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Entrevista: 
Marcela Pronko

‘Há um certo “deixar de lado” de qualquer tipo de aprendizagem que não seja diretamente voltada para inserção no mercado de trabalho’

Lançado no fim de setembro sob o título ‘Desenvolvimento Mundial 2018: Aprendizagem para Realizar a Promessa da Educação’, o novo relatório do Banco Mundial alerta para uma “crise de aprendizagem” na educação global, afetando milhões de jovens estudantes em países de baixa e média rendas. Segundo o documento, ao longo dos últimos anos houve avanços no que diz respeito à extensão de escolarização, ou seja, tem mais estudantes nas escolas, porém isso não significa – diz o Banco – que essas crianças e jovens aprendam. A instituição defende que o foco agora tem que estar menos na escolarização e mais na garantia dessa aprendizagem. Nesta entrevista, Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), afirma que a mudança do foco da escolarização para aprendizagem fará com que a escola perca sua centralidade. Marcela ressalta que com essas novas orientações, o Banco, na verdade, sugere que a aprendizagem pode ser feita fora do espaço escolar. “Esse fora do espaço escolar determina outro espaço, que é o mundo do trabalho, o espaço empresarial como um espaço privilegiado para o desenvolvimento das capacidades específicas que os jovens têm para se inserirem no mundo produtivo”, analisa.
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 24/01/2018 08h12 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Do que se trata o relatório?

É o relatório para desenvolvimento mundial do Banco, que é um dos documentos mais importantes que o Banco Mundial produz anualmente. A instituição escolhe praticamente todo ano um tema sobre o qual vai se debruçar para fazer um diagnóstico da situação sobre esse tema nos países em desenvolvimento e propor algumas orientações de política. O documento de 2018, cujo tema foi definido dois anos antes, ou seja, em 2016, trata da educação. Mas trata numa perspectiva que o Banco já inaugurou num documento anterior, de 2011, específico também para a educação, chamado ‘Aprendizagem para todos - Estratégia 2020 do Banco Mundial para a Educação’. Naquele documento, o Banco já adiantava qual seria sua nova perspectiva sobre educação para o mundo, que é focar nas aprendizagens. Esse documento de 2018 recupera essa perspectiva e aprofunda o diagnóstico da situação mundial. O argumento principal é que ao longo dos últimos anos se avançou bastante no que diz respeito à extensão de escolarização, ou seja: existem mais estudantes, tem mais crianças na escola. Porém isso não significa – diz o Banco – que essas crianças aprendam e, então, o foco agora tem que estar menos colocado na escolarização e mais na garantia dessa aprendizagem.


E o que você pensa sobre a mudança de foco para a aprendizagem?

A mudança do foco da escolarização para aprendizagem tem algumas implicações. A primeira questão é que a escola vai perder a sua centralidade. No documento de 2011, o Banco já coloca que é menos importante o tempo que as crianças passam na escola e mais importante o que as crianças aprendem, independentemente ou para além da escola. Com esta afirmação, embora os sistemas educacionais continuem tendo certa importância – porque, afinal, são eles os dispositivos sociais, através dos quais, os estudantes adquirem as competências clássicas – o Banco está colocando que essa aprendizagem pode ser feita fora do espaço escolar. Esse fora do espaço escolar determina outro espaço, que é o espaço do mundo do trabalho, o espaço empresarial como um espaço privilegiado para o desenvolvimento das capacidades específicas que os jovens têm para se inserirem no mundo produtivo. E o que interessa, na verdade, é essa inserção. Então há um certo “deixar de lado” de qualquer tipo de aprendizagem que não seja diretamente voltada para a produção e para a inserção no mercado de trabalho.

Em segundo lugar, a questão da ênfase nas aprendizagens está muito articulada com as políticas que o Banco e outros organismos internacionais vêm desenvolvendo nos últimos tempos, que têm a ver com pensar a escola como se fosse uma empresa. E qual é o produto dessa nova empresa escolar? Segundo eles é essa aprendizagem voltada, de novo, para inserção das novas gerações no mercado de trabalho. Se o produto da empresa escolar são as aprendizagens, ela tem que ser medida e avaliada principalmente pelos seus resultados.


Quais são as consequências para a escola?

Por isso, há toda uma redefinição do que deveria ser a gestão da escola. Uma das principais propostas de política desse relatório é o grande pacto das nações voltadas para as aprendizagens, onde os diferentes atores que intervêm no espaço escolar deveriam deixar de lado interesses considerados conflitantes com as aprendizagens. É interessante ver que interesses conflitantes com as aprendizagens são, para o Banco – e isso está dito explicitamente –, as preocupações dos trabalhadores da educação, principalmente dos docentes, com salários, com melhores condições de trabalho, plano de carreira e estabilidade. Então, veja, o docente tem que estar completamente voltado para as aprendizagens, independentemente das condições de inserção nesse processo de trabalho escolar. Ao mesmo tempo, os diretores também teriam interesses conflitantes se eles demonstrassem preocupação com emprego, salário, boas relações com pessoal. Tudo será medido através das aprendizagens, independente das outras condições em que isso se desenvolva.


Quais então são as medidas de política que o Banco recomenda?

Basicamente são três. A primeira é medir os sistemas educacionais. Os ministérios de educação têm que fazer um esforço grande no sentido de desenvolver sistemas de medição de aprendizagem que permitam gerar evidências para tomar decisões de políticas mais acertadas. Então, toda essa ênfase que vimos nas últimas décadas em desenvolvimento de sistemas de avaliação agora é reforçada, mais uma vez, no sentido de ter boas medidas ou medidas confiáveis de aprendizagem em âmbito nacional, de um lado e, de outro, que permitam o ranqueamento internacional dos países, que também é outra forma de criar evidência.

A segunda orientação é precisamente desenhar políticas baseadas em evidências. Então, de acordo com os déficits de aprendizagem detectados, cada país tem que adotar medidas de política a partir dessas evidências. Mas, de novo, veja, estamos falando em uma aprendizagem muito específica. Estamos falando das competências básicas necessárias para que as novas gerações possam se inserir no mercado de trabalho e ponto. Não há uma preocupação com a formação integral da criança, dos jovens, não há uma preocupação com um desenvolvimento omnilateral dessas novas gerações. Pelo contrário: se trata de um desenvolvimento estreitamente ligado à inserção produtiva das novas gerações.

E, por fim, a terceira orientação tem a ver com construir o que eles chamam de pactos ou alianças dos atores que intervêm na educação para deixarem de lado seus interesses particulares e pensarem ou participarem de processos promotores de aprendizagem.


Como isso se expressa no Brasil?

No Brasil, tentativas desse tipo já existem como uma iniciativa que foi desenvolvida no âmbito empresarial, que é o Movimento Todos Pela Educação. Embora esse Movimento ainda coloque a educação e a aprendizagem como focos, a compreensão que eles têm de educação é bastante estreita, a mesma colocada nos documentos do Banco Mundial. E que tenta ser um falso pacto, de todo mundo deixar de lado os seus interesses particulares em favor da educação. Porque, na verdade, interessa ao mundo empresarial precisamente o desenvolvimento destas capacidades e destas chamadas competências restritas, específicas para o aumento da produtividade que, trocando em miúdos, significa o aumento dos lucros das empresas. Deste movimento no Brasil só participa o setor empresarial, não há uma preocupação de pensar a educação para além desta estreita definição de competências clássicas. Nesse sentido, não atende os anseios de uma formação integral que permita o desenvolvimento em todas as dimensões das futuras gerações.


O relatório de 2018 cita o Brasil?

Na verdade, ele não destaca a situação brasileira – a não ser como exemplo negativo. Por ser um relatório mundial, ele vai trazer exemplos das realidades dos diferentes países. Em relação especificamente ao Brasil, o Banco diz: “No Brasil, estudos mostram que, na atual taxa de progresso, somente daqui a 75 anos as crianças abaixo de 15 anos terão as mesmas habilidades de matemática que o país médio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], enquanto que na leitura levará mais de 260 anos”. Então, embora o país tenha algumas iniciativas no sentido de orientar as melhorias na aprendizagem, os resultados educacionais brasileiros estão muito aquém se comparados com os países em desenvolvimento. E como as mudanças nesse plano são muito lentas, se colocam esses prazos – e não fica muito claro como o Banco calcula.


O relatório tem o poder de orientar a política de educação brasileira?

Na verdade, o relatório não traz muitos elementos novos do ponto de vista conceitual, porque a maior parte desses elementos já estava contida em documentos parciais ou outros tipos de documentos anteriores, mas ele vem reforçar uma linha de trabalho. Reforça uma orientação de políticas que o governo brasileiro já vem desenvolvendo há tempos e que, no final das contas, alimenta esse interesse empresarial, que é também um interesse particular, embora não seja reconhecido como tal.

No fundo, há um mito de que o desenvolvimento econômico do Brasil pensado como o crescimento das empresas que atuam no território nacional corresponde ao crescimento da sociedade como um todo. Esse mito esconde que, na verdade, o crescimento das empresas se faz precisamente às custas, e cada vez mais, por conta das políticas regressivas que estamos vivendo, da degradação das condições de vida do conjunto da classe trabalhadora.


Qual a relação do relatório atual com o relatório ‘Um ajuste justo: Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil’, divulgado em novembro de 2017 pelo Banco Mundial?

As orientações de políticas que estão contidas nesse documento que pensa a educação como um todo para o mundo são conflitantes com as orientações específicas que o Banco pensou para o Brasil nesse segundo documento. Porque a principal orientação de política que o relatório ‘Um ajuste justo’ traz para educação no Brasil é o recorte do número de docentes, porque, afinal, são eles que oneram os gastos educacionais e, na visão do Banco, não trazem grandes resultados, vamos dizer, e eles podem ser cortados. O relatório de novembro vai dizer que a relação docente/aluno está fora da média internacional, e que então este poderia ser um item de ajuste. O documento geral da educação vai dizer que os docentes continuam sendo um dos elementos centrais para pensar aprendizagem. De certa maneira,  valoriza a presença dos docentes como um elemento importante a ser considerado em políticas focadas na aprendizagem. Então há uma certa discrepância.


E como esse relatório vai impactar agora em 2018?

Há muito tempo que o Banco não trabalhava um documento deste porte relacionado à educação. Ele vem reforçar um elemento que é central para o mundo em tempos de crise estrutural do capitalismo. Lembrando que as orientações de política que estão contidas nele, na verdade, trazem exemplos e recuperam experiências do mundo inteiro, mas estão claramente orientadas para a definição de políticas nos chamados países  em desenvolvimento. Isso é dito explicitamente pelo documento. Não há um questionamento ou uma perspectiva de influência direta nas políticas educacionais dos países ditos desenvolvidos, mas uma orientação para que os países em desenvolvimento façam um alinhamento das suas políticas educacionais no sentido de consolidar ou favorecer o desenvolvimento capitalista em nível mundial.


Por fim, qual é a sua avaliação sobre esse documento?

Bom, eu acho que esse documento vem reforçar precisamente orientações de políticas que já estavam presentes, mas que agora aparecem de maneira mais sistematizada e mais orgânica na perspectiva do Banco, no sentido de fortalecer políticas de educação diretamente alinhadas aos interesses empresariais, capitalistas de uma maneira geral. Também de pensar a educação do conjunto da classe trabalhadora estreitamente vinculada à sua capacidade de inserção no mercado de trabalho e de aumento da produtividade, sem preocupação alguma com perspectivas educacionais mais amplas, que estão mais diretamente relacionadas aos interesses da classe trabalhadora, uma educação integral e omnilateral. Uma educação que forneça ao conjunto dos filhos dos trabalhadores a capacidade de compreender o mundo do ponto de vista técnico, mas também do conjunto das relações sociais nas quais eles se inserem, de pensar este mundo e de mudar este mundo.

Comentários

Artigos como esse deveriam chagar mais próximo pelo menos da classe média baixa.