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Entrevista: 
Edna Araújo

'Nós temos uma sociedade que tem o racismo como estruturante das desigualdades'

Nessa entrevista, Edna Araújo, docente da pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) na Bahia revela, em primeira mão, dados de pesquisa sobre o impacto da pandemia de covid-19 sobre as populações negras, resultados do trabalho de uma rede de pesquisa constituída no âmbito do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 19/11/2021 12h07 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Quais os dados mais consolidados sobre os impactos da Covid-19 sobre as populações negras?

Nós constituímos um grupo dentro do GT Racismo e Saúde da Abrasco, que reúne pesquisadores da USP, da Bahia e de Minas Gerais, uma rede de pesquisa que está conduzindo uma pesquisa grande, justamente para ver os impactos da Covid-19 sobre as populações vulnerabilizadas, mais precisamente na população negra. No ano passado tínhamos feito um artigo que incluía dados de Brasil e Estados Unidos chamando atenção para o problema da falta de divulgação dos dados desagregados por raça/cor pelo Ministério da Saúde nos boletins epidemiológicos. Então isso impedia de alguma forma essa análise. Então fizemos várias incidências junto ao Ministério da Saúde, mandamos ofícios e eles responderam para a Abrasco que iriam ter atenção para isso.

A gente está analisando quatro sistemas de informação em saúde: o Sistema de Informação de Mortalidade, o SIM, o Sivep-Gripe que é o Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe, onde são registrados os dados referentes também a hospitalização; também estamos analisando o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização, que é o SI-PNI. E também o e-SUS Notifica, que é onde seriam registradas as pessoas que são testadas.

E aí a gente começou por avaliar o registro do quesito raça cor nesses sistemas. E o que a gente observou é que somente o Sistema de Informação de Mortalidade teve um preenchimento considerado satisfatório. Os outros ou não apresentaram como é o caso do e-SUS Notifica, que apesar de conter o quesito raça/cor, não foi disponibilizado essa informação, e o SIVEP-Gripe que tem a informação sobre raça/cor, mas bastante subnotificada.

Então agora com os dados da Covid-19 nós estamos vendo que realmente o SIM tem uma informação, tem um preenchimento melhor. Mas isso quando a gente analisa para o Brasil como um todo. Quando a gente pega determinados estados a gente vê, por exemplo, que o Distrito Federal, que deveria dar o exemplo, é o que tem o pior registro em relação a variável raça/cor. Então o que temos de dados preliminares são relativos basicamente à mortalidade.

Nós estamos trabalhando com os dados de janeiro de 2020 a maio de 2021. Mas por que janeiro, se janeiro não tinha nem Covid ainda? Mas acontece que depois foi detectado que em janeiro de 2020 houve mortes que já eram por Covid. De janeiro de 2020 até maio de 2021 nós temos aí em torno de 420 mil mortes por Covid-19. Na realidade, 420 mil mortes é o que a gente tem como dados que a gente chama de dados válidos, ou seja, dados que tem lá o registro da raça/cor da pele. Mas o consórcio de imprensa informava para maio de 2021 em torno de 450 mil mortes.

Nós sabemos que desde que foi abolida a escravidão no Brasil não foram criadas políticas públicas para incentivar, para permitir a cidadania da população negra, na sua maioria

Então quando a gente faz a comparação das taxas de mortalidade, a gente tem que a população negra no geral – somando pretos e pardos - teve mais que o dobro de mortes em relação às pessoas brancas. As pessoas pretas tiveram uma taxa de mortalidade 105% maior. As pardas tiveram o dobro exatamente. As pessoas identificadas como amarelas tiveram em torno de taxas 86% mais altas em relação à população branca. E as pessoas indígenas tiveram taxa de mortalidade 91% mais altas do que as pessoas brancas. Alguns estudos que já mostravam que a população branca era mais hospitalizada, mas a população negra que morria mais, e esses dados estão confirmando isso.

E quando a gente pega por sexo, o que a gente vê é que entre as mulheres quem teve as piores taxas de mortalidade por covid-19 foram as mulheres negras, em seguida as pardas e depois as mulheres indígenas.

Quando a gente vê os homens, o que a gente observa para o Brasil o que a é realmente estar refletindo o que alguns estudos já mostravam em alguns estados como São Paulo, que têm esses dados há mais tempo, é que são os homens pretos e pardos que morrem mais de covid-19 na população como um todo.


Quais os fatores que determinam esse quadro?

Esse é o reflexo da desigualdade social no nosso país. É por isso que a gente faz as análises não somente por raça, mas também por sexo, quando tem o dado registrado a gente inclui outras variáveis, como a renda, justamente porque a partir dessa análise, incluindo todas essas variáveis, é que a gente vai poder fazer uma comparação mais ampliada e observar mais as desigualdades. Nós estamos no Novembro Negro, que é o mês de luta dos movimentos negros, que reflete a luta que os movimentos negros vêm ao longo de séculos fazendo contra o racismo. Nós temos uma sociedade que tem o racismo como estruturante das desigualdades. Então a população negra tem dificuldade de acesso à saúde, à educação, políticas sociais que de cinco anos para cá tem sido contingenciado recursos financeiros pelo poder público federal. Com a pandemia, ficou mais ainda desvelada essa desigualdade. Há 133 anos houve abolição da escravatura no Brasil, que foi o último país das Américas a abolir a escravidão. E nesses 133 anos ainda não existem políticas que realmente funcionem, que sejam efetivas para garantir direitos à população negra. Pelo contrário, cada vez mais são tiradas as possibilidades de a população negra ter mobilidade social. Então é com muita luta que nós temos algumas políticas de reparação para a população negra, como é o caso das cotas nas universidades, nos cursos de graduação, de pós-graduação e serviços públicos, com muita luta e a todo momento essa conquista tem sido ameaçada de ser retirada.

Se não fosse o SUS poderia ter sido ainda mais catastrófico do que foi

Então nós já sabíamos que antes da pandemia chegar o que os próprios institutos de pesquisa oficiais mostram, que é a pior situação em termos de moradia, em termos de acesso a emprego, acesso à educação, acesso a alimentação. Quem é que está mais em situação de insegurança alimentar nesse país? É a população negra. Com o advento da Covid foi preciso cadastrar àquelas pessoas no CadÚnico [cadastro federal para pessoas de baixa renda acessarem programas de transferência de renda] e aí a gente foi descobrir que a desigualdade era muito pior do que a gente pensava. Muitos brasileiros, na sua maioria negras e negros, não tinham nem sequer CPF. Então são essas pessoas que vivem em condição de vulnerabilidade nessa sociedade, em que até se admite que existem desigualdades sociais que prejudicam a população negra, mas que não admite que sejam implementadas políticas públicas com vista a corrigir isso.

Nós sabemos que desde que foi abolida a escravidão no Brasil não foram criadas políticas públicas para incentivar, para permitir a cidadania da população negra, na sua maioria. Pelo contrário, foram criadas leis que impediam que a população negra tivesse acesso à escola, à terra e tudo isso se reflete no que a gente vê nos bolsões de miséria, nos bolsões de pessoas morando na periferia sem nenhuma presença do Estado. E com a  pandemia, quem sofreu mais foi a população negra, que estava naqueles serviços considerados essenciais, mal pagos, que não puderam parar, que expõem mais essa população. E por isso a gente está vendo esses resultados.


Há dados sobre essa desigualdade no que diz respeito ao número de contaminações por covid-19?

Não, esse resultado que eu estou passando para você já diz para a gente que por mais que a população tenha sido infectada, quem teve o pior resultado, ou seja, o resultado morte em maior escala foi a população negra. Nós estamos trabalhando em outros dados, que eu não posso compartilhar porque ainda estão sob análise. Continuamos trabalhando nos dados em relação, por exemplo, a quem teve acesso a UTI, quem foi que teve que fazer procedimento invasivo, como ser entubado. Mas nós já sabemos, por exemplo, que as mulheres que morreram por Covid-19 no período de gestação, de parto e de puerpério foram predominantemente mulheres negras.

Nós também temos divulgado notas técnicas que falam sobre a invisibilidade dos dados da COVID-19 por raça/cor e também a negligência no registro desses dados. Nós lançamos há algumas semanas um ebook reunindo 13 notas técnicas que nós do GT Racismo e Saúde publicamos do ano passado para cá. Elas dão um panorama sobre a questão da violência, da saúde mental, das populações quilombolas, da vacinação, da população negra idosa. Cada artigo é sobre um tópico em que a gente faz a denúncia da situação da população, das populações em situação de vulnerabilidade, que são em sua grande maioria negras.

Agora, infelizmente, nesse contexto político negacionista, que nega as evidências científicas, onde não foi feito um planejamento para proteger as pessoas, principalmente àquelas com mais dificuldade para se protegerem de uma pandemia, o que a gente viu é que o Brasil foi um dos países do mundo que menos testou a população. Então teve muita gente que morreu e que até hoje ainda não se sabe o diagnóstico dessa pessoa que morreu por Covid. Teve muita gente que morreu em casa, porque não teve nem condição de ter acesso a um hospital. E não foi pior porque nós temos um Sistema Único de Saúde que, por mais que tentem precarizar, acabar com ele, ainda foi a salvação da população brasileira. Porque se não fosse o SUS poderia ter sido ainda mais catastrófico do que foi.

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