As principais notícias sobre facções criminosas referem-se a Rio de Janeiro e, sem segundo lugar, São Paulo, com o crescimento do PCC, o Primeiro Comando da Capital, embora dados mostrem o aumento da presença desses grupos em capitais do nordeste. No Brasil, o crime organizado é um problema nacional ou é territorializado, regionalizado?
Em primeiro lugar, sim, é um problema nacional. O Ministério da Justiça, inclusive, tem um levantamento das facções em todo o país. Elas são mais de 100 e têm uma estruturação muito diferenciada: embora seja um problema nacional, os arranjos locais, estaduais e regionais são diversos. No entanto, dessas 140 facções, apenas duas têm uma estruturação nacional, com penetração em praticamente todos os estados brasileiros: o PCC e o Comando Vermelho. Esse é um fenômeno mais recente porque o PCC se consolidou em São Paulo e monopolizou o mercado ilegal a partir do início dos anos 2000, mas nesses últimos 25 anos, ele aumentou a capacidade de coordenação de grupos que passam a integrar a organização em outros estados. E o Comando Vermelho, da mesma forma, no caso do Rio de Janeiro. Há disputas muito mais evidentes com outros grupos [criminosos], mas o Comando Vermelho vai se fortalecendo ao longo do tempo, especialmente nessa última década, e vai fazendo alianças locais numa estrutura de funcionamento que é diferente do PCC. O PCC tem uma estrutura verticalizada, piramidal, com um comando bem definido, enquanto o Comando Vermelho é muito mais fragmentado, funciona naquilo que os pesquisadores têm chamado de franquias, os grupos vão se conectando, mas mantendo sua autonomia. Vão estabelecendo parcerias para o fornecimento da droga, de armamento e, com isso, passando a incorporar essa rede. O formato do Comando Vermelho é em rede. O grande problema hoje é que esses grupos aumentaram muito a sua penetração nacional, se articulando com grupos locais. Aumentaram sua rentabilidade, que não depende mais do varejo da droga, tem uma diversificação muito grande da coordenação desses mercados ilegais e do fluxo da cocaína do Brasil para outros continentes, que passou a ser gerenciado por essas duas facções. No caso do Rio de Janeiro, especificamente, nós temos um problema que realmente é muito específico, que é o domínio armado de territórios. Isso, de fato, não acontece em outros lugares, em pouquíssimos locais há situações em que a polícia não pode entrar ou vai ser recebida à bala, [em outros estados] os grupos têm uma atuação mais contida, no sentido de que não há esse controle territorial como há no Rio de Janeiro.
Então, o crime organizado ter domínio armado do território não é realidade em outros locais do país?
Exatamente. E isso é o que acaba [levando a] essa resposta do Estado que se repete ao longo do tempo, de incursões, operações policiais com alta letalidade e pouquíssimo resultado. Nesse caso especificamente [da operação realizada em 28/10 nos complexos da Penha e Alemão, RJ], havia 60 mandados de prisão e nenhum deles foi cumprido, a letalidade foi gigantesca, talvez a maior da história, e o retorno disso do ponto de vista de uma política de segurança pública é pífio. Ou seja, não é um caminho sustentável de modificação desse cenário.
Existem estudos que apontem por que no Rio de Janeiro há essa particularidade do domínio armado do território pelo crime organizado?
Essa é uma questão que alguns pesquisadores no Rio de Janeiro têm trabalhado. Tem a Carolina Grillo e tem o pessoal da [Universidade] Federal Fluminense também trabalhando sobre essas questões. Mas me parece que tem dois aspectos. Um primeiro aspecto é mais histórico, de como se deu a estruturação desses grupos, não só do Comando Vermelho, mas das outras facções também, no caso do Rio de Janeiro. Tem a questão das milícias que vão se somar a esse contexto de uma dominação armada que busca obter ganhos ilícitos da população local, a associação de tudo isso com o sistema político e com a própria polícia, que já vem desde os anos 1970 com o jogo do bicho, ou seja, as ilegalidades vão sendo de alguma forma gerenciadas ou produzindo algum tipo de ganho para setores da polícia. E, mais recentemente, nós tivemos a experiência das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], uma tentativa de retomada desses territórios, mas que acabou não tendo continuidade nem sustentação, e acabou se retornando a uma situação anterior, inclusive até talvez agravada por todo esse contexto de disputas entre grupos rivais. Isso, de fato, é uma característica específica do Rio de Janeiro por motivos históricos e por motivos talvez geográficos, justamente porque há no Rio esses bolsões de favelas que acabam propiciando a presença desses grupos, o que é evidentemente viabilizado pela ausência do Estado.
Você mencionou também que o tráfico de drogas não é mais o único negócio e meio de sustentação do crime organizado no Brasil. Que outros negócios são esses? E, nesse caso, também há diferenças em relação ao Rio de Janeiro?
O que se sabe a respeito do Comando Vermelho é que ele é hoje a principal organização que coordena o garimpo ilegal na Amazônia. Junto com isso, tem a extração ilegal de madeira. E é evidente que quando se fala em Amazônia, estamos falando também do corredor de passagem da droga que vem da região dos Andes e chega aos portos do litoral para a exportação para a Europa e até para outros continentes. O Fórum Brasileiro [de Segurança Pública] inclusive publicou um relatório, no mês de abril de 2025, mostrando que o tráfico de drogas já não é realmente o que mais produz rentabilidade para essas organizações, talvez não chegue a 30% do ganho que elas têm. Também há a questão do comércio de armamento, há uma migração de crimes urbanos violentos, como roubo e furto, para o estelionato virtual. E essas centrais onde esses estelionatos estão sendo praticados também estão conectadas com esses grupos criminosos. Eles têm capacidade de articular uma rede de ilegalidades que produzem rentabilidade e, junto com isso, a viabilização de caminhos de lavagem desse dinheiro para que, inclusive, ele acabe, de alguma maneira, retornando à economia formal. Isso hoje realmente gira quantias gigantescas, tornando o varejo da droga uma questão de menor dimensão em termos de importância.
Talvez o que tenha de específico no Rio de Janeiro é que o Comando Vermelho é uma organização que tem capacidade e estratégia de tomada de território de outros grupos, inclusive das milícias. E o que se sabe é que quando o Comando Vermelho avança para os territórios de milícia, mantém o mesmo esquema de rentabilidade das milícias, ou seja, os ganhos ilegais com a questão urbana, com aluguéis, com taxas que são cobradas por serviços e tudo mais. Então, eles também estão se rentabilizando a partir dessas estratégias criadas não pelas facções, mas pelas milícias.
No crime organizado, sobretudo concentrado nessas duas facções que são as principais no Brasil, qual é o espaço do morro, das favelas e periferias, e qual é o espaço do asfalto e das pessoas que não moram nesses territórios? Porque é difícil imaginar um negócio tão grande, com relações internacionais, que se limita aos criminosos que estão nas favelas e periferias... Há uma coordenação ou uma dimensão que está fora dos espaços de pobreza e dos espaços armados?
No caso do PCC, isso é bem evidente. O PCC não tem uma estrutura que dependa de dominação de território. Na verdade, tudo passa por uma estrutura de poder e de gerenciamento desses mercados ilegais, que inclusive chegam até a Faria Lima, como foi demonstrado na Operação Carbono Oculto, em que fintechs, que são uma espécie de bancos virtuais, justamente pela falta de uma política de maior controle sobre os recursos que chegam até elas, eram utilizadas justamente para essa lavagem de dinheiro. Portanto, as organizações desse sistema ou do mercado financeiro não tinham o menor interesse de que houvesse alguma ação no sentido de aumentar o controle e coibir negócios que pudessem ter origem ilícita.
No caso do Rio de Janeiro, boa parte das lideranças dessas facções, é importante que se diga, estão presas – o que demonstra, inclusive, a fragilidade da execução penal no Brasil. Para o pequeno varejista [da droga] não muda muito a sua situação: ele passa um tempo preso, depois retorna, volta a praticar as mesmas atividades e quando sai para o cumprimento da pena, é substituído rapidamente, mas as lideranças, por mais que sejam colocadas nos presídios de segurança máxima federais, continuam coordenando esses negócios ilícitos. Isso é realmente uma grande questão a ser enfrentada: quais seriam os mecanismos necessários para que, na execução penal, se conseguisse cortar esse fluxo de comunicação entre os líderes e a organização. Mas, para além disso, uma outra coisa que emergiu, de uma forma muito clara, mas que já se sabia, é que em relação ao Comando Vermelho e a sua expansão nacional, o Complexo do Alemão acabou funcionando como uma espécie de santuário para a proteção dessas lideranças, inclusive de outros estados. O Comando Vermelho começou a trazer essas lideranças, que ele foi cooptando na Bahia, em Minas Gerais, em estados do Nordeste, de maneira geral, para que no complexo eles tivessem a proteção e continuassem coordenando os negócios a partir dali. Então, claro, provavelmente há lideranças ou, pelo menos, pessoas que se beneficiam desses mercados ilegais que não estão na favela, que não estão nesses locais, mas a liderança desses grupos armados que fazem esse trabalho do varejo e a atuação armada de proteção e vigilância está realmente localizada. E, não por acaso, entre os 117 mortos no Alemão, boa parte deles eram pessoas de outros estados que estavam ali, justamente, protegendo as suas lideranças.
Você falou da dificuldade ou ineficácia da execução penal no Brasil. Mas o fato de essas lideranças, mesmo presas, continuarem coordenando o crime, não é uma evidência das articulações do crime organizado com o Estado?
Por um lado, sim. Com o volume de recursos que esses grupos estão administrando, é absolutamente viável que se pense que parte dele vem sendo utilizada para a corrupção de agentes públicos nas diferentes esferas de poder. E isso envolve tanto o policial que atua na ponta, quanto o policial penal que administra a execução da pena, e inclusive, evidentemente também, passa pela questão de currais eleitorais, com financiamento de campanha. Hoje [06/11] saiu um artigo meu junto com o Sérgio Adora no boletim do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em que a gente levanta um conceito de ‘narco-Estado difuso’. Não podemos falar que o Brasil é um narco-Estado, evidentemente: o Estado brasileiro mantém uma autonomia, inclusive uma capacidade de enfrentamento desses grupos, no entanto, há setores do Estado, tanto ligados à segurança e à justiça penal, quanto de parlamentares e até chefes do Poder Executivo local, que estão cooptados. E isso tem que ser levado em consideração quando se pensa em uma política de médio e longo prazos com eficácia – inclusive, é o que tem sido discutido agora no Rio de Janeiro, a partir da ida do Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal: que a Polícia Federal passe a atuar de uma forma mais direta, justamente nessa dimensão que é a da corrupção policial. Ou seja, há a constatação de que não se tem como enfrentar o problema desses grupos sem enfrentar o problema da cooptação de setores da polícia por parte deles. Essa é uma dimensão fundamental de qualquer política que seja feita nessa área.
De qualquer forma, acho que outra questão importante nesse ponto da execução penal é uma diferença entre o PCC e o Comando Vermelho. O PCC tem lideranças mais antigas e com muito tempo de cumprimento da pena, que continuam fazendo esse papel de lideranças dentro da prisão. No Comando Vermelho é um pouco diferente, justamente por essa estrutura mais em rede: rapidamente as lideranças são substituídas. Muitas delas acabaram sendo mortas e não conseguiram manter esse mesmo capital de controle da facção a partir do momento em que passaram a ser presas. Por isso mesmo, para o Comando Vermelho, me parece que é muito importante essa estrutura de proteção que foi montada no complexo do Alemão e que viabilizou, inclusive, a fuga daquele que seria o principal líder que estava no alvo dessa operação da polícia.
O governo federal já tinha submetido ao Congresso, meses antes dessa operação que acaba de acontecer, uma Proposta de Emenda Constitucional (nº 18/25), conhecida como PEC da Segurança Púbica. É preciso mudar a Constituição para melhorar a Segurança Pública no Brasil? E qual a sua avaliação sobre a proposta?
Em primeiro lugar, eu acho que, para que se discuta isso, é importante reconhecer que o Brasil tem um problema sério em matéria de Segurança Pública, que não foi enfrentado, e muito menos resolvido, pelos diferentes governos que se sucederam no âmbito federal da Constituição de 1988 ou da abertura democrática para cá. Diante disso, as crises se sucedem e essas respostas espetaculares, com grande apelo popular para uma população que está cansada de ser achacada e extorquida, acabam sendo uma moeda eleitoral muito forte e dão motivo, inclusive, para que essas operações se repitam. Diante disso, me parece que o governo federal, ao propor a PEC, ou seja, a constitucionalização dessa articulação entre União, Estados e Municípios na Constituição, que já está [prevista] na legislação infraconstitucional desde 2018, pretendeu retomar um protagonismo na área da Segurança Pública, colocando essa integração de esforços como um tema central que seria muito mais viável em termos de governança a partir do momento que haja essa mudança na Constituição. E isso deu certo. O debate que vem acontecendo este ano, desde que o ministro [da Justiça Ricardo] Lewandowski lançou a proposta da PEC, colocou na agenda uma iniciativa que é da União, que é a do governo federal, frente a esses governadores, especialmente da direita, que não apresentam nada de novo a não ser a truculência da polícia. Me parece que aí surgiu a ideia de um caminho mais racional, de melhor gerenciamento e coordenação de esforços, mas evidentemente que isso não se faz ou não se resume a uma mudança constitucional, envolve também mecanismos de governança que sejam de fato eficazes e que dependem justamente dessa colaboração federativa, dessa adesão dos governadores, da atuação da Polícia Federal como órgão de coordenação desses esforços. Então, evidentemente que isso ainda vai demandar uma série de iniciativas e esforços para colocar essa PEC em prática, caso ela realmente seja aprovada.
Essa PEC ajudaria a enfrentar o crime organizado no Brasil e a responder também à particularidade do Rio de Janeiro, que tem esse domínio territorial armado?
A PEC não é voltada para o crime organizado, ela é focada na governança da segurança pública, ou seja, na articulação de esforços de União, estados e municípios para lidar com toda sorte de criminalidade. O foco nas organizações criminosas – tanto nas facções quanto nas milícias e em toda essa estrutura que vai para muito além do domínio de território, envolve essa circulação de mercados ilegais, capitais ilícitos, etc. – está naquilo que foi encaminhado na semana passada ao Congresso, que é o pacote Antifacções. Ali é que a gente tem os elementos mais específicos para esse propósito, de focar nessas estruturas e melhorar do ponto de vista institucional os mecanismos investigativos, até com infiltração policial, criação de empresas de fachada que possam, de alguma maneira, se relacionar com essas estruturas de capital ilícito. Isso tudo está previsto nessa proposta [enviada pelo governo federal ao Congresso na] semana passada e, além disso, há também medidas que visam tanto o aumento de penas para determinadas modalidades criminais típicas das facções, quanto também de endurecimento da execução penal, tentando justamente enfrentar esse problema das lideranças que continuam atuando dentro do sistema prisional.
Sim, o PL Antifacção foca também no endurecimento de pena. Mas eu queria perguntar se esse é um problema real. É por falta de pena que a gente vê, por exemplo, as lideranças do crime organizado continuarem a coordenar as ações de dentro dos presídios?
De fato, eu acho que tu tocaste num ponto-chave, ou seja: aumentar pena é solução para alguma coisa? Historicamente, além das operações espetaculares em favelas, uma outra coisa que é muito comum no sistema político brasileiro é a demanda punitiva que leva ao aumento de penas. Então, tu tens toda razão, isso não vai resolver o problema se não houver uma política penitenciária mais adequada, se não houver realmente um trabalho de investimento no sistema prisional, um trabalho, inclusive, de repensar a política criminal para delitos de menor gravidade, que poderiam ser tratados por penas alternativas, por monitoração eletrônica, e realmente focar, pelo menos do ponto de vista desses presídios de maior segurança, na tentativa do isolamento dessas lideranças. Aumentar penas de forma abusiva acaba dificultando isso, porque superlota prisões. Esse foi um dos efeitos da lei dos crimes hediondos lá na década de 1990, que foi a responsável naquele período pelo aumento da população prisional e, portanto, do aumento da capacidade de arregimentação das facções que surgiram no sistema prisional, tanto o PCC quanto o Comando Vermelho. Então, essa ideia de que aumentar pena possa trazer alguma vantagem, de fato, é ilusória.
Os ajustes são necessários. Talvez a questão da prisão preventiva possa ser pensada com critérios mais rígidos para determinadas modalidades criminais, mas de qualquer maneira isso é apenas um detalhe que precisa ser muito bem ajustado dentro de um âmbito muito mais amplo de iniciativas gerenciais que envolvem, por exemplo, em situações como a do Complexo do Alemão, a possibilidade de retomar a concepção das UPPs, da presença do Estado e, com ele, de serviços públicos, de melhoria das condições de emprego, renda, de acompanhamento familiar e tudo mais, sem as quais, evidentemente, o problema vai continuar acontecendo. É o que se chama de enxugar gelo, e talvez [gere] até com condições carcerárias mais propícias ao crescimento desses grupos.
Quando aconteceu a operação policial nos complexos da Penha e do Alemão na semana passada, o ministro da economia Fernando Haddad, por exemplo, fez uma fala defendendo que a estratégia principal deveria ser asfixiar financeiramente o crime organizado. Essa dimensão também é contemplada no PL das Facções, que o governo federal submeteu ao Congresso. Eu queria que você comentasse isso, analisando também se essas estratégias dão conta das particularidades do Rio. Existem estudos que mostram caminhos mais eficazes de se combater o crime organizado?
Desde que a operação foi deflagrada e todo o seu impacto aconteceu, tanto do ponto de vista da letalidade quanto do ponto de vista do impacto na opinião pública, com todas as pesquisas [de opinião] que vieram desde então, abriu-se uma grande disputa política. Por um lado, isso recolocou o governador Cláudio Castro com o campo da direita novamente em cena e de uma forma mais incisiva, depois de todas as questões que envolveram a condenação [dessa direita] pela tentativa de golpe de Estado e tudo mais. Então, claramente, isso foi e continua sendo utilizado politicamente. E a reação do governo federal, num primeiro momento, foi no sentido de afirmar que não tinha nenhum problema em oferecer apoio e auxílio ao Rio de Janeiro e às políticas de segurança locais, mas também houve, já desde um primeiro momento, essa ideia afirmada, entre outros, pelo ministro Haddad, de que há caminhos mais inteligentes, que não teriam esse grau de letalidade, inclusive de policiais. [Caminhos] que seriam bem mais eficazes, como houve o exemplo da operação em São Paulo, que realmente atingiu uma grande quantia financeira do PCC, da lavagem de dinheiro, do sistema financeiro e tudo mais. Me parece que esse argumento, de que há meios mais eficazes de alcançar resultados para descapitalizar essas organizações, é realmente forte. Mas me parece também que o Rio de Janeiro é um caso à parte, que precisa ser pensado também em termos de retomada de territórios pelo Estado, para que as pessoas possam ter assegurados os seus direitos constitucionais de ir e vir, de não serem achacadas, não serem extorquidas. Isso é um direito que as pessoas têm e que não está sendo respeitado, e isso não é aceitável. E como se faz isso? Bem, por isso eu dei o exemplo das UPPs. Quando elas foram implantadas 15 anos atrás, houve toda uma preparação e isso acabou acontecendo de forma bastante adequada. Ela durou durante três, quatro anos, e caíram as taxas de homicídio, melhorou a circulação e a segurança das pessoas na região, até que houve uma perda de energia, por uma série de motivos, entre os quais evidentemente o desvio de recursos e até a falta de verba, tanto do ponto de vista federal quanto estadual, para a implementação de outras medidas que fossem além da presença da polícia. Eu diria que [o mais importante] nesse momento para a elaboração e implementação de uma política séria, de médio e longo prazo, que realmente traga os resultados necessários, é sair desse debate em que o que está em jogo é o interesse político de diferentes grupos, à esquerda ou à direita, e se possa ter realmente uma colaboração, a construção de um caminho que unifique a intervenção da União e do estado, que é de fato um grande desafio. Estamos na véspera de ano eleitoral, a operação demonstrou que teve realmente um potencial de mudança de um cenário eleitoral, o que inclusive traz o receio de que ela possa voltar a acontecer, de que possa acontecer também em outros estados... Mas, nesses quase dez dias que já se passaram, me parece que aos poucos a gente está conseguindo sair de um primeiro momento mais impressionista, em que se gerou, inclusive, aquela onda de apoio à operação, e se está conseguindo de alguma forma fazer essa disputa política, com a participação de pesquisadores e até mesmo de gestores e de pessoas ligadas à polícia que percebem que o caminho não é aquele, que é preciso realmente alguma coisa muito mais elaborada, com maior integração, maior cuidado, para que as coisas aconteçam sem esse grau de letalidade e a baixa eficácia que uma operação como essa acaba produzindo.
O deputado Danilo Forte (União-CE) já tinha apresentado ao Congresso um Projeto de Lei que equipara as facções do crime organizado a organizações terroristas. E agora, diante do debate provocado pela recente operação, ele propõe apensar o projeto Antifacção do governo ao dele, juntando, portanto, os temas. Qual a sua avaliação sobre isso? Quais seriam as consequências, positivas ou negativas, de se considerar as facções como organizações terroristas no Brasil?
O Brasil tem uma legislação que tipifica o terrorismo desde 2014 – inclusive foi uma exigência para a realização da Olimpíada no Rio de Janeiro, que o Brasil fizesse essa tipificação. Isso foi feito e se deixou claro naquela legislação que o terrorismo é um crime que somente pode ser tipificado quando há motivação política, ou seja, quando o foco é a derrubada do Estado, quando envolve questões que têm como alvo a administração pública, a ordem política e coisas do tipo. Seja qual for, portanto, a ação, é preciso que haja essa motivação. Inclusive, na época, havia uma preocupação de que essa tipificação pudesse atuar sobre movimentos sociais, o Movimento Sem Terra, movimentos urbanos, e por isso a lei diz expressamente que esses movimentos não podem ser caracterizados como terroristas.
Esse debate foi atualizado nos últimos anos, e neste ano mais especificamente, porque é uma política do governo [Donald] Trump, ou seja, tem um conteúdo geopolítico, na medida em que, caracterizando o narcotráfico como terrorismo, isso dá ao governo dos Estados Unidos uma espécie de autorização para utilizar as Forças Armadas e, com isso, retirar o problema do âmbito do crime e do processo penal e colocar no âmbito de uma situação de guerra e de abate. É isso que tem sido feito com barcos venezuelanos e até colombianos: não se pergunta quem está ali, se é traficante, se não é, não há investigação, não há apuração, simplesmente se utiliza a Força Armada para o bombardeio dessas embarcações. Ora, nesse contexto, se o Brasil enquadra como terroristas essas organizações ligadas ao narcotráfico – que, é bom que se diga, não têm nenhum interesse na derrubada do sistema político ou coisas do gênero, pelo contrário, estão vivendo dentro do sistema –, primeiro, isso é um desvirtuamento do terrorismo enquanto tipo penal, segundo, abre essa possibilidade de uma intervenção norte-americana em território brasileiro. Na medida em que se caracterize como terrorismo, os norte-americanos se sentem legitimados, especialmente nessa gestão, para uma intervenção externa, qualquer que seja o local, invadindo a soberania nacional, mas justificando isso em nome do combate ao terrorismo. Em terceiro lugar, há algo que foi dito inclusive pelo [Lincoln] Gakiya, procurador de São Paulo que tem se notabilizado pela atuação no combate ao crime organizado: isso vai causar uma grande confusão no sistema judicial. Porque, fazendo isso, todas as questões envolvendo o narcotráfico que estão tramitando na justiça estadual seriam remetidas para a justiça federal, o que vai levar à anulação de provas, à perda de todos os processos que vieram andando até aqui. Isso seria algo muito contraproducente para os objetivos que se pretende, que podem perfeitamente ser alcançados com essa proposta do governo federal de endurecimento de algumas penas para determinados tipos penais ligados a organizações criminosas. Na verdade, por trás dessa proposta, o que tem é essa tentativa de um alinhamento com o governo Trump, que tem caracterizado a extrema direita no Brasil e em outros lugares do mundo, mas muito pouca efetividade, pelo contrário. Não há de fato uma estratégia mais consistente por trás disso para que realmente se consiga ampliar a capacidade do Estado para lidar com essas organizações.
Nesse mesmo contexto, foi criada também agora uma CPI, Comisso Parlamentar de Inquérito, do crime organizado, que vai ser presidida pelo deputado Fabiano Contarato, que é do PT. O que se pode esperar dessa CPI?
Num momento como esse, tem todo o lado negativo de todas as mortes que aconteceram e de toda essa comoção pública, que num primeiro momento acaba favorecendo o discurso da extrema direita, mas eu acredito que, num segundo momento, uma situação de crise como essa abre aquilo que a gente chama em políticas públicas de uma ‘janela de oportunidade’, ou seja, uma possibilidade de que haja uma convergência dentro do sistema político para que se adotem medidas que possam efetivamente trazer resultados a médio e longo prazo. Esse é o debate que está colocado.
Houve uma vitória do governo [federal] quando conseguiu eleger o Fabiano Contarato como presidente dessa comissão, porque o outro candidato era o General Mourão, mais vinculado à direita, embora não seja um bolsonarista, inclusive houve rompimento dele com o Bolsonaro durante o governo. Mas, de qualquer maneira, me parece que, tendo o Contarato no comando e já com a pauta que foi estabelecida de ouvir 11 governadores e algumas outras figuras, a ideia é que essa CPI possa ser o caminho para que essas mudanças na legislação aconteçam no sentido de dar ferramentas de uma melhor coordenação da União, estados e municípios, assim como de uma melhor capacidade de controle desses grupos [para que], uma vez que sejam criminalizados, haja investigação e as consequências penais cabíveis. Na verdade, entre as coisas que têm vindo à tona, além dessa necessidade de um melhor controle do ambiente carcerário, há a questão da investigação criminal, por exemplo. A Plataforma Justa publicou há pouco tempo um levantamento mostrando que praticamente todo o orçamento público no Rio de Janeiro para a segurança foi colocado nas estruturas policiais de policiamento ostensivo e praticamente nada foi colocado em perícia. Isso é uma das coisas que faz com que a polícia possa atuar de forma abusiva, letal, e isso não é apurado, não é investigado, não é responsabilizado, justamente porque, sem perícia, não há os meios para que essa responsabilização aconteça.
Então, se a CPI conseguir fazer um trabalho sério, não entrar na onda da pirotecnia, ouvir os governadores – porque todos têm muito a dizer, todos têm problemas que envolvem a presença desses grupos criminosos e sabem que eles têm uma capacidade hoje de coordenação muito grande –, me parece que ela pode ser uma ferramenta útil para que o tema permaneça na pauta durante um período e, a partir disso, se consiga elaborar caminhos mais racionais de enfrentamento.
Por fim, eu queria pedir uma análise, uma avaliação geral sobre o que foi essa operação policial no Rio de Janeiro na semana passada, que resultou na morte de mais de 120 pessoas.
O presidente Lula, depois de uma semana ou mais, acabou se manifestando, inclusive na véspera da COP [30], e para um público do âmbito mais internacional, [dizendo] que a operação foi uma matança. Eu acho que foi importante essa caracterização e foi importante que ele, como presidente da República, assumisse esse adjetivo como adequado para tratar daquilo que aconteceu, porque, de fato, foi uma operação de altíssima letalidade e com muito baixa eficácia do ponto de vista daquilo que era o seu objetivo, que era dar andamento a mandados de prisão de 60 pessoas ligadas ao Comando Vermelho e que supostamente estariam no complexo do Alemão e da Penha. Do ponto de vista do que era o objetivo, ele não foi alcançado, do ponto de vista da preservação da vida dos policiais também não, porque além dos quatro mortos, houve vários policiais feridos também naquele contexto. E do ponto de vista do Comando Vermelho, o alvo da operação, não há nenhuma evidência de que tenha havido qualquer tipo de prejuízo de maior envergadura, a não ser de soldados do tráfico que rapidamente podem ser substituídos, inclusive porque aqueles que eram alvos dos mandados de prisão acabaram não sendo presos e muito menos mortos. Essa receita não é nova, ela já foi utilizada outras vezes e não dá resultados. Ela traz um conforto para a opinião pública de forma momentânea, especialmente para pessoas que vivem esse cotidiano violento, extorsivo, mas não é de fato um caminho para que se consiga realmente enfrentar o problema que envolve, como eu disse, investigação criminal, recolhimento de armas, o corte desses fluxos financeiros em torno dos mercados ilegais e toda uma série de medidas que seriam muito mais eficazes e menos letais em termos de vidas humanas.