Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
João Márcio Pereira

'Não necessariamente os programas de ajuste estrutural ou pacotes de austeridade são impostos'

João Márcio Pereira, professor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, acaba de publicar, junto com Marcela Pronko, o livro 'A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013) ', editado pela EPSJV/Fiocruz. Entre muitos outros trabalhos, ele é autor também do livro 'O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008)', que foi resultado da sua tese de doutorado. Nesta entrevista, ele explica o papel do Banco nas políticas de austeridade que recaem sobre os países, destrincha o receituário do chamado "ajuste estrutural" e ressalta que, ao contrário do que boa parte da esquerda pensa, a atuação dessas instituições não se dá apenas de forma impositiva, contando sempre com a participação dos governos nacionais e a adesão de parcelas da sociedade civil.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Quais são os objetivos e em que consiste o chamado “ajuste estrutural” incentivado por organismos como o Banco Mundial?

Lá se vão 35 anos. Os programas de ajuste estrutural começaram em 1980, a partir de uma modalidade de empréstimo do Banco Mundial de novo tipo, os chamados empréstimos de ajuste estrutural. Eram – e continuam sendo – operações baseadas em políticas, e não em projetos. Ou seja, os governos dos Estados “clientes” acordam com o Banco o cumprimento de uma série de prescrições na política econômica e/ou em políticas setoriais. Hoje, as áreas de incidência do Banco vão desde infraestrutura e energia, política econômica, educação, saúde, habitação, administração pública, desenvolvimento rural e urbano, até meio ambiente e reconstrução nacional pós-conflito.

Nos anos de 1980, os programas de ajuste repetiam, em linhas gerais, a mesma agenda monetarista aplicada pelo FMI desde os anos sessenta. No âmbito das políticas macroeconômicas, tratava-se de: liberalizar o comércio, alinhar os preços ao mercado internacional e baixar tarifas de proteção ao mercado interno; desvalorizar a moeda; fomentar a atração de investimento externo; promover a especialização produtiva e expandir as exportações, sobretudo primárias. Isso é importante lembrar. No contexto da crise da dívida externa dos países latino-americanos (que durou de 1982 até 1989, em alguns casos até os primeiros anos da década de 1990), era fundamental para os credores externos garantir o pagamento do serviço da dívida em dia. Como? Induzindo ajustes internos às economias voltados para a produção para bens exportáveis, sobretudo primários (minerais e agrícolas), por meio da redução e do redirecionamento do gasto público. Depois de décadas de fomento à industrialização (1930-80), os países latino-americanos voltavam a ser assombrados com o discurso das “vantagens comparativas” e da “vocação agrícola” das suas economias.

Além disso, no âmbito das políticas sociais e da administração estatal, o ajuste tinha como meta central a redução do déficit público – para pagar os credores externos e combater a inflação – mediante o corte de gastos com pessoal e custeio da máquina administrativa, a redução drástica ou mesmo a eliminação de subsídios ao consumo popular, a redução do custo per capita dos programas e a reorientação da política social para saúde e educação primárias e a focalização do gasto em grupos em extrema pobreza.

De lá para cá, a agenda de ajuste foi se alargando gradativamente e hoje incide sobre todas aquelas áreas de atuação do Banco. É importante lembrar duas coisas: em primeiro lugar, o Banco Mundial comumente atua em parceria com o FMI; em segundo lugar, as condicionalidades (ou prescrições, como costumo dizer) do Banco e do FMI variam em escopo e abrangência de acordo com a situação econômica e política do país em questão. Isso quer dizer, por exemplo, que economias em crise têm menos margem de manobra e capacidade de barganha com essas instituições. Em situações assim, o elemento de “coerção” tende a se sobressair.

Por outro lado, é um erro comum à maioria dos críticos de esquerda ver na atuação dessas organizações uma mera imposição externa. Na verdade, a atuação do Banco historicamente se deu — e ainda se dá — em meio a uma malha cada vez mais larga e densa de relações, que envolve agentes nacionais e internacionais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais, que apóiam, adaptam, negociam e veiculam as ideias e prescrições políticas da instituição. Em diversos casos, frações políticas internas se utilizaram das condicionalidades do Banco para disputarem poder frente a outras frações e/ou realizarem reformas impopulares – inclusive com mais dureza do que o próprio Banco. O que quero dizer é que a efetividade da agenda política do Banco depende de apoio dentro das coalizões de governo dos Estados clientes, bem como da sua penetração e difusão na sociedade civil desses países. Trata-se do elemento de “consenso” ou “consentimento” que estrutura o modus operandi dessa instituição. 

Ao longo da história e das atualizações de concepção e projetos feitas pelo Banco Mundial, em que momentos a política ou o “choque” de austeridade esteve mais ou menos presente entre as suas orientações/exigências? E no caso do FMI? O Consenso de Washington é um dos marcos principais dessa política de austeridade?

O Consenso de Washington foi um símbolo desse processo mais largo de neoliberalização da economia internacional. Elaborado em 1989 – mesmo ano da queda do muro de Berlim –, constituiu-se num conjunto de dez medidas de política econômica que os países da América Latina e de outras regiões deveriam seguir. Tratou-se de um receituário que expressava a convergência entre a economia neoclássica, a política externa do governo dos EUA e os interesses financeiros simbolizados por Wall Street. O Consenso de Washington logo se converteu num paradigma político transnacional, centrado na liberalização e na privatização das economias nacionais, e vigorou durante uma década.

No final dos anos 1990, o Banco começou a pregar o Pós-Consenso Washington, como se fosse uma ruptura com o Consenso de Washington e o “fundamentalismo de mercado”. Porém, afirmar que a ação do Estado é importante para os processos de desenvolvimento não é novidade alguma e também não diz muito sobre o que se pretende fazer em termos de desenvolvimento. O “grau de intervenção” do Estado na economia não é um indicador suficiente para demarcar as diferenças entre esquerda e direita, mas sim o que se faz, como e para quem em matéria de desenvolvimento. Ou seja, quais interesses e objetivos são priorizados e favorecidos e quais são secundarizados ou negligenciados. Em geral, há uma correlação entre instrumentos de políticas manejados por agências do Estado e objetivos políticos. 

Ainda sobre o Pós-Consenso de Washington, trata-se de um prolongamento e uma atualização do Consenso de Washington, e não da sua superação. Esse receituário contém cinco elementos importantes. O primeiro é o “combate à pobreza extrema”, a partir de programas focalizados de diversos tipos (inclusive transferência de renda condicionada, hoje em moda). O segundo é a “participação social” em projetos e programas voltados para preservação ambiental e “combate à pobreza”, sobretudo via ONGs, as quais se organizam a partir de parâmetros, práticas e de todo um vocabulário atrativos a financiamento público e privado. No limite, pode-se “participar” à vontade, desde que tal participação social não incida em áreas sensíveis para a acumulação capitalista, como a política econômica. O terceiro elemento do Pós-Consenso de Washington consiste a manutenção da liberalização econômica (comercial e financeira) como o melhor para as economias, admitindo-se aqui e ali alguma moderação transitória nesse processo, e a pregação de um arco amplo de reformas institucionais que incidem sobre o conjunto da administração pública, as políticas sociais e a organização dos poderes e do pacto federativo.  Por fim, o quarto elemento: reconhece-se que o Estado cumpre papel central nas “economias de mercado”, mas deixam-se de lado a quais interesses e atores sociais tal atuação serve e potencializa, e quais interesses e atores sociais ela enfraquece, controla ou marginaliza.

O título do livro recém-publicado pela EPSJV/Fiocruz, de sua autoria junto com Marcela Pronko, é “a demolição de direitos” e trata do Banco Mundial. Como especificamente a política de austeridade do BM e de outros organismos, como o FMI, se expressa na redução de direitos? Por quê?

“Demolição de direitos” porque a pauta política dessas instituições é centrada na liberalização econômica e na conversão de setores como a saúde e a educação em áreas abertas ao capital privado e organizadas como negócios privados transnacionais. Isso não tem nada a ver com garantir direitos aos cidadãos. Aliás, a palavra “direito” não figura no vocabulário da entidade, pois suscita imediatamente a dimensão política em torno da qual se defrontam visões distintas ou antagônicas de sociedade. Toda a atuação de instituições financeiras multilaterais, como o Banco Mundial, gira em torno da ideia de que são instituições técnicas e apolíticas, o que é falso. 

A atuação do Banco Mundial é muito associada à América Latina e entendida muitas vezes, inclusive, como expressão da política externa dos EUA. O Banco tem atuação relevante também na imposição de austeridade aos países europeus? A existência da União Europeia impactou a atuação do Banco?

O Banco é uma organização multilateral, internacional ou interestatal. Significa dizer que os seus “constituintes” são Estados nacionais. Porém, a abissal desigualdade de poder e riqueza entre os Estados se expressa, se condensa e condiciona a atuação do Banco em termos de distribuição de votos, visão sobre o que é e deve ser a economia internacional, o que é e deve ser a administração pública, etc. A voz dos EUA sempre foi a de maior peso político e econômico. É bom lembrar que o Banco só empresta para Estados (nos três níveis da federação). Todo cliente tem de ser membro do Banco (e, portanto, controla uma fração de votos), mas nem todo membro é cliente. Os países mais ricos não são elegíveis a empréstimos dessa instituição. Por isso, o Banco não tem autoridade para dizer o que a União Europeia, Japão e, sobretudo, os EUA devem ou não fazer. A sua atuação se volta para países pobres e em desenvolvimento, segundo a nomenclatura do próprio Banco.   

O Banco Mundial não integra a Troika, que tem sido o principal ator apontado na política de austeridade que recai sobre a Europa, notadamente a Grécia, neste momento. Quais as relações e as diferenças que se pode estabelecer entre a atuação do Banco Mundial e do Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia?

De modo geral, os pacotes de austeridade fiscal dessas instituições é muito semelhante. As nuances são mínimas. Porém, historicamente, o tratamento dispensado por elas aos países pobres e em desenvolvimento sempre foi mais duro do que o dispensado aos países da periferia europeia. Também é possível constatar que, historicamente, a conta das medidas de "ajuste" tem recaído sobre os ombros da massa da população (que vive de salário e depende dos serviços públicos), poupando ou protegendo a riqueza controlada pelos atores econômicos de maior gravitação (nacionais e estrangeiros).  

Independentemente da instituição que ‘comande’, é possível dizer que existe um receituário padrão da política de austeridade imposta internacionalmente? Há diferenças relevantes entre América Latina (Brasil, especialmente) e Europa, por exemplo?

A situação internacional hoje é diferente dos anos 1990 e 2000. O pós-Consenso de Washington continua a ser a referência central para o Banco Mundial e o FMI, mas não tem a força normativa que teve o Consenso de Washington. Parece estar emergindo um regime internacional menos estruturado por paradigmas políticos transnacionais. As pautas das instituições financeiras multilaterais continuam a ser seguidas, principalmente nos Estados mais pobres, mas os países emergentes (como o Brasil) dispõem de condições e meios para barganhar a sua diluição ou evitá-las. O BNDES tem tanto ou mais dinheiro do que o Banco Mundial. Nesse sentido, a paisagem política é mais plural do que no passado recente. Por outro lado, muito da atuação do Banco se faz de forma sutil, parcelada e permanente, incidindo nos três níveis da federação dos Estados clientes. Só com estudos empíricos é possível mensurá-la e avaliá-la com maior precisão.

Temos exemplos de países que recusaram a política de austeridade imposta por esses organismos? Como se deram essas experiências?

Não necessariamente os programas de ajuste estrutural ou pacotes de austeridade, como se queira chamá-los, são “impostos”, no sentido de irem contra os interesses de todas as frações da classe dominante nacional. Na verdade, isso é mais a exceção do que a regra. A pergunta é ampla. Por ora, eu salientaria o caso do Equador, que nos últimos anos deu as costas a essas instituições e está muito bem, obrigado.