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Entrevista: 
Antônio Almerico Lima

‘O programa é positivo, mas insuficiente’

Na última semana de novembro o programa federal Pé de Meia, que distribui incentivos financeiros a estudantes de baixa renda do ensino médio na rede pública, completou um ano. Apresentado inicialmente por uma Medida Provisória de 27 de novembro de 2023, o Pé de Meia virou lei (nº 14.818/24) em janeiro deste ano, tendo como objetivo reduzir as taxas de evasão escolar nessa etapa de ensino. Nessa entrevista, Antônio Almerico Lima, professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e ex-Superintendente de Educação Profissional da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, analisa os possíveis impactos do programa sobre os índices de evasão na educação profissional pública e discute os avanços e limites das políticas voltadas à assistência estudantil nesse segmento.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 28/11/2024 13h25 - Atualizado em 03/12/2024 14h00

Que análise faz do programa Pé de Meia? Qual o seu potencial de impactar os números da evasão escolar na educação profissional?

Não podemos analisar o Pé de Meia sem localizá-lo em um grande debate que existe há bastante tempo sobre a evasão, tanto do ensino médio quanto da educação profissional técnica de nível médio, na Rede Federal e nas redes estaduais. É uma discussão sobre assistência estudantil, já que apenas o auxílio financeiro não é o suficiente para garantir essa queda sustentável da evasão. Particularmente, eu diria que há uma relação muito forte entre renda, entre ambiente de desenvolvimento, de crescimento socioeconômico, com a questão da evasão. Se nós pegarmos os dados da PNAD, por exemplo, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios [do IBGE], nós vamos ver que no período de crise, o número de estudantes do ensino médio da educação profissional que apenas trabalhavam diminui e aparece a figura do que trabalha e estuda, que já existia, mas que é ampliado pela crise econômica, pelo desemprego, pelo ambiente econômico desfavorável. Então as pessoas que estudam e trabalham aumentam, as que só trabalham também aumentam, como também aumentam aquelas que não trabalham e nem estudam, não por preguiça ou por descaso, mas simplesmente por falta de oportunidade.

Então, nesse sentido, a discussão tem que ser vista num contexto mais amplo e apenas uma ação, por mais meritória que seja, não vai resolver o problema. Eu considero que o programa é positivo, mas insuficiente. É uma primeira incursão do governo federal nessa situação tão complicada que é a evasão do ensino médio. Mas é insuficiente, tanto do ponto de vista da garantia da permanência por questões socioeconômicas, como também de uma outra dimensão que não tem sido atacada, que é a questão da discussão do próprio sentido do ensino médio para esses jovens. Se os jovens não percebem um sentido no ensino médio, eles abandonam.

Essa é a discussão que vem há algumas décadas no Brasil. Qual é o sentido do ensino médio? É a etapa terminal da educação básica, que faz a transição entre o mundo da vida e o mundo do trabalho. É a etapa que prepara para um estudante para o ensino superior. São várias perspectivas que precisam ser debatidas e discutidas porque exatamente é essa falta de sentido que também leva muitos jovens a abandonar. A primeira causa é a questão socioeconômica, a pressão por trabalhar, por ter renda para contribuir com suas famílias, mas também tem essa segunda questão, que é a falta do sentido do ensino médio em um termo mais geral.

Resumindo, o programa é positivo, porém, ele precisa ser acompanhado de outras medidas, de outras análises, de outras intervenções para garantir que a evasão ela seja algo controlável.

Qual é o cenário da evasão hoje na educação profissional?

É fácil a gente citar algumas estatísticas, mas eu considero que a dimensão quantitativa não nos ajuda a entender a complexidade da coisa. É muito difícil comparar uma instituição da Rede Federal com uma da rede estadual do Mato Grosso ou do Pará. Então, é preciso fazer uma desagregação dos dados para que a gente possa ter, de fato, uma percepção do que acontece, inclusive aprender com aqueles casos em que, surpreendentemente, a evasão é muito baixa.

Nas redes estaduais, a evasão na educação profissional está muito alta. Por exemplo, na educação profissional integrada ao ensino médio é muito mais baixa do que na concomitante ou subsequente. Outro elemento importante é quando você coloca a questão da Educação de Jovens e Adultos, a EJA, ela sem educação profissional tem um nível de evasão, com educação profissional tem um nível de evasão mais baixo. Mas a evasão ainda persiste.

Então, eu prefiro não falar em números, mas muito mais em entender cada um desses casos, modalidades, na dimensão da forma de articulação da educação profissional com o ensino médio e acrescentar as questões de caráter regional e o ciclo econômico. São elementos bastante significativos.
O programa é positivo, porém, ele precisa ser acompanhado de outras medidas, de outras análises, de outras intervenções para garantir que a evasão seja algo controlável. 

O senhor pode dar outros exemplos com relação à questão da evasão, os motivos que levam a essas disparidades?

Por exemplo, tem uma disparidade muito importante, que é a de gênero. Há uma pressão muito forte dos meninos, do sexo masculino, em relação à pressão no mercado de trabalho. Não que as meninas não sejam pressionadas, mas há uma pressão menor. Então você percebe claramente uma diferença, uma permanência maior de meninas na educação profissional do que de meninos. A renda também é outro elemento. Pessoas com rendas maiores evadem menos do que as menores. Como a renda está muito vinculada com a questão regional, você percebe também essa possibilidade. Mas aí por que eu destaco a questão regional? Porque algumas redes têm feito um esforço muito grande de regionalizar o currículo, de dar um sentido ao currículo. E de criar estratégias diferenciadas. Inclusive, o programa Pé de Meia aparece como programa federal agora, mas eles tinham algo semelhante na Bahia que é o Bolsa Presença, que aconteceu durante a pandemia e foi responsável pela manutenção de muitos desses jovens na escola, a partir de uma bolsa dada mensalmente. Se estima que essa bolsa contribuiu para tirar muitas pessoas da situação de fome.

Em relação à Rede Federal, ela já tem uma tradição de assistência estudantil muito maior do que as redes estaduais. A rede estadual tem menos opções de assistência estudantil. O Instituto Federal tem uma autonomia de oferecer determinados tipos de assistência estudantil de acordo com a sua realidade.

Eu tive uma experiência interessante que posso considerar como assistência estudantil, que foi muito positiva, na Bahia, cerca de oito anos atrás. Foi a questão do livro didático específico da aula técnica. Eles são extremamente caros, pelo menos para as pessoas que participam dos nossos cursos. Então, nós fizemos um trabalho de avaliação da produção existente, fizemos um chamamento para diversas editoras, criamos uma comissão que analisou os livros e eles foram adquiridos e distribuídos gratuitamente para os estudantes. Eram livros que iam ser usados durante todo o curso. Nós levamos na época ao governo federal como a ideia de um programa nacional do livro técnico, como algo a ser distribuído em todas as escolas do Brasil.

Esse seria um exemplo. É um conjunto de elementos. Claro que eu posso ter uma biblioteca muito bem organizada e os livros estarão lá à disposição. Eu posso ter esses conteúdos trabalhados em forma digital. E isso é oferecido ao estudante. Então tem várias maneiras de você suprir essa questão. O que eu falo é que ele precisa ter acesso a um conjunto de informações para que ele possa estudar sozinho. Então, isso também é um elemento que me parece importante de trabalhar.

Outra coisa pouco trabalhada é a formação dos docentes. Geralmente o docente é um licenciado ou um bacharel com uma área específica de formação pedagógica correspondente para exercer a função docente. Porém ele às vezes não tem uma formação específica para a EJA e pessoas de diversas faixas etárias. Então, por exemplo, se eu tenho uma turma em que a maioria de pessoas têm entre 15 e 18 anos, os professores acabam tendo o mesmo comportamento, a mesma atitude com turmas mais maduras, de cursos subsequentes por exemplo, que são pessoas que já terminaram o ensino médio.  E tem as pessoas da Educação de Jovens e Adultos que podem ter até mais de 70 anos. Como trabalhar com essas diversas clientelas, esses diversos públicos nas suas especificidades, nas suas demandas? 

Muitos professores não têm essa compreensão por falta de formação específica, de compreender o que o Paulo Freire ensinou, que o trabalhador não é uma tábula rasa, ele traz todo um conhecimento, um saber, que precisa ser trabalhado, transformado em conhecimento. Então acho que é outro elemento também que ajudaria a dar sentido ao ensino médio. 

E em relação ao ensino médio regular, que outras especificidades existem do combate à evasão na educação profissional?

Tem três questões que eu considero delicadas e seria interessante trabalhar: uma é a orientação profissional. É algo que nunca se desenvolveu claramente no Brasil. Era visto como vocacional, que é uma noção equivocada, ultrapassada, que a pessoa nasceria com a vocação. Uma vocação é construída socialmente. E as pessoas, muitas vezes, chegam no curso técnico vindas do ensino fundamental sem ter tido uma correlação com o ensino técnico. Foi um parente, foi a mãe, foi o pai, foi uma avó que o matriculou naquele curso. E, para piorar, em alguns estados tem poucos cursos. Ele acaba sendo matriculado no único curso disponível.

Geralmente de informática, administração. Então, compreender essa chegada do jovem é muito importante.  Nós temos defendido a introdução, nos últimos anos do ensino fundamental, da discussão sobre a educação profissional. Não se trata de profissionalizar, de dar curso técnico ou curso de qualificação. Mas introduzir o tema trabalho na matriz curricular desses estudos do 9º ano para garantir que haja uma reflexão já a partir daí do sentido do trabalho. Também garantir a visita desses adolescentes e pré-adolescentes às escolas técnicas, aos IFs e às escolas técnicas estaduais. Isso estimula a ter um debate geracional. Trazer um trabalhador já maduro, aposentado, ou um jovem trabalhador, para debater, para discutir os problemas, as questões relativas ao mundo do trabalho. Introduzir desde cedo essa discussão sobre o mundo do trabalho como um todo. Se eu faço isso, a decisão de que curso tomar já começa a ser fortalecida.

Uma segunda questão eu chamo de encantamento. É a recepção ao chegar na escola técnica, no IF. É preciso que haja um processo que talvez seja durante o primeiro e o segundo mês, que encante esse estudante do curso técnico em relação sua ocupação. Isso é muito importante. Ao ter isso ele permanece no curso porque se interessa por ele. E ele programa uma carreira para ele. Ele programa, por exemplo, a verticalização, que é fazer, ao acabar o curso técnico, um curso superior análogo. Tipo, fazer o curso técnico de enfermagem e o curso de enfermagem de nível superior.

Outro elemento é o diagnóstico das carências educacionais. E não é só da rede pública. Eu conheço casos da rede privada, de escolas de alta qualidade, mas que omitem determinados tipos de conhecimento, fazem aceleração de conhecimentos. Então, muitas vezes, esse jovem vem para a escola sem determinados conhecimentos que são exigidos no curso técnico. Então, o processo de diagnóstico, de nivelamento, de introdução a determinadas questões, é fundamental.

Uma última coisa é que existe na educação profissional algo que a meninada gosta muito, que é a aula prática. E, de certa forma, não gosta muito da aula teórica. Aumentar a parte prática não resolve o problema. Nós queremos formar técnicos, cidadãos, trabalhadores, pessoas que tenham amplo conhecimento. Por isso que se chama de formação integral. Então, a teoria é indissolúvel da prática, ela tem que estar vinculada, tem que entender por que ele vai apertar aquele parafuso, porque vai trocar aquele equipamento, porque vai aplicar aquele determinado medicamento numa pessoa. Então o fundamento científico em relação a ciência, tecnologia e sociedade são fundamentais na formação. Então eu preciso pela formação do docente compreender esse sentimento e tentar trabalhar uma aula teórica-prática. Sempre fazer essa vinculação. Assim você consegue dar um sentido à teoria e com isso também prende o interesse do estudante. No momento que o currículo estabelece essa relação de teoria e prática você quebra um pouco essa sensação de que o aluno está perdendo tempo, que é uma das coisas que podem levar a evasão. 

Uma preocupação em relação ao Pé de Meia foi a decisão de instituir um fundo de natureza privada para fazer o pagamento dos incentivos. Há um temor com a ideia de uma política social amparada por um fundo que, em última instância, visa ao lucro. Como o senhor vê essa crítica?

Eu acho que que infelizmente estamos vivendo uma situação extremamente complicada que é um Congresso Nacional de maioria conservadora que considera tudo que se investe no social como gasto e o que se investe nas empresas é considerado investimento. É uma inversão de valores. Isso tem levado muitas vezes o atual governo a de certa forma fazer algumas concessões para garantir que pelo menos o núcleo da ideia do programa social seja efetivado. Então, eu vejo com preocupação, não concordo com essa forma de solução do problema, mas como também não estou no governo não sei o grau de dificuldades que eles tiveram para fazer. Eu acho que já foi uma vitória ter conseguido implantar um programa tão amplo, ainda mais que agora vai abranger também a EJA. Eu acho que isso é algo bastante positivo. É claro que tem preocupação porque é mais um passo nessa financeirização da educação pública. Mas é, infelizmente, um contexto extremamente complicado. 

Em que medida as políticas que existem principalmente na Rede Federal e que foram construídas a partir da Política Nacional de Assistência Estudantil no começo dos anos 2000 poderiam servir de base para uma política que englobasse a educação profissional pública como um todo? 

Eu não posso me contentar somente com a Rede Federal bem atendida. Tem que pensar também numa política nacional que inclua as redes estaduais. Essa tem sido a luta, aliás, da coordenação do Fórum de Gestores Estaduais de Educação Profissional, porque sempre somos chamados [pelo MEC] a cumprir determinadas tarefas, mas nos documentos e tudo acabamos não sendo referidos. E temos dois terços da oferta de vagas e das matrículas de educação profissional técnica de nível médio do país. Então, é preciso olhar um pouco mais sobre as redes estaduais. Aí pode ser ou um programa nacional, um aumento de recursos para as redes estaduais. Tem várias maneiras que isso poderia ser trabalhado.

Eu acho que é um processo gradativo e sem dúvida nenhuma, acumulativo. Nós gostaríamos que fosse mais rápido, mas ele avança. Não tem dúvida nenhuma que tanto o programa nacional de transporte escolar como o de alimentação escolar, ainda mais vinculado com a agricultura familiar e a alimentação saudável, são um grande avanço. São políticas permanentes, que precisam ser defendidas. Mas eu acho que a questão da assistência é mais ampla.

O próprio Pé de Meia penetra nas redes estaduais, mas eu considero que a gente precisa dar um passo mais adiante e, baseado nessa experiência das redes federais, tentar ampliar ao máximo possível. Vamos ter esses limites da questão orçamentária, mas eu acho que é preciso continuar a luta para garantir uma equidade no acesso ao ensino no país.

A educação profissional foi objeto de políticas durante governos anteriores do PT, como por exemplo iniciativas como o Brasil Profissionalizado e o próprio Pronatec. Em que medida esses programas trouxeram essa dimensão da assistência estudantil, fomentaram essa questão?

O Brasil Profissionalizado resultou na expansão da educação profissional integrada ao ensino médio. Maior permanência na escola, maior necessidade de assistência estudantil. Então isso fomentou o debate, a discussão nas redes estaduais e na Rede Federal da necessidade de garantir a permanência. Então, de certa forma, a própria expansão gerou um bom problema que precisou ser discutido.

O Pronatec acaba sendo algo ambíguo, porque de certa forma ele desobrigou as redes estaduais de decidirem por si, na medida em que você podia fazer uma relação do Estado com uma entidade privada. Então ao invés de eu fortalecer minha rede eu preferi passar a responsabilidade para outra entidade, privada. Isso é complicado. Se a rede entender que ela economizou recursos e utilizou esses recursos economizados com a assistência estudantil, ótimo. Mas não foi o que aconteceu. Não é o que tem acontecido até aqui. Eu acho que o Pronatec não contribuiu muito nesse processo. Claro, o Pronatec tem uma bolsa específica. Então, nesse sentido, não é uma novidade ter uma bolsa na educação profissional, mas ela é específica do curso do Pronatec, não para os cursos regulares.

Se o fato da bolsa ter sido implantada estimulou que outros setores cobrassem também ter a bolsa então isso é positivo, mas eu tenho reservas.  Eu sempre insisti na questão da bolsa para os estudantes da rede integrada da educação profissional. Já que nós não tínhamos recursos para todos os estudantes, pelo menos para os da educação profissional integrada e para a EJA, que eram aqueles mais vulneráveis. Mesmo assim a gente não conseguiu implantar por conta da questão orçamentária.

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