Há tempos se fala em uma nova reforma da previdência. No ano passado, a presidente Dilma Rousseff chegou a criar um Fórum que deveria fazer diagnóstico e apresentar propostas. A senhora vê diferença entre o que se apresentava como questões, problemas e soluções principais naquela ocasião e agora?
Sim, eu acho que tem muita diferença. Dilma não apresentou a proposta, mas tinha discussões. No ano passado, ela fez também algumas modificações no seguro desemprego e nas pensões, mudanças que reduziram o escopo desses benefícios na previdência. Mas essa proposta que chegou ao Congresso concretamente esta semana é um verdadeiro tornado antissocial. E não é só uma alteração na previdência. Na minha avaliação, ela destrói completamente a seguridade social que foi aprovada na Constituição de 1988.
Por quê?
Porque essa proposta não mexe só nos direitos da Previdência, ela vai ter impacto em todos os direitos previstos na seguridade social: na assistência, na saúde e na previdência. E destrói uma coisa que foi muito importante naquele momento da Constituição, que foi essa ideia de seguridade social como um amplo sistema de proteção social no Brasil. Então, o que está sendo destruído agora é aquela perspectiva que a seguridade colocou de instituir no Brasil um Estado social, que introduziu a saúde como política universal, e que incluiu a assistência social como direito daqueles que nunca estiveram vinculados à previdência social: pessoas idosas que nunca tiveram um trabalho formal, que nunca contribuíram, e pessoas com deficiência. Essa proposta desmonta essa ideia de seguridade social. Por quê? Por um lado, porque destrói aquela perspectiva de um sistema de seguridade integrado, que deveria ter um financiamento, um fundo público, que não seja baseado só nas contribuições previdenciárias. Naquele momento da Constituição, do ponto de vista orçamentário, a ideia de seguridade foi acoplada com um sistema de financiamento muito amplo, que envolvia as contribuições de trabalhadores e empregadores sobre folha de salário, mas também outras formas de financiamento que foram a cofins, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido [CSLL]. E também estava prevista a contribuição do próprio Estado, para financiar justamente essas políticas que não são contributivas diretas, como a saúde e a assistência social. Mas aquela perspectiva orçamentária, absolutamente necessária para manter esse sistema de seguridade social, não foi implementada. A gente diz que na verdade o Estado nunca implementou completamente o orçamento da seguridade social conforme previsto na Constituição. O governo federal não só não aporta recursos como está previsto lá, como também anualmente foi retirando 20% do orçamento da seguridade por meio da Desvinculação de Receitas da União, a DRU. O que acontece com essa reforma agora? Primeiro, ela não só não retoma aquele orçamento, como agudiza quando junta com a PEC que vai congelar o orçamento público por 20 anos. O discurso de que a previdência é deficitária é falso. Porque aquele orçamento previsto na Constituição na verdade nunca se efetivou e ainda se subtrai dele 20% do que a seguridade social recebe. Então, se a gente somar todas as fontes de financiamento de fato previstas na Constituição Federal, vários estudos vêm mostrando que na verdade a seguridade social é superavitária. Em 2015, ela seria superavitária em torno de R$ 11 bilhões, se não se tivesse retirado dinheiro por meio da DRU que, só no ano passado, se não me falha a memória, foram R$ 63 bilhões. E também se o Estado aportasse recursos que são do imposto fiscal, como está previsto na Constituição Federal.
Mas o grande argumento da reforma nesse momento é que o Estado não tem mais dinheiro. Como é possível manter o sistema de previdência diante dessa crise?
Olha, eu falaria de pelo menos três coisas. A primeira é o Estado não implementar renúncias fiscais às empresas, porque isso faz com que se deixe de arrecadar bilhões anualmente. Só no ano passado, 2015, foram R$ 69 bilhões que o Estado deixou de receber. Então, um primeiro elemento é que haveria recursos se o Estado não instituísse uma política de renúncias fiscais para as empresas, como aconteceu com a Copa, com os megaeventos. E essa é uma política que não atinge só o governo federal, mas também os estados - a gente vê o que está acontecendo, por exemplo, no Rio de Janeiro. O Estado está quebrado porque não cobra de uma parcela da sociedade, que são as empresas, que deveriam pagar os seus impostos. Um outro elemento é que o Estado deveria investir em relações formais de trabalho. A gente tem hoje no Brasil em torno de 44% da população economicamente ativa com relações absolutamente precarizadas de trabalho, segundo dados do Dieese. Significa que praticamente metade da classe trabalhadora que exerce alguma atividade não tem uma relação formal de trabalho e com isso não contribui para a seguridade social. Se o Estado investisse na formalização das relações de trabalho e não na sua precarização, a gente teria um aporte de recursos ainda maior. Um terceiro elemento que eu chamaria a atenção, porque acho que tem uma falsidade no discurso de que o Estado não tem recurso, é o dinheiro que é utilizado pelo governo federal para pagar os juros da dívida pública. A gente tem hoje uma dívida pública que cresce anualmente, e que na verdade extirpa do orçamento público uma parcela muito mais significativa do que o investimento em todas as políticas sociais, correspondendo a mais de 60% do PIB. A Auditoria Cidadã da Dívida vem demonstrando isso diariamente. Se essas medidas fossem tomadas, não haveria necessidade nenhuma de reforma da Previdência nem da DRU, que extirpa 20% da seguridade social anualmente.
E nos próximos anos vai passar para 30%...
Vai piorar. Você vai reduzir a fonte e ampliar a extração de recursos. Ou seja, a gente vai ter uma destruição total de um sistema de proteção social como foi pensado na Constituição.
Sem falar nessas medidas todas que eu apontei, a contribuição dos trabalhadores e dos empregadores já seria acrescida em muito se houvesse uma fiscalização, por exemplo, das relações de trabalho informais. Porque existe uma coisa que é a renúncia fiscal e outra que são os trabalhadores sem contrato, situação que faz com que nem empregador nem o trabalhador contribuam. E só uma fiscalização sobre essa ilegalidade já aportaria maior recursos. Já cofins e CSLL não são contribuições sobre a folha de pagamento mas sim sobre o faturamento e o lucro. É muito difícil a gente ter acesso às informações, mas o que os estudos vêm mostrando é que essas contribuições são subfaturadas. Porque, na verdade, as empresas declaram um valor muito aquém do que de fato foi o seu faturamento e lucro. Então, se houvesse uma fiscalização certamente essas contribuições seriam maiores. E outra coisa é o aporte do Estado sobre impostos fiscais que não envolvem nem cofins, nem CSLL nem a contribuição sobre a folha de pagamento. Os impostos fiscais são todos aqueles arrecadados pelo Estado. É preciso mexer na estrutura fiscal para torná-la mais progressiva, ou seja, fazer com que quem recebe mais recurso pague mais. A gente tem uma estrutura fiscal de pagamento de impostos muito regressiva. Quem paga mais imposto hoje é a classe trabalhadora que ganha menos de dois salários mínimos. Além de existir uma parcela enorme de grandes fortunas que não são nem taxadas, porque o imposto sobre grandes fortunas está previsto na Constituição mas nunca foi regulamentado. Isso poderia ser um outro aporte de recursos. Há vários mecanismos que poderiam gerar uma ampliação do orçamento na sua fonte sem precisar mexer no gasto, sem reduzir direitos.
Você disse que essa reforma é um desmonte de toda a política de seguridade social, e não só da Previdência. Como ela atinge particularmente a saúde?
Na PEC não há nenhum corte de benefício da saúde, como a gente visualiza imediatamente na previdência e na assistência. Mas, primeiro, tem a questão do recurso, que a gente acabou de falar, e que vai ter um impacto na redução do orçamento da política de saúde. Além disso, na medida em que você reduz benefícios monetários, como a previdência e o Benefício de Prestação Continuada [BPC], incluindo ainda toda a parte de reabilitação, haverá muito mais demandas para a área da saúde. Eu vou dar um exemplo bem concreto. Vários estudos já mostram o que mudou na vida das pessoas que têm acesso ao Benefício de Prestação Continuada. No caso dos idosos e pessoas com deficiência, o principal gasto que elas têm com o benefício é com a saúde: compra de medicamento, compra de aparelhos de órtese e prótese, deslocamento para consulta e internação, enfim, tudo o que envolve a saúde. Com a redução desse recurso, o que acontece? As pessoas terão muito mais problemas de saúde. E isso significa uma demanda também muito maior para a área da saúde. A saúde hoje já agoniza do ponto de vista da falta de recursos, de leitos, etc. Isso tudo vai se agravar. As pessoas vão demorar muito mais tempo para se aposentar e com salários muito mais rebaixados. A gente vai ter uma demanda ainda maior para a área da saúde e também para a assistência social.
A PEC prevê 25 anos de contribuição e idade mínima de 65 anos. Mas as contas mostram que, para se aposentar com valor integral aos 65, o brasileiro precisa começar a trabalhar aos 16 e contribuir durante 49 anos. Queria que você comentasse essa medida proposta.
Primeiro é importante esclarecer que, concretamente, a aposentadoria integral – que significa se aposentar com o valor do último salário – já não existe. Mas, com essa nova proposta, os trabalhadores, que já não teriam aposentadoria integral, vão ter sua aposentadoria rebaixada mesmo no valor do teto. Vai haver uma redução do valor nominal e do significado do valor da aposentadoria, considerando-se o custo de vida.
Por quê?
Hoje as únicas aposentadorias que têm o seu reajuste vinculado ao reajuste do salário mínimo são aquelas no valor de um salário e as do BPC, que é um benefício assistencial. As demais, acima de dois salários mínimos, já tiveram seu reajuste desvinculado do salário mínimo desde a reforma do Fernando Henrique Cardoso. O que essa reforma do Temer agora faz? Ela desvincula todas do salário mínimo. Assim, do ponto de vista do poder aquisitivo, o valor vai perdendo o seu significado ano a ano. Daqui a dois anos, o salário mínimo já pode estar num valor acima da aposentadoria que você recebe. Porque a gente não pode nunca esquecer que essa reforma está vinculada à PEC 55 [que institui um teto de gastos]. Trata-se de um conjunto de medidas que se articulam.
Junto com isso a gente tem uma ampliação estrondosa da idade. Na verdade, essa ideia da contribuição vinculada ao teto se dava antes por meio do fator previdenciário, que foi alterado no ano passado e substituído pela fórmula 85/95. O que essa reforma de agora faz? Retira aquela fórmula e cria uma espécie de outro fator previdenciário. Porque vai conjugar tempo de contribuição, que aumentou para 25 anos, com a idade mínima de 65. Então, você tem que conjugar tempo mínimo de contribuição de 25 anos com idade mínima de 65 para conseguir se aposentar pelo teto. Porque eles fizeram um escalonamento. Então, por exemplo, para você chegar a esse teto, tem que começar a trabalhar com 16 anos para, aos 65, atingir os 100%. Por quê? Porque além de estabelecer o tempo mínimo de contribuição de 25 e idade mínima de 65, eles criaram um escalonamento no valor da aposentadoria, que é uma espécie de fator previdenciário. O fator previdenciário antes era um cálculo matemático que computava quanto tempo a pessoa trabalhou, sua idade, sua expectativa de vida, e sua contribuição. Agora eles estão conjugando tudo isso e dizem que depois isso vai ser regulamentado. Só que esse escalonamento mostra que você só vai chegar a 100% quando contribuir muito mais do que os 25 anos, que é o mínimo estabelecido. Por isso que está-se falando que aos 16 anos você tem que começar a contribuir e seguir durante 49 anos para chegar ao teto nesse escalonamento que eles fizeram. Na prática, aos 65 você não consegue já ter contribuído a quantidade necessária para ter os 100%.
Alguns analistas têm defendido que, como as populações mais pobres começam a trabalhar mais cedo, essa reforma atingirá principalmente os mais ricos. Como você avalia esse argumento?
Eles podem até se aposentar mais cedo, mas não com um valor de aposentadoria que vá chegar ao teto. Essa coisa de dizer que a classe trabalhadora ou quem ganha menos vai conseguir se aposentar é um argumento falacioso. Por quê? A expectativa de vida no Brasil é muito diferente de um estado para outro. Alguns estados têm uma expectativa de vida muito abaixo da média, que é 72 anos. Há estados em que, pelas condições de vida, pela dureza do trabalho, a expectativa de vida é de 60 anos, abaixo dos 65 estabelecidos como idade mínima. Então, essa faixa já vai ficar descoberta. Mas vamos falar daqueles estados que têm expectativa acima disso. Mesmo que a pessoa consiga se aposentar aos 65 anos, o valor da aposentadoria vai ser baixo. E, mesmo considerando a expectativa média de 72 anos, se aposentando aos 65, ela vai receber aposentadoria por sete anos. Sete anos e com um valor de aposentadoria baixo! Ou seja, ela contribuiu 30 ou 35 anos, mas vai usufruir do benefício por sete. Para onde vai essa contribuição?
Para onde vai?
Na nossa avaliação, isso está sendo conjugado com uma forma de privatização da previdência pública para fortalecer os sistemas de previdência privado. Porque aqueles que têm um emprego estável, que podem ter um salário um pouco melhor, vão complementar esse mínimo de aposentadoria pública com uma aposentadoria privada. É uma forma de transferência do fundo público para o capital, uma forma de transferência daquilo que é investido no benefício social público. Essa reforma vai redirecionar a classe trabalhadora para o privado, como vem acontecendo na área da saúde. E a previdência privada não tem segurança nenhuma, o risco é enorme porque depende de investimentos financeiros. Em contexto de crise, a gente fica ao sabor dos investimentos. Você não tem um valor definido de aposentadoria, como é o sistema por repartição público. O sistema por capitalização, que é o privado, vai depender sempre da seguradora financeira, dos juros de mercado e das aplicações que as seguradoras desses planos vão fazer. Então, você pode pagar por um seguro privado, ajudar a enriquecer o capital e no final receber muito pouco de benefício, em função das flutuações das taxas de juros, por exemplo. É completamente diferente do sistema público. Na nossa avaliação, o que está acontecendo é uma forma de destruição do sistema público para utilização do fundo público em favorecimento do capital financeiro privado.
A propaganda que o governo publicou nos jornais defendendo a reforma diz, entre outras coisas, que, no Brasil, “tem muita gente que vive mais tempo recebendo aposentadoria do que trabalhando”. Isso é verdade?
Vamos fazer um cálculo muito simples. Vamos pegar um professor, com aposentadoria especial, que conseguiu se aposentar aos 48 anos. Essa condição não existe mais, estamos supondo regras anteriores às mudanças feitas ainda pela contrarreforma do Fernando Henrique Cardoso. A expectativa de vida dela é de 72 anos, na média. De 48 para 72, sobram 24 anos, não é isso? Ninguém se aposenta hoje com menos de 30 anos de contribuição - isso para falar das mulheres. Estou usando um exemplo extremo, de aposentadoria com menor tempo de contribuição e menor idade. E que não existe mais, só foi possível antes da primeira reforma, no governo FHC. Então, é claro que você contribui muito mais do que vai usufruir do benefício.
Outra coisa que a PEC propõe mudar é a aposentadoria rural. Por que a Constituição previu um modelo diferente para a aposentadoria rural? E quais são as consequências esperáveis dessa mudança?
No Brasil as relações mais precarizadas, mais instáveis e com menores rendimento são do trabalhador rural. Porque eles trabalham muito, não têm carteira de trabalho ou um outro contrato, como no setor urbano. É muito raro um trabalhador rural que tenha a carteira de trabalho assinada. O nosso sistema de previdência é baseado nessa lógica bismarquiana do seguro, ou seja, só tem direito ao benefício quem contribui diretamente e o benefício é proporcional ao que você contribuiu. Se você tem uma informalização muito elevada, se não tem uma contribuição mensal regular e perene, não há como calcular o valor do benefício nessa lógica. Hoje calcula-se que menos de 20% dos trabalhadores na área rural têm algum contrato assinado, ou seja, têm condições de fato de contribuir regularmente para a previdência. Em função disso, desde a década de 1960, desde a criação do Funrural, o benefício para o trabalhador rural sempre foi um misto de previdência e assistência, eu diria. Porque ele nunca conseguiu seguir essa lógica do seguro, da contribuição e do benefício proporcional à contribuição. Dentro dessa lógica de seguridade de que eu falei no início, a Constituição cria um amplo programa, cria essa ideia de uma proteção social que não depende totalmente dessa lógica do seguro. Agora, com essas novas regras, e sem a formalização das relações de trabalho no campo, o que eu penso que vai acontecer é uma redução da possibilidade de o trabalhador rural ter acesso a esse benefício beneficiário. É um outro público que ganha muito pouco, outro segmento da classe trabalhadora que ganha muito pouco, o trabalho é super explorado, não tem relações formais de trabalho e, tendo piores condições de acesso à previdência, eles vão recorrer a quem? À assistência social. Na minha avaliação, é falsa essa ideia de que na área rural tem que estabelecer a mesma lógica do setor privado, por uma questão simples: a organização de trabalho no campo no Brasil não é a mesma organização de trabalho do setor urbano.
Você disse que essa população vai ter que recorrer à assistência social, mas a proposta de reforma do governo Temer altera também o principal benefício assistencial, que é o BPC [Benefício de Prestação Continuada], não é?
Sim. Vai ser uma dificuldade.
O que muda no BPC com essa reforma e quais são as consequências disso?
As principais mudanças indicadas são o aumento do acesso de 65 para 70 anos. Hoje é de 65 para as pessoas idosas.Temos que ver como isso vai ser feito, mas há uma indicação de que naquele lugar onde a expectativa de vida for superior a 70 anos, a idade para acesso ao benefício poderá ser vinculada a essa expectativa de vida. Isso significa que num determinado estado o acesso a esse benefício pode ser aos 70 anos e em outro aos 75. Hoje é aos 65 para as pessoas idosas que tenham renda per capita abaixo de um quarto de salário mínimo. Vai cair o número de acesso ao BPC, porque vai aumentar a idade. E isso certamente vai agudizar ainda mais a condição de pobreza, de desigualdade. Porque quem tem acesso ao BPC hoje são aquelas pessoas que estão na faixa de um quarto de salário mínimo mensal per capita. São aquelas estão na faixa de pobreza absoluta.
Essa é uma primeira mudança, a ampliação da idade. A outra mudança é que a proposta desvincula o valor do benefício do salário mínimo. Hoje o benefício de um salário mínimo é constitucional, não pode ser inferior a isso. E o reajuste segue o valor do reajuste do salário mínimo. O que vai acontecer com a desvinculação? O mesmo das aposentadorias cujo valor é de um salário mínimo: daqui a dois anos elas já vão estar abaixo e certamente, dependendo do índice da inflação e do índice do reajuste que vai ser aplicado, elas podem perder de 50% a 60% do seu valor de poder aquisitivo.
Do ponto de vista da assistência social, pensando isso junto com a PEC do teto dos gastos e com um pente fino que vem sendo feito no Bolsa Família, com uma diminuição importante no número de benefícios, já existe uma análise de cenários futuros?
Sim, já tem até um estudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que, antes mesmo dessa proposta de reforma da Previdência, já apontava perdas do recurso para Assistência Social e para a Saúde. vários estudos já mostraram isso. Agora, depois dessa PEC, eu acho que está todo mundo ainda muito impactado porque trata-se não só de uma destruição do que está na Constituição Federal, mas de uma perspectiva completamente desumana para o segmento mais espoliado da classe trabalhadora, que são as pessoas idosas, de baixíssima renda, as pessoas com deficiências. Porque outra indicação dessa PEC é que vão se tornar mais rígidos os critérios para acesso da pessoa com deficiência. Hoje já se instituiu, no âmbito do INSS, todo um mecanismo de avaliação para saber se a pessoa com deficiência tem um grau de deficiência que realmente a torne independente para o trabalho, que é um dos critérios para ter acesso ao benefício, além do critério de renda de um quarto de salário mínimo per capita. Então, o que a gente observa é que essa proposta destrói uma perspectiva de se constituir no Brasil de fato um compromisso social com a classe trabalhadora, que tem condições de trabalho de absoluta superexploração, condições de miséria e pobreza estrutural. Entra e sai década e continuamos no mesmo patamar em relação a isso. Tivemos uma pequena queda no período do governo Lula, mas foi muito pequena, e já está se revertendo. Esse é um projeto que tem um sentido absolutamente de dizer: o nosso governo não está preocupado com a população da baixa renda, nosso governo não está preocupado em garantir proteção social, as pessoas têm que se virar, têm que ir individualmente buscar garantir a reprodução da sua vida. É uma perspectiva institucionalmente liberal. É um pente fino sim, mas um pente fino que tem um valor moral muito conservador, muito liberal. Aquela perspectiva mais social que a Constituição apontou foi jogada completamente no lixo com essa proposta de reforma. E que eu espero que a gente consiga resistir e barrar, enquanto ainda é uma proposta.
Outra mudança é a extinção do regime próprio dos servidores públicos. O que justifica que o serviço público tenha um regime próprio? Qual o problema em unificar os regimes?
Historicamente, a gente nunca foi contra ter um regime que fosse igualitário para o trabalhador do serviço público e do setor privado. Do ponto de vista de princípio, a igualdade nos regimes é importante. Agora, isso precisa estar ancorado e sustentado numa igualdade que seja substantiva, uma igualdade que de fato garanta condições de reprodução do trabalhador e da trabalhadora, qualquer que seja o seu campo de trabalho, no momento em que há uma interrupção da sua possibilidade de reproduzir a vida pelo trabalho. A gente não é contra uma igualdade substantiva no acesso aos direitos e benefícios. Ao contrário, a gente defende que esses benefícios sejam universais, sejam iguais para todos. Qual é a questão da unificação agora? Já se tentou fazer unificação anteriormente, mas desde a nossa história a gente sempre teve três regimes: o regime geral do setor privado, e no setor público a distinção entre civis e militares. Acontecem dois problemas. O primeiro problema é unificar os servidores públicos civis e os trabalhadores do setor privado de forma absolutamente rebaixada. Se a unificação fosse pelo sistema de previdência do servidor público, seria uma unificação muito mais substantiva, no sentido da qualidade, porque você teria de fato um acesso ao benefício mais compatível com o tempo e as condições de trabalho. Mas não é isso. É uma unificação não para ampliar direitos, é para extirpar, para destruir direitos que foram conquistados. Agora, mundialmente existe todo um debate de que o servidor público deve ter sistemas de previdência diferenciados do setor privado, por conta da natureza do trabalho. E é esse o argumento técnico que os militares estão usando agora para justificar e defender que eles fiquem de fora dessa reforma. Os militares dizem que o que eles recebem não é uma previdência, porque na verdade eles continuam à disposição do Estado, apenas estão na reserva, e que por isso, ao se aposentarem, eles não podem ter outro emprego, não podem ter sindicato, não podem se filiar ao partido... Dizem que têm determinadas peculiaridades no exercício da função que é como se eles continuassem trabalhando. Na verdade, isso não é exatamente uma verdade, porque tem muito militar que trabalha, que está na reserva mas exerce outras atividades, abre empresas, enfim. Eu acho que esse argumento técnico é bem questionável. Mas no caso dos servidores públicos, sem especificar os militares, uma questão que é utilizada para justificar uma aposentadoria diferenciada é justamente o fato de o servidor público ter uma relação de prestação de serviço para toda a sociedade. E, ao ser investido dessa função pública ele teria esse direito de ter algumas prerrogativas para ter uma aposentadoria diferenciada. Esse é um argumento que se usa. Eu sou defensora de igualdade de condições no acesso aos direitos. Então, eu não sou contra uma unificação dos regimes. Mas não essa unificação, que é para rebaixar direitos que foram conquistados pelos servidores públicos com muita luta, com muita greve...
O Brasil precisa de uma reforma da Previdência?
Olha, desde que a Constituição Federal foi aprovada, com a perspectiva de defesa de um sistema de proteção social ampliado, a gente sempre disse que essa seguridade social que foi aprovada era tímida. A gente sempre defendeu que aquela seguridade social aprovada na Constituição foi importante, foi necessária, foi um avanço em relação ao que havia antes, mas tinha que ser muito mais ampla e universal do que a Constituição Federal estabeleceu. Porque embora tenha estabelecido uma saúde pública universal, ela não garantiu de fato condições concretas para esse sistema público se espalhar para todas as cidades, para todo o Brasil, e com qualidade de atendimento. No caso da previdência, manteve não só os regimes diferenciados, que era uma questão que a gente já questionava lá atrás, mas também a lógica do seguro, segundo a qual só tem benefício quem contribui e o benefício é proporcional ao que foi contribuído. E isso se deu num contexto de organização do trabalho que já deixava de fora muitos trabalhadores: metade da população economicamente ativa que nunca contribuiu. Já lá atrás a gente dizia que aquela seguridade social era limitada e que precisava se tornar mais ampla. Eu não diria uma reforma de uma previdência. Mas o Brasil, pelas suas condições de trabalho, pelo seu histórico de desigualdade e discriminação, por deixar fora do acesso à previdência os trabalhadores pobres que não têm emprego estável, precisaria ter um sistema de seguridade social muito mais amplo, muito mais universal e financiado com fundo público, onde todos tivessem acesso. Então, se você me pergunta: o Brasil precisa de uma reforma da previdência? Eu te respondo, o Brasil precisa de uma ampliação da seguridade social, que está na Constituição Federal. Qualquer reforma que venha a reduzir essa seguridade social é uma reforma para destruir coisas conquistadas. Mas aquilo que foi conquistado também não é suficiente. Isso precisaria ser reformado, mas no sentido de ampliar e não de reduzir. Por isso que a gente chama essas reformas, essa e outras que a gente já teve nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, de contrarreforma. Porque contraria aquilo que já foi a reforma da Constituição.
De todos que já foram feitas, como focê classifica essa proposta de contrarreforma?
Essa é a pior contrarreforma, é a mais destrutiva, é a que retrocede em relação ao que a gente tinha antes da Constituição de 1988. Ela retrocede muito. Para mim, de fato, é a liberalização das poucas conquistas que a gente conseguiu garantir na Constituição.
Comentários
Sra Ivonete parabéns pela
A professora Dra. Ivanete