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Entrevista: 
José Dari Krein

'Não existe possibilidade concreta de a reforma trabalhista ter força de alavancar o crescimento da economia'

Nesta entrevista, o pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Cesit/Unicamp) José Dari Krein fala sobre os aspectos comuns aos processos de reforma trabalhista que vêm ocorrendo desde a década de 1980 em vários países. Segundo ele, o que as pesquisas têm mostrado é que, em vários países, como a Espanha, que em fevereiro revogou parte da reforma trabalhista aprovada em 2012 no país, as teses neoliberais de que a flexibilização de direitos trabalhistas seria capaz de alavancar a geração de empregos e a produtividade do trabalho não se comprovaram em nenhum lugar, inclusive no Brasil, onde ganha força o argumento de que é preciso revogar a reforma trabalhista aprovada em 2017
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 20/04/2022 11h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Quais os paralelos entre os processos de reforma da legislação trabalhista no Brasil e em outros países que passaram por reformas, como a Espanha, por exemplo, que recentemente revogou parte das mudanças implementadas em 2012 no país?

Os países têm sistemas de relações de trabalho muito distintos, com diferentes características de como é regulamentada a legislação trabalhista, a negociação coletiva, as relações de emprego, o funcionamento das instituições públicas no trabalho. Mas nos impressiona nos nossos estudos como as reformas trabalhistas nos últimos anos, aqui e em outros países, apresentam singularidade em alguns aspectos. O primeiro é a introdução de formas alternativas ao contrato por prazo indeterminado. Aí tem uma criatividade em vários países: tem o contrato intermitente no caso do Brasil, contrato por obra, contrato especial para grupos mais vulneráveis do mercado de trabalho, para pessoas com mais idade, contratos temporários. Tem uma infinidade, e a Espanha de fato foi o país que talvez tenha apresentado a maior diversidade. Acho que são dezesseis novos tipos de contratos introduzidos na legislação desde os anos 1980. Há um estímulo ao trabalho autônomo, trabalho por projetos. É uma situação que gera uma insegurança. O contrato de trabalho por conta própria, por exemplo, no Brasil cresceu fortemente, e é uma expressão disso, mas há um estímulo para outros países também fazerem a mesma coisa. O estímulo à terceirização também vem como um dos grandes temas também, faz parte dessas formas de contratação alternativas.

Há um conjunto de medidas que vêm para flexibilizar as formas pelas quais as empresas conseguem racionalizar o uso do tempo do trabalhador. Uma empresa pode simplesmente pagar a hora que estiver utilizando aquele trabalhador, e a hora que não estiver utilizando a força do trabalho não paga. Isso é uma racionalização do uso do tempo no trabalho e uma economia para as empresas. Isso se traduz no não pagamento das horas de deslocamento, não pagamento das horas de preparação para de trabalho, no banco de horas, na compensação individual da jornada, na regulamentação da interjornada, na possibilidade da extensão da jornada até 12 horas do dia. No caso brasileiro, são vinte e uma medidas nesse sentido.

Uma terceira dimensão das reformas trabalhistas é a questão da remuneração ao trabalho. Obviamente que a reforma tem como objetivo a redução do custo do trabalho, é uma das questões fundamentais. Das mudanças que tendem a acontecer, a primeira é a possibilidade de o salário variar de acordo com o desempenho do indivíduo, do grupo ou da empresa, especialmente para os setores melhores remunerados. É o salário se tornar mais variável, remuneração variada que a gente chama. Então por isso a introdução dos programas de incentivos, tipo PLR – Participação nos Lucros e Resultados, ou bônus, ou outras formas. Ou seja, uma parte importante da remuneração passa a ser definida de forma variável. Isso obviamente reduz custo. Essa é uma tendência, estimular esse tipo de remuneração variável. O pagamento de benefícios como vale alimentação, plano de saúde, diárias constantes, verbas indenizatórias, acabam flexibilizando a remuneração, porque são consideradas verbas não salariais, e sobre isso não incide outros direitos, como férias, descanso semana, aposentadoria. É fazer com que uma parte importante daquilo que é pago em rendimentos de trabalho não seja considerado como salário, porque isso reduz custo.

A quarta dimensão, e aqui essa última reforma do governo Michel Temer atacou mais fortemente, é reduzir o poder e a possibilidade de intervenção das instituições públicas no mercado de trabalho. Ou seja, reduzindo, no nosso caso, o nosso poder da Justiça do Trabalho, limitando a sua atuação. É tentar fazer com que essas instituições, que podem colocar um limite na forma como as empresas atuam, tenham o seu espaço de ação mais reduzido, fragilizando essa capacidade das instituições públicas de colocar limites ou colocar regras que tirem a liberdade das empresas de gerir a força do trabalho. É limitar a capacidade de intervenção do poder público na perspectiva de que o mercado seja o agente regulador da relação capital/trabalho. E aí as negociações ocorrem mais diretamente entre o trabalhador e a empresa, obviamente uma relação muito mais desigual. E para completar essa dimensão, há uma fragilização dos sindicatos. As reformas fragilizaram os sindicatos e a sua capacidade de ação coletiva então. E o sexto aspecto comum às reformas é diminuir o sistema de proteção social aos assalariados, dificultar o acesso das pessoas aos benefícios sociais vinculados a aposentadoria, auxílio desemprego, etc, benefícios que são próprios do assalariamento. Essas são os seis temas que são muito comuns em todos os países.


Isso estamos falando de processos de reforma que vêm sendo implementados ao longo da década de 1980, não só das reformas mais recentes, certo?

É, exatamente, de 40 anos para cá. O que eu estou querendo chamar atenção com tudo isso é que se busca compatibilizar o padrão de regulação do trabalho com as características desse capitalismo globalizado financeirizado, ou seja, busca-se compatibilizar as relações de trabalho num mundo que foi hegemonizado pelo neoliberalismo, por uma visão mais liberal da economia. Claro que há resistências nacionais, então nem tudo se conseguiu fazer no sentido de que o mercado autorregulado fosse o espaço da definição dessas regras, por isso se fala em longas reformas. Essa onda de reformas sempre vem no sentido de buscar ampliar esses pontos que eu falei, no sentido de ampliar o poder do capital, de que não tenha intervenção das instituições públicas nem dos sindicatos na regulação do trabalho, que isso seja um aspecto regulado no mercado entre trabalhador e empregador. É claro que, como não dá para fazer uma coisa radical, se busca nos momentos de crise econômica fazer algumas reformas que são possíveis de serem aprovadas naquele momento, por isso as ondas de reformas. A Espanha, por exemplo teve várias ondas de reformas com idas e vindas.

Eu acho que nós estamos vivendo um momento de contrarreação dessas reformas. Eu não sei o que vai dar, mas claramente há sinais no mundo de que a teoria econômica até então predominante mostra sinais de esgotamento de entregar aquilo que tinha prometido

Tudo sempre sob a justificativa de que essas reformas seriam fundamentais para criar novos tipos de empregos, resolver o problema do mercado de trabalho. Obviamente partindo de uma premissa que foi absolutamente hegemônica do ponto de vista econômico nos últimos anos, de que a rigidez nas relações capital/trabalho é prejudicial para o ganho de produtividade, para a geração de emprego, que há uma intervenção das regulações públicas, dos sindicatos, que não permite que o mercado de trabalho faça seus ajustes entre a demanda e a oferta de trabalho, e isso gera desequilíbrios e, portanto, tende a gerar desemprego, e tem um efeito negativo sobre a economia. Essa tese econômica, que é sustentada muito fortemente no caso do Brasil pelos chamados novos keynesianos, e também pelos economistas neoclássicos, sempre foi apresentada como justificativa. Alguns estudiosos, um pouco mais lúcidos, já perceberam que essa tese não tem fundamento. O Cesit tem vários estudos aqui do balanço da reforma dos anos 1990, do governo Fernando Henrique Cardoso, desde os princípios de introdução dos contratos temporários, contrato com prazo determinado, contrato parcial, e o nosso balanço mostra que não tem nenhuma comprovação empírica que a introdução desses novos tipos de contratos seja capazes de impulsionar a criação de emprego, que são capazes de formalizar os contratos. Quando se teve o melhor desempenho no mercado de trabalho, entre 2004 e 2013, não tem nenhuma uma razão que explica que o emprego teve maior desempenho por causa desses tipos de reformas trabalhistas feitas nos anos 1990. Ninguém é capaz de atribuir alguma razão a isso. O emprego não tende a crescer com a reforma, no nosso caso isso é muito concreto também.


Em meio à pandemia da Covid-19 temos visto em vários países a adoção de medidas de estímulo à economia que vão de encontro às teses neoliberais, com uma participação mais ativa do Estado. Essa hegemonia do pensamento neoliberal a qual o senhor se referiu se encontra de fato ameaçada?

Eu acho que nós estamos vivendo um momento de contrarreação dessas reformas. Eu não sei o que vai dar, mas claramente há sinais no mundo de que a teoria econômica até então predominante mostra sinais de esgotamento de entregar aquilo que tinha prometido. E do ponto de vista da reforma da proteção social já começa a haver uma certa contraposição, que não é só flexibilizar. Nos Estados Unidos em meio a pandemia surgiu esse movimento de recusa ao trabalho, em uma campanha explícita, ao que eles chamam de “empregos de merda” [shitty jobs, em inglês]. E aí se começou a discutir nos Estados Unidos a ideia de ter uma CLT, ou seja, ter direitos trabalhistas. Esse debate está colocado nos Estados Unidos hoje, até porque o desemprego está mais baixo, tem vários outros fatores. Isso fez com que tivesse uma elevação dos salários, até em função desse movimento de recusa, que é bastante substantivo em vários lugares nos empregos mais precários, que pagavam muito pouco. Foram criadas leis para que ninguém trabalhasse por menos de 15 dólares a hora em vários estados. Flórida, que é conservadora, aprovou isso, Califórnia aprovou isso, e agora em muitos lugares o piso salarial é maior que quinze dólares. Mas tem esse movimento da recusa, e se discute explicitamente a necessidade de ter um mecanismo de regulação do mercado de trabalho, de proteção. Mas claro que nós aqui no Brasil estamos na contramão disso. O setor empresarial aqui é muito mesquinho, quer o seu lucro no curto prazo, e vai resistir fortemente a isso, mas no mundo há sinais claros de que essas regras não têm como se efetivar.

As reformas têm que ser olhadas nessa dimensão um pouco mais ampla. Não é mudar a lei que cria emprego. A dinâmica do emprego é dada por fatores muito mais complexos. O que as reformas têm feito é criar empregos precários, concentração de renda, diminuição da renda para uma parcela importante dos trabalhadores, redução da sua possibilidade de consumo. E tem jogado as pessoas na insegurança, na precariedade. Ou seja, é um movimento bola de neve, você só vai piorando todas as coisas, e aqui os nossos estudos mostram que a economia brasileira não recuperou depois da crise de 2015/2016, diferentemente dos outros momentos históricos. Claro que teve a pandemia, é uma outra situação, mas pré-pandemia não tinha recuperado a economia. Em nenhum outro momento histórico isso aconteceu. Em outros momentos de grande crise econômica, logo em seguida você tem a retomada. Se você pegar a crise de 1993, a crise de 1981, de outros momentos também. Por que a de 2015 se prorrogou por tanto tempo? Uma das razões que o nosso estudo mostra é que a reforma trabalhista prejudicou a retomada da economia ao reduzir o custo do trabalho e ao criar essa insegurança no mercado de trabalho, que afeta o nível de consumo e afeta o crédito, então não recuperou a economia. O balanço nesse sentido é muito ruim, não existe possibilidade concreta de a reforma trabalhista ter força de alavancar o crescimento da economia.

Centrais sindicais brasileiras vêm defendendo a revogação da reforma trabalhista de 2017. Qual seria o impacto de uma revogação nesse momento?

A revogação é essencial, deve ser feita até para você conter essa onda de desproteção social e precariedade de trabalho. Mas o mercado de trabalho não se resolve só a partir disso. Qual é o grande problema do mercado de trabalho brasileiro hoje? É a capacidade de gerar postos de trabalho que impliquem em ganho de produtividade na economia, ou seja, conseguir criar emprego em setores tecnologicamente mais complexos. Há um mar de pessoas trabalhando em atividades que acrescentam muito pouco na produtividade de trabalho, é só você andar nas esquinas das grandes cidades, você não tem uma esquina que não tenha gente vendendo coisas. Essas pessoas todas são consideradas ocupadas no ponto de vista da estatística oficial. Elas não são desocupadas, porque as pessoas precisam se virar, as pessoas precisam comer, então elas se submetem. Então eu acho que a primeira questão fundamental é revogar a reforma trabalhista, mas você ter um processo de criação de empregos nos setores mais complexos. Por exemplo, uma das coisas que tem sido discutida, e eu acho que nisso tem que se avançar para valer, é essa coisa do complexo industrial na saúde. Acho que isso tem potencial de criação de empregos em uma estrutura econômica mais complexa, se você fizer uma coisa articulada no fornecimento dos componentes hospitalares, dos fármacos, com a pesquisa, com os serviços todos que são derivados da saúde, com todas essas questões tecnológicas. Isso é capaz, sim, de criar uma estrutura ocupacional um pouco mais complexa. A gente precisa de um modelo de desenvolvimento que seja capaz de construir uma certa perspectiva futura do país, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista social, ambiental; mas, em segundo lugar, eu acho que não é possível, mesmo você conseguindo crescer num curto prazo, incorporar todas as pessoas no mercado de trabalho, porque você tem uma população sobrante muito expressiva. Mesmo que caia a taxa de desemprego um pouco, você vai ter milhões de pessoas ainda que estão procurando algum tipo de trabalho, e outros fazendo atividades que não tem nenhum sentido. Eu acho que tem que criar algum tipo de atividade, principalmente para a juventude, estimulada pelo Estado, na agricultura, na infraestrutura, mas para a área social, para as demandas que são mais prementes aí do ponto de vista de estruturação do futuro do país.

Eu acho que você tem que ter uma intervenção pública mais incisiva na criação de emprego. Se você melhorar as regras trabalhistas e não melhorar o mercado de trabalho, essas regras tendem a ter pouca efetividade, o mercado de trabalho é muito desigual. Em segundo lugar, é preciso reduzir a jornada de trabalho, são mais de 40 anos que isso não tem uma redução. No nosso caso é a constituição de 1988, então é um pouco menos tempo, são trinta e quatro anos que não tem uma redução. E você teve ganho de produtividade? Sim, imenso, principalmente nos setores tecnologicamente mais sofisticados. Então você tem que repartir o trabalho útil, você tem que rediscutir o modo de vida das pessoas, da sociedade, estimular também outras formas que hoje já têm sido desenvolvidas, alternativas de geração de trabalho e renda mais saudáveis, mais ecologicamente sustentáveis, e aí tem muitos projetos muito interessantes aí Brasil afora que envolvem muita gente. Isso tem que ser estimulado com populações ribeirinhas, populações tradicionais da cultura familiar, a ideia de repensar a questão indígena do trabalho, a questão dos quilombolas, das quebradeiras de coco. Todas essas experiências mais solidárias, empreendimentos que são muitos no Brasil, não são poucos, é preciso estimular todas essas outras formas que têm um papel social muito forte. Você tem que diminuir essa taxa de pessoas que estão submetidas ao mercado de trabalho nessas pressões que a gente está colocando hoje, tem que reduzir a jornada de trabalho, e as pessoas têm que ter direitos e proteção sociais assegurados enquanto cidadãos desse país. Tem que mudar essa noção de que só tem direito porque o cara vendeu sua força de trabalho. Tem que ter direito à aposentadoria, tem que ter direito a ficar doente e ter licença médica, ter um certo limite de jornada regulamentada também no trabalho autônomo, tem que ter todos esses direitos assegurados enquanto cidadão, e não só se você vender a sua força de trabalho. Os sindicatos são outra coisa fundamental. Não tem democracia, não tem construção de justiça social sem ter resistência de entidades em contraposição. Eu defendo que os sindicatos que hoje existem têm que ser transformados profundamente.

Se você não resolver o problema do trabalho, as possibilidades de você construir uma perspectiva de um futuro melhor, dificilmente você vai enfrentar a perspectiva de ter uma país mais justo, um país em que as pessoas possam viver melhor. O trabalho tem absoluta centralidade como agenda. Eu vejo que tem que começar a reverter todas essas lógicas da reforma trabalhista, e colocar o trabalho em outro patamar de centralidade, dar possibilidade para as pessoas terem uma ocupação digna que faça sentido pra elas. ‘Ah, nem todo mundo vai conseguir isso’. Então você tem que renumerar bem, você tem que valorizar. Por exemplo, não tem como pensar em uma sociedade futura, ecologicamente sustentável, sem enfrentar a questão do lixo, mas olha a condição que boa parte dos catadores vive. Você tem que valorizar porque é um trabalho essencial, esses sujeitos são portadores de direitos. Vai ter jornada fixa, vai ter condições de trabalho, equipamentos de trabalho para não se expor a pegar produtos contaminados para não ficar doente. É uma atividade essencial, você tem que dar condições pra esse trabalho ser realizado no sentido de proteger as pessoas em todas as suas direções. Isso exige um repensar, colocar o trabalho na centralidade da agenda de novo.

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