. Esse projeto foi apresentado à sociedade em 1972, inspirado na lógica da unificação do sistema escolar e na centralidade do trabalho para a formação dos filhos e filhas da classe trabalhadora. Mas ele gerou grandes oposições por parte dos setores conservadores e da elite chilena, polarizando a sociedade. E o governo de Allende, depois de um ano de discussão do projeto de lei, decidiu retirar a proposta da ENU.

Os professores e trabalhadores da educação são o grupo de profissionais com a maior quantidade de pessoas executadas e desaparecidas durante a ditadura civil-militar


Qual era o papel do setor privado na educação chilena nesse momento?

Era um papel minoritário e que estava concentrado em primeiro lugar em escolas e estabelecimentos educacionais confessionais, fundamentalmente católicos. As escolas católicas eram as escolas privadas e havia também um grupo de escolas muito pequenas dedicadas a formar a elite. Mas o setor privado era minúsculo em comparação com a educação pública. Nunca superou 20% das matrículas estudantis.


O que aconteceu após o golpe de Estado?

Com o golpe de Estado, em setembro de 1973, terminou o processo de transformações sociais. Em um contexto de ditadura militar estava fechado o Congresso, militarizada a sociedade. Houve intervenção nas universidades. Toda a política pública na educação foi implementada por decretos com força de lei, firmados pela Junta Militar, sem nenhum tipo de discussão pública. Nesse contexto, as primeiras medidas ficaram conhecidas como de “depuração ideológica”. Esse foi o conceito que utilizaram na época. Isso quer dizer retirar qualquer tipo de presença do que denominavam de “câncer marxista” dentro da educação. Qualquer tipo de conceito que falasse de luta de classes, socialismo, democratização da cultura, movimentos sociais, organização sindical: todos esses conteúdos tinham que ser retirados do sistema educativo.

Junto com isso, se interveio nas instituições educacionais – e para isso foram colocados militares de carreira como reitores das universidades e também como diretores das escolas públicas. De tal maneira que as Forças Armadas passaram a ter controle direto sobre as instituições educativas. Isso foi gravíssimo porque veio junto com uma repressão focalizada no professorado. Os professores e trabalhadores da educação são o grupo de profissionais com a maior quantidade de pessoas executadas e desaparecidas durante a ditadura civil-militar.


Por que mataram tantos professores e professoras no Chile?

Uma hipótese que se discute é que o professorado era militante, tinha militância no Partido Socialista, no Partido Comunista, no Mapu [Movimento de Ação Popular Unitária, partido de esquerda chileno que integrou a coalizão da Unidade Popular]. Por isso tinha que ser desarticulado. E a segunda hipótese é que, além da sua militância, o professorado era um ator central e relevante na organização das comunidades. Então como tinha força em levantar processos organizativos era um ator político perigoso para a ditadura, e por isso também tanta repressão sobre o professorado. Então de 1973 até 1977 é um período fundamentalmente de caráter repressivo, de “depuração ideológica” e intervenção nos estabelecimentos educativos.

Um segundo momento da reforma educativa está associado à implementação das políticas neoliberais. A reforma neoliberal na educação tem várias arestas, vários eixos. Em primeiro lugar começa um processo de privatização da educação pública. Numerosas escolas e liceus, que eram públicos, são entregues a organizações privadas. A privatização do patrimônio vai ser na forma concessões: a propriedade dos estabelecimentos é entregue a instituições privadas para que os administrem por até 99 anos, que podiam ser renovados automaticamente. Por outro lado, se permite a criação de muitos estabelecimentos privados que recebem financiamento público, as chamadas escolas particulares subvencionadas. São escolas de propriedade privada para as quais o Estado entrega financiamento por vouchers. Isso se chama subvenção por demanda. O Estado entrega uma quantidade gigantesca de recursos públicos para o setor privado. Essas duas grandes medidas fazem com que a matrícula do setor privado vá crescendo consideravelmente. Até o ponto em que, na atualidade, o setor privado concentra mais de 60% das matrículas.

Outra coisa que foi feita nas políticas educativas foi a descentralização da educação pública, via municipalização. Essa é uma política da década de 1980 com o objetivo de que as escolas não sejam administradas pelo Ministério da Educação, e sim pelas municipalidades, pelas comunas. O problema é que em sociedades como a chilena, que são extremamente segregadas e desiguais, há comunas que têm muitos recursos e outras que são muito pobres. Então as escolas públicas das comunas pobres são escolas em situação de precariedade e pobreza. E as escolas públicas das comunas com mais dinheiro têm melhor qualidade.


E no ensino superior?

Com as universidades também se desenrolou um processo de privatização. A ditadura começou  a reduzir sistematicamente o financiamento das universidades públicas e permitiu a criação de universidades privadas por todo o país. De modo que, hoje, temos uma quantidade impressionante de universidades privadas funcionando – e as universidades públicas recebem uma porcentagem de financiamento que não supera 20% do que necessitam para sobreviver. Temos o sistema de educação superior mais privatizado do mundo.

Além disso, a Lei Geral de Educação Universitária [de 1981] acabou com a educação gratuita e incorporou o pagamento da universidade. Então não somente se paga a universidade privada, mas também a pública. E o sistema para poder pagar a universidade pública são os créditos bancários. Esse pagamento da universidade pública e privada vai aumentar de maneira sustentada o endividamento da população.

A grande crise de 2019 se dá porque o modelo herdado da ditadura, que se instaurou a sangue, fogo, repressão, e que se consignou na Constituição política de 1980, é um modelo que está implodindo o país


Quais foram os principais efeitos desse modelo?

Eu diria que o principal efeito é a desigualdade dentro do sistema educativo porque você só vai poder ingressar em uma carreira universitária na medida em que você puder pagar pelo acesso a essa profissão. As escolas públicas secundárias e primárias também são completamente desiguais por causa da diferença entre as municipalidades pobres e ricas. Então em todos os níveis se configurou um sistema educativo completa e profundamente desigual, que gera e produz segregação social. Existem escolas e universidades para os setores pobres, outras para os setores médios e outras para os setores da elite. É um sistema profundamente segregado que de fato incrementou o acesso à educação superior, mas pela via não do direito social e sim do endividamento. Então há um incremento da cobertura e do acesso, mas pela via do negócio e do lucro, com endividamento dos estudantes.

A tudo isso se soma uma tentativa de alinhar a educação chilena com os ditames dos organismos internacionais, com o estabelecimento de avaliações standardizadas, alinhando-se com os resultados das provas como o Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, da OCDE]. Com isso se gera um modelo educativo descontextualizado, alheio, eu diria, às necessidades que tem a sociedade.

Então o sistema educativo tem também um problema de pertinência porque o peso que tiveram os organismos internacionais na definição do sentido da educação distanciou os espaços educativos dos interesses e necessidades das comunidades, da classe trabalhadora, dos setores populares.


A educação esteve no centro de inúmeras mobilizações sociais que ocorreram no Chile a partir dos anos 2000. Em que medida elas conseguiram operar mudanças nesse modelo?

Como produto de todos esses elementos sobre os quais eu falei, desde o ano de 2001, e de maneira cíclica – 2001, 2006, 2011, 2015, 2018 e, agora, em 2019 – houve diferentes 'estouros', por assim dizer, de movimentos estudantis e de professores que se opõem a este modelo educativo. Movimentos que vão lutar contra a educação de mercado, contra a educação standardizadora, contra a segregação, etc.

Houve uma escalada de quase duas décadas de desenvolvimento de lutas sociais nesse sentido. A explosão que ocorreu em 2019 e a jornada de protestos que estão se desenrolando hoje tem como uma de suas arestas a questão educativa, mas há muito mais componentes, como os problemas na Previdência, na saúde, etc.

De fato, no período após a ditadura, desde 1990 até a atualidade, houve um intercâmbio de duas forças políticas no governo: a primeira é a ‘Concertación de Partidos por la Democracia’, uma coalizão de centro, e a segunda a ‘Aliança por Chile’, que é de direita. Ambas as coalizões perpetuaram o modelo econômico neoliberal herdado da ditadura. Ambas mantiveram a Constituição elaborada na ditadura durante o ano de 1980. Então há uma continuidade do regime ditatorial, que se instaura em 1973 e que vige até 2019. A grande crise de 2019 se dá porque o modelo herdado da ditadura, que se instaurou a sangue, fogo, repressão, e que se consignou na Constituição política de 1980, é um modelo que está implodindo o país.

O governo que mais avançou em gerar algumas transformações educativas foi o de Michelle Bachelet, que avançou na lógica de terminar com os copagamentos na educação primária e secundária, garantindo que ela teria que ser prioritariamente gratuita. Se frearam também os mecanismos de seleção para ingressar em estabelecimentos públicos e particulares subvencionados, e além disso se criou um tipo de gratuidade para a educação superior. Foi uma espécie de ampliação de bolsas de estudo para as universidade públicas, mas que também se estendem às privadas. Então de todas as maneiras, milhões e milhões de dólares do Estado chileno seguiram sendo entregues às instituições privadas, o que é algo completamente contrário ao que demandou a sociedade civil e o que demandaram os movimentos estudantis e sociais.

Isso talvez seja o mais importante a se considerar, porque essas 'concessões' do governo Bachelet foram resultados de mobilizações sociais, não de vontade política espontânea para gerar melhorias dentro do sistema educativo. Essas concessões vêm após 2011, quando se dá um dos momentos mais fortes da mobilização estudantil, que reivindicou a gratuidade, o fim do lucro, que a educação seja um direito social, e desenvolvida de forma pertinente às comunidades. São questões que explodem em milhares de estabelecimentos que são ocupados pelos estudantes. O sistema educativo deixa de funcionar por quase quatro meses. Tudo isso vai obrigar o governo de Bachelet, quando ele assume, a implementar certas políticas de concessão ao movimento estudantil e universitário.

O governo de [Sebastian] Piñera mostrou a versão mais autoritária do projeto neoliberal


E o governo de Sebastian Piñera? O que representou para as políticas educacionais?

Houve só retrocesso nas políticas educacionais nos governos Piñera. Em primeiro lugar, tentaram voltar a colocar travas para o acesso à educação primária e secundária com mecanismos de seleção, associado a provas. Mas não conseguiram. A segunda coisa que tentaram fazer foi reestabelecer o copagamento e voltar a permitir que as famílias tenham que pagar uma taxa para matricular seus filhos na escola pública, mas também não conseguiram porque não tiveram maioria parlamentar.

E o terceiro lugar– e isso sim conseguiram – implementaram uma política específica para desarticular o movimento secundário que se chama Lei Aula Segura. Essa lei foi aprovada em dezembro de 2018 e começou a viger em março de 2019. Praticamente todos os liceus da cidade de Santiago foram militarizados. E com conflitos gravíssimos no interior das escolas, com a presença da Força Especial dos Carabineiros na entrada dos estabelecimentos, revistando mochilas dos estudantes. Houve casos em que foram lançadas bombas de gás lacrimogêneo no interior dos estabelecimento educativos e muitas vezes houve confronto com os estudantes, com muitos sendo presos.

Durante todo o ano de 2019 o movimento estudantil foi denunciando e se mobilizando contra a criminalização de sua atuação. A Lei Aula Segura foi entendida desde o início como uma política autoritária direcionada a desarticular os setores estudantis. E os movimentos estudantis estavam nessa luta em outubro, quando uma fração do movimento estudantil decidiu não pagar pelo aumento da tarifa do transporte público e ocupou as estações de metrô. Isso desencadeou tudo o que está ocorrendo hoje. A explosão que está vivendo a sociedade foi um fogo aceso pelos estudantes secundários.

E nesse contexto o governo de Piñera, inspirado na política da Escola sem Partido no Brasil, lançou um projeto contra o que denominou “doutrinamento ideológico e político” na escola. O argumento é o mesmo do Escola sem Partido, apostando em uma educação supostamente neutra, objetiva, com uma política dirigida a reprimir o professorado. Com a Aula Segura reprimiram os estudantes e com esse projeto de lei querem reprimir os professores. O governo de Piñera mostrou a versão mais autoritária do projeto neoliberal.


Que leitura faz dos paralelos entre o que acontece no Brasil atualmente, onde o Escola sem Partido volta a ser debatido no Congresso, e onde há também um avanço da militarização das escolas públicas e de políticas de restrição da autonomia universitária, por exemplo, com o que vem acontecendo no Chile?

As denúncias do Escola sem Partido serviram para que o professorado chileno pudesse dar uma resposta rápida contra esse projeto de lei do Ministério da Educação do Chile. Eu creio que tudo isso vai mostrando a coordenação da agenda política que tem a direita em nível latino-americano. É algo que não podemos menosprezar nunca. A direita está articulada politicamente, tem uma agenda comum, tem formas de solucionar os conflitos e as problemáticas que também são comuns. É muito importante socializar as informações sobre o desenvolvimento da agenda política da direita porque assim podemos ir avançando em eventuais respostas. A nós, particularmente, a criação de escolas paramilitares no Brasil, assim como o Escola sem Partido são coisas que nos servem no Chile para dar respostas ao que vem acontecendo aqui.

A sociedade civil segue defendendo uma Assembleia Constituinte como mecanismo de participação amplo para definição de uma nova Constituição e o desenvolvimento de uma série de políticas sociais que deem conta dos problemas gravíssimos que afetam a sociedade chilena hoje


Quais os possíveis caminhos que você enxerga como desdobramentos da mobilização chilena?

O governo de Piñera tem atualmente a porcentagem mais baixa de aprovação que teve um Presidente da República nos últimos 50 anos. Tem 9% de aprovação. E dentro da desaprovação ao seu governo há setores do empresariado, que se opõe à incapacidade do governo em solucionar o conflito e desenvolver uma lógica de governabilidade no país.

Neste contexto há duas possibilidades abertas. Uma que eu creio que a direita nunca deixa de considerar, que é a do “autogolpe”, com a saída de Piñera, inclusive com a participação de setores das Forças Armadas para desenvolver um processo de transição. O que seria nefasto, mas quando você olha como está operando a direita em nível latino-americano vê os sinais de que todos esses processo de convulsões sociais, de crise, de mobilizações, podem ter uma saída pela direita, mais autoritária e mais conservadora.

A segunda possibilidade, na qual nós apostamos, é a vertente democrática. Que essa crise tenha uma saída no marco do desenvolvimento de uma Assembleia Constituinte. A sociedade civil segue defendendo uma Assembleia Constituinte como mecanismo de participação amplo para definição de uma nova Constituição e o desenvolvimento de uma série de políticas sociais que deem conta dos problemas gravíssimos que afetam a sociedade chilena hoje. Políticas que estejam associadas ao incremento do salário mínimo, das aposentadorias. E eu diria que segue sendo central o tema das violações aos direitos humanos e a impunidade, que durante esses dias tem sido gravíssimo. Tivemos mais de dez mil detidos, quase 30 assassinados, 200 jovens que foram mutilados, que perderam um olho por causa balas de borracha, com perda de visão total ou parcial. Há uma quantidade enorme de acusações de abusos e violações por parte dos Carabineiros do Chile. O uso da força desmedida por parte das forças repressivas vai mostrando um componente autoritário vinculado historicamente à ditadura.  E isso é inaceitável.

 

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