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Entrevista: 
Luciana Miyoko

'Esse era o momento de reforçar o orçamento, não retirar'

Dois mil e vinte e dois deveria ser o ano da retomada na educação. Depois de dois anos de escolas fechadas devido à pandemia de Covid-19, e da perda no aprendizado de crianças e adolescentes em razão da paralisação, a ideia era que este fosse um recomeço para os estudantes. Entretanto o cenário é incerto. Com sucessivos cortes orçamentários, institutos federais se equilibram em uma corda bamba de desfinanciamento e falta de recursos que ameaçam a estabilidade e o futuro dessas instituições. Nesta entrevista, Luciana Miyoko Massukado, vice-presidente de Assuntos Administrativos do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) e reitora do Instituto Federal de Brasília (IFB), aponta os desafios de uma gestão complexa, e fala sobre a contraditória escolha dos governantes em cortar verbas da educação a fim de equilibrar os cofres públicos.
Redação - EPSJV/Fiocruz - EPSJV/Fiocruz | 22/07/2022 12h17 - Atualizado em 23/08/2022 12h02

O MEC [Ministério da Educação] está prevendo um corte de R$ 300 milhões no orçamento de 2023 dos institutos federais. De que forma isso irá impactar no serviço oferecido por essas instituições?

Os cortes sempre acabam impactando na questão do custeio. O orçamento tem a parte obrigatória, que é o salário dos servidores, e isso não está sob a gestão de reitores e reitoras. E há o recurso discricionário, aprovado na lei orçamentária anual, que serve, principalmente, para gente custear o funcionamento das instituições. Questões de energia, água, editais para projetos de ensino, pesquisa, inovação, extensão, bolsas para estudantes. E tudo isso acaba sendo afetado diretamente, porque, com o valor menor, a gente não consegue contemplar, neste ano, o que contemplava nos outros anos. Há também a questão dos contratos continuados. A gente tem uma inflação que já está na casa de dois dígitos e isso não está sendo reverberado no nosso orçamento. Isso significa que a gente tem que manter nossas escolas, nossos campi, funcionando com um valor ‘comido’ pela inflação. A gente tem hoje um custo muito maior, com um orçamento muito menor. Os impactos são diretos na vida do estudante, pois são menos oportunidades que eles terão. Isso é pesaroso. A gente sabe que 67% dos estudantes da Rede Federal são oriundos de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo. Há uma questão de hipossuficiência na vida desses estudantes que veem nos Institutos Federais um local para sonhar com um futuro melhor, por meio das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Há também a questão dos insumos. Para as aulas práticas, nas áreas de construção civil, gastronomia, agronomia, agroecologia, ou seja, em várias áreas do conhecimento, nós necessitamos de insumos para que os estudantes consigam estar mais próximos do que vai ser a vida deles, dada a profissionalização que eles estão tendo. Então, com menos recursos eles vão ter mais demonstrações por vídeo do que tateando. Nós temos também laboratórios especializados, com equipamentos de ponta, e eles não podem acessar por falta de insumo. Outra área afetada são as visitas técnicas que, por causa do combustível que está muito mais caro, deixam de acontecer. O estudante é frontalmente atingido em função desse corte, porque tudo o que a gente faz de manutenção é para dar uma infraestrutura de qualidade para que ele permaneça na escola.

O orçamento de 2022 já foi insuficiente. Com menos R$300 milhões para o ano que vem, o que você vislumbra para um futuro próximo?

Em 2021, tivemos um ano muito crítico, com redução de 20% em relação a 2020. As instituições só sobreviveram por duas razões. A primeira porque a maioria estava no remoto, e a segunda, falando pelo IFB [Instituto Federal de Brasília], a gente só conseguiu sobreviver e continuar com as portas abertas sem fazer nenhuma demissão porque trabalhou junto com a bancada federal aqui do Distrito Federal, e conseguiu, via emenda de bancada, recuperar R$ 7 milhões que nós perdemos em 2021. Se o cenário continuar, a depender dos valores das repactuações para os próximos anos, não tem como não fazer demissão, pois não vamos conseguir honrar os contratos. Do valor que a gente recebe, 70% já está carimbado, que é água, luz, internet e a questão dos terceirizados (vigilância, limpeza, motorista e apoio administrativo). Os 30% restantes nós usamos para manutenção de equipamentos, compra de livros, de insumos, combustível para visitas técnicas, editais de ensino, pesquisa e extensão, fomento a capacitação de servidores. Então estamos chegando a um cenário drástico, não temos mais para onde ir. As instituições estão ‘com a água no pescoço’ porque não têm mais de onde tirar, não têm respiro. Isso pode ocasionar demissões e, quando a gente faz demissão de terceirizados, a gente está impactando várias famílias brasileiras. A médio e longo prazo, isso também pode significar a não abertura de novas turmas por falta de condições para manutenção dos espaços.

“O estudante é frontalmente atingido em função desse corte, porque tudo o que a gente faz de manutenção é para dar uma infraestrutura de qualidade para que ele permaneça na escola.”

O que é corte e o que é contingenciamento no orçamento de 2023? E quanto foi de cada um desses no orçamento de 2022?

Em 2022 tivemos uma normalidade até o final de maio. Estávamos com o nosso orçamento completo aprovado. Depois veio a primeira notícia do governo sobre o contingenciamento, ou bloqueio, de 14,5%, o que significava cerca de R$360 milhões. O bloqueio pode ser revisto até o final do ano, mas não há garantias do prazo. Na prática, para as instituições, o bloqueio já significa corte, porque se eu precisar usar esse recurso, eu não consigo. Esse bloqueio tem dois caminhos: ou ele volta para a instituição ou é cancelado, que seria o corte. Acontece que, quando o governo faz o bloqueio, se as instituições, por exemplo, têm uma licitação prevendo usar aquele recurso, elas não conseguem mais. Neste meio tempo, a gente soube que o bloqueio de 14,5% virou 7%. Então reduziu, mas ainda era um prejuízo. Uma semana depois, ou seja, três semanas seguidas, esses 7% de bloqueio se dividiu em metade bloqueio e metade corte. Então, hoje a gente tem R$184 milhões de corte na Rede Federal. ‘Mas como cortou se não teve alteração na nossa Lei Orçamentária Anual?’ Houve uma escolha, um remanejamento dentro do governo federal retirando [a verba] da educação – acho que retirou da saúde também, mas a pasta da educação foi a mais afetada –, para ser colocada em outras áreas. Então isso foi uma escolha, não precisou mexer na LOA.

De que forma esses cortes afetam, em especial, os estudantes de baixa renda?

Na questão de oportunidades. Os Institutos Federais são uma rede criada em 2008 e se tornaram um grande portal de oportunidade para os estudantes. Temos várias histórias de sucesso de alunos, filhos e filhas de empregadas domésticas, hoje adultos, retomando seus estudos, podendo conhecer outros lugares, outras cidades, participando de projetos de pesquisa, de extensão e de jogos escolares, que auxiliam no desenvolvimento como ser humano. Esse ano, a gente retoma os jogos da Rede Federal, que reúne atletas do Brasil inteiro. Temos etapas locais, regionais e federais. Com o corte, precisamos tirar a etapa regional, pois não temos como assumir. É algo que estudantes de outros anos antes da pandemia tiveram acesso, mas os estudantes atuais não terão. Se continuar dessa forma, que tipo de ensino e aprendizado eles vão ter? A distância para o [ensino] particular vai ficar muito grande. Nossa indignação é ver uma população ávida por conhecimento, com estudantes que entram na escola às sete, oito horas da manhã e cinco da tarde estão lá ainda, porque têm a oportunidade de fazer pesquisa na biblioteca, ir atrás de um professor ou ficar em um laboratório. Porque eles querem aprender, querem fazer pesquisa. Lá eles têm internet, que às vezes em casa não têm. A escola é um ambiente acolhedor para os nossos jovens. Eles acabam perdendo oportunidades. Por exemplo, já fizemos várias delegações de mandar ônibus de estudantes para outros estados, em eventos de outros Institutos Federais, porque nossa rede tem essa capilaridade que se conecta. Estudantes de Brasília ficam alojados na Bahia, os do Piauí vêm para Brasília, e alojamos eles nas instituições, reduzindo custos. Mas têm os custos do transporte, da alimentação. E isso será impossibilitado com esses cortes. Cada vez menos integração, pesquisas e aulas práticas: isso afeta a alma do estudante.

Os cortes têm sido intensivos nas áreas de educação, ciência e tecnologia. A que fatores você atribui isso?

É uma questão de escolha. A escolha está sendo não no investimento, e sim no corte dos orçamentos de educação, ciência e tecnologia.  É um olhar que não vê a transformação do Brasil por meio da educação, ciência e tecnologia. Durante a pandemia, essas áreas ajudaram no desenvolvimento da vacina, das pesquisas, dos locais para vacinação, produção de álcool. Estavam os institutos, universidades, pesquisadores, técnicos de laboratórios e, por vezes, estudantes de forma voluntária, de prontidão para combater a pandemia. Os Institutos Federais, por exemplo, por estarem em mais de 600 municípios, têm maior alcance que as universidades. Isso fez com que nossa produção de álcool chegasse com muito mais rapidez em UBS [Unidades Básicas de Saúde] e postos de saúde. A pesquisa também foi muito incentivada porque as pessoas quiseram contribuir. Tivemos muito desenvolvimento, mas poderíamos ter feito muito mais com investimento. O combate à pandemia também contribuiu para que a sociedade visse a importância da ciência, da tecnologia, das universidades e Institutos Federais. Então, esse era o momento de se reforçar o orçamento, não retirar. Nós demonstramos que temos ciência e pesquisa. E que a educação pública tem dado frutos. Então é isso, é uma questão de escolha. Para nós a escolha é a educação, a ciência e a tecnologia. É por meio da educação que a gente emancipa, que a gente tem pensamento crítico e que a gente avança como país.

"Cada vez menos integração, pesquisas e aulas práticas: isso afeta a alma do estudante"

Você poderia fazer um histórico do orçamento dos institutos federais nos últimos anos e de quanto foi a redução neste período?

Nossa Rede Federal começou com 104 escolas e hoje tem mais de 600 unidades. Até mais ou menos 2015, a gente estava em um momento de muita expansão, tinha recursos para investimento. Contávamos com R$ 3,7 bilhões. Mas aí entra um monte de coisa: o dinheiro de investimento, assistência estudantil, o custeio. Naquela época, a gente tinha menos de um milhão de estudantes. Agora, temos um milhão e meio de alunos, com o orçamento previsto para 2023 de R$2,1 bilhões. Eu fiz um cálculo outro dia: se a gente pegasse a inflação que a gente usa, o IPCA de 2015 até dezembro de 2021, isso daria mais ou menos 50%. Se eu jogasse esse valor sobre o orçamento de 2015 para gerar o de 2022, a gente teria que ter um investimento de cerca de R$ 5,2 bilhões. Mas nosso orçamento não passa de R$ 2,5 bilhões. Para ver o que que era a qualidade naquela época e o que é precariedade hoje. Naquela época a gente conseguia trabalhar com a questão de projetos, programas de qualificação dos nossos servidores, parceria com universidades, oferta de mestrado e doutorado. A gente conseguia fazer muitas visitas técnicas, intercâmbio dos estudantes. Hoje não tem mais esse dinheiro. É essa situação que vem decaindo por causa da emenda constitucional [95], a PEC do teto dos gastos, que, como a despesa obrigatória sempre vai crescer, o que achata é o discricionário. Para a gente, a maior queda foi em 2021. Foi 20% a menos em relação a 2020. De 2015 para cá, a gente tem uma curva descendente. Em 2022, ela só é ascendente em relação a 2021, porque 2021 é um ano que a gente não pode considerar. Eu até rebati em uma reunião da Comissão de Educação da Câmara. A gente dá a nossa narrativa e o MEC dá a deles e ok. Mas é uma narrativa que não dá para aceitar. Eles fazem um recorte e pegam só 2021 e 2022, aí vão nas comissões e falam que em 2022 recompôs o orçamento. Mas isso não é referência, porque já tinha reduzido esse montante. Se olhar mais para trás, houve sim uma redução e não consideração do valor da inflação. Fora os salários que estão defasados, acho que já são cinco ou sete anos, dependendo se é técnico ou docente, sem reajuste salarial em relação à inflação. Pelo nosso sindicato, falavam cerca de 20% de defasagem de inflação. Ou seja, o nosso salário também não compra o que comprava há cinco, sete anos atrás.

Nos últimos anos, especialmente devido à pandemia de Covid, à área científica e tecnológica se mostrou fundamental para revertermos uma situação de calamidade em âmbito mundial. Que mensagem você acredita estar sendo passada para os jovens que investem nessas áreas com tantos impeditivos orçamentários?

No estímulo à ciência, esse movimento da pandemia estimulou mais pessoas querendo entrar para a área da ciência, para pesquisa cientifica e desenvolvimento de soluções. Foram coisas que instigaram muito os nossos estudantes a verem que a pesquisa feita em laboratório traz resultados para a sociedade. Mas outra questão é quando a gente relaciona [a pandemia] com a falta de incentivos, cortes nos orçamentos das universidades, cortes no CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], corte na Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Isso já está tendo um reflexo, cada vez mais comum, que é a fuga de cérebros. Então, se por um lado, nos jovens, principalmente nos mais novos, acendeu essa vontade pela pesquisa, pela ciência, por outro, houve um desestímulo quando você vê que há cada vez menos dinheiro para sua pesquisa. O que eu percebo com meus colegas é uma comparação com outros países. Por exemplo, um professor daqui vai passar um ano fazendo pós-doutorado no Canadá, e contou: ‘Luciana, lá a gente não precisa fazer pesquisa de preço para saber qual é o mais barato. Eles perguntam qual é o equipamento necessário, o insumo? Qual é o reagente para a tua pesquisa funcionar?’. Quando ele contou que no Brasil tem que fazer três orçamentos para pegar o mais barato, eles falaram assim: ‘qual é a lógica disso?’.

Como o Conif tem agido para tentar reverter essa situação?

Nossa batalha, de reitores e reitoras, é reverter esse bloqueio ainda este ano. Fizemos uma reunião com o presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL), agora em julho, para sensibilizar em relação à temática. Estamos fazendo uma mobilização junto à mídia e aos parlamentares. Há duas semanas estivemos no Congresso Nacional e conseguimos falar com cerca de 115 parlamentares, entre deputados e senadores. Foi surpreendente ver tantos reitores rondando os gabinetes. Porque é uma tragédia anunciada. Já estamos agindo mesmo que os parlamentares digam que está cedo pois a PLOA só deve chegar em agosto. A gente já está pautando os parlamentares para que, no momento certo, não seja a primeira vez que eles ouvem falar sobre isso. Talvez em setembro a gente vá mais uma vez ao Congresso, assim em bloco. A gente também tem participado de várias audiências públicas promovidas pela comissão de educação, pelo TCU [Tribunal de Contas da União], nos diálogos abertos para falar da situação orçamentária dos Institutos Federais. E cada reitor internamente tem feito lives para sensibilizar a comunidade acadêmica porque isso afeta a todos, servidores e estudantes, para que eles tenham uma compreensão que o orçamento não é definido por reitores ou reitoras. Porque no ano em que o MEC diz que é ‘o ano da educação’, o ano da retomada, da recuperação da aprendizagem, de trazer os estudantes de novo para o ambiente escolar, é justo nessa pasta que o corte está vindo. O presidente da Câmara ficou de conversar, primeiro, internamente dentro do próprio MEC, se a gente não conseguiria reverter. Se não, dentro do próprio governo federal. Se isso não for feito, a única saída é vir um PLN [Projeto de Lei do Congresso Nacional] para a votação de créditos suplementares, porque isso vai ser a mais do que foi aprovado na LOA de 2022. Não é porque é uma escola pública que eles têm que ter menos direitos e oportunidades do que quem está em escolas privadas. Inclusive, acho que essa é a grande missão das escolas públicas: ofertar uma educação de qualidade a nível dos particulares, para aqueles que não têm recursos para arcar com a mensalidade. É assim que a gente trabalha, não é com ensino precarizado. É com ensino de qualidade que dê condições para que os estudantes tenham condição de ingresso e de competitividade no mercado de trabalho.

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Em dezembro de 2021, o Congresso Nacional aprovou uma lei (nº 14.276), que modificava e detalhava alguns pontos da lei 14.113 que, um ano antes, criou o novo Fundeb, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação. Considerado uma vitória pela maioria das entidades e movimentos sociais que atuam em defesa da educação pública, entre os principais ganhos do novo Fundo destacam-se o seu caráter permanente – diferente da versão anterior, que tinha prazo de validade – e o aumento progressivo da complementação da União, que era de 10% e agora deve chegar a 23% em 2026. Isso, no entanto, foi resultado de uma verdadeira ‘queda de braços’ com o governo federal – que, na avaliação de Nelson Cardoso do Amaral, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), ainda não se deu por ‘vencido’. De acordo com Amaral, mudanças implementadas desde a aprovação do novo Fundeb mostrariam que a União quer “pegar de volta” parte do dinheiro a mais que vai ter que empregar na educação básica. Um dos caminhos, diz, é tentar usar esse recurso para políticas sociais executadas pelo setor privado. Outro é reduzir ainda mais sua responsabilidade pela educação federal através do decreto 10.656/2021, que inclui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) como possível beneficiária de um mecanismo de financiamento que foi criado para fortalecer estados e municípios. Nesta entrevista, além de alertar para os riscos que ainda podem existir e problematizar os efeitos dessa mudanças para os Institutos Federais, o pesquisador analisa os efeitos do Fundeb sobre a educação profissional no Brasil.