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Entrevista: 
Eduardo Stotz

'Os neoliberais empreenderam o trabalho de eliminar a história para afirmar a democracia como um valor universal'

Cientista social com mestrado em história e doutorado em Saúde Pública. Essa formação ampla ajuda a definir um pesquisador que se dedica a ampliar também o campo da saúde. Eduardo Stotz, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), é editor associado da revista Interface – Comunicação, Saúde e Educação. É, sobretudo, um estudioso da participação popular, que se dedica a pensar a relação entre saúde, educação e cidadania. Nesta entrevista, Stotz dá história ao conceito de controle social, fala sobre as diferenças que a saúde impôs a esse termo e analisa os desdobramentos da implantação dessa idéia num contexto de neoliberalismo, na saúde e fora dela.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/02/2009 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Qual a origem do conceito de controle social no campo da saúde e além dele?

O controle social é um conceito sociológico que denota o condicionamento ou a limitação de indivíduos por grupos, comunidade ou a sociedade da qual fazem parte. É um mecanismo de coesão social que, nas sociedades de classes, assume a forma da dominação de uma ou mais classes por outra ou outras, por meio do poder estatal e sanções legalmente estabelecidas. Remonta ao início do século XX. Para mais esclarecimentos, veja-se o verbete 'controle social' do Dicionário de Ciências Sociais da FGV e do Dicionário de Política da UnB.

Na área da saúde o termo foi utilizado no sentido inverso, isto é, do controle do Estado pela sociedade; trata-se de um termo formulado no processo de mobilização e organização da IX Conferência Nacional de Saúde num momento em que os movimentos sociais e populares enfrentavam o governo neoliberal de Fernando Collor de Melo. Houve um receio de se participar da formulação da política de saúde, pois os representantes dos usuários temiam a manipulação governamental. Vale registrar porém o abandono dos termos ‘participação popular’ e ‘democratização do Estado’, característicos dos anos da mobilização contra a ditadura militar e de luta pelo SUS até a VIII Conferência de Saúde. Nesse sentido, pode-se dizer que o controle social expressa o momento da institucionalização da participação popular com essa restrição. Examinei alguns desses aspectos no artigo “A Educação Popular nos movimentos sociais da saúde:uma análise de experiências nas décadas de 1970 e 1980”   publicado pela revista Trabalho, Educação e Saúde em seu volume 3, número 1, que está disponível no link http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/

Tendo como referência o conceito para além da saúde e também as ‘ressignificações’ que o campo da saúde lhe deu, na sua avaliação, houve avanços significativos ou os objetivos do controle social no SUS ficaram no plano das intenções?

O controle social foi pensado no campo da formulação, implementação (gestão) e avaliação da política de saúde. Mas, na medida em que, a partir de 1991, o controle social passou a fazer parte da estratégia de implantação do SUS - lembre-se que a transferência de recursos do nível federal para o municipal somente ocorreria mediante a criação de conselhos de saúde -, num contexto político dominado pelo neoliberalismo, falar em controle social significou principalmente legitimar a gestão dos sistemas municipais de saúde. Ali onde a participação popular era fraca, onde não havia tradição de luta e de organização, a legitimação assumiu a forma de aprovação dos atos dos secretários de saúde, via de regra para liberação de recursos financeiros. Como se disse na época, os conselheiros de saúde tornaram-se 'carimbadores de despesas'.

Outro aspecto a considerar é a participação de movimentos sociais no Conselho Nacional de Saúde que propiciou a ampliação de programas de saúde específicos, a exemplo da atenção integral a saúde da mulher, da atenção aos atingidos pela hanseníase e do controle do HIV/AIDS, no âmbito dos sistemas municipais de saúde. Quando políticas específicas vinculam beneficiários, favorece-se a organização destes. Os conselhos de saúde foram um lócus dessa organização pelo Brasil afora. O problema é que os chamados ‘interesses gerais’ ficaram de fora, a exemplo da reivindicação por saneamento básico para melhorar a saúde da população.

Quais são os limites desse conceito pensando principalmente na saúde (mas também além), no contexto de uma sociedade de classes em que nem todos estão ‘empoderados’ para entrar na disputa por outros projetos de sociedade?

Esta é, a meu ver, a questão mais importante no debate em torno do controle social. Como já ressaltei, os limites estão relacionados aos sentidos conferidos ao conceito na história da luta pelo direito à saúde. Dar mais ênfase à gestão do que à formulação da política significa estar preso à correlação de forças vigente no SUS nos diferentes níveis de autoridade política. Passar à luta pela formulação implica dar maior importância para a preparação e organização das conferências de saúde, o que abre caminho para se tentar modificar essa correlação de forças com a entrada de novos atores e uma participação realmente popular.

Entender o controle social principalmente como formulação da política quer dizer entender as razões do processo de adoecimento e morte, entender o vínculo com as condições de vida e de trabalho, situar as respostas da sociedade a esse processo — além daquela oferecida pelo sistema de saúde oficial — e oferecer alternativas que vão se expressar nas propostas de planos municipais, estaduais e nacional de saúde.  É quando se pode ouvir a população em seus diversos segmentos e diferentes níveis organizativos que se pode reconhecer o saber dos pouco organizados, daqueles dedicados às práticas de saúde. Aí vão aparecer visões diferentes sobre o processo de adoecimento e cuidado e, obviamente, visões alternativas de organização da sociedade. 

O exemplo de Pintadas, um pequeno município do interior da Bahia, merece ser citado aqui para demonstrar a possibilidade dessa participação. A experiência aconteceu logo depois da IX Conferência Nacional de Saúde. Fiz uma referência especial a ela no artigo ‘Trajetória, limites e desafios do controle social do SUS’ publicado na revista Saúde em Debate  que pode ser acessado no link http://www.saudeemdebate.org.br/UserFiles_Padrao/File/RSD73-74.pdf

Quais as principais diferenças entre a implementação e a conceituação do controle social no período em que a Reforma Sanitária foi gestada, tendo como contexto a luta pela redemocratização do país e hoje, 20 anos depois de criação do SUS?

Em parte já respondi a esta questão. O longo período neoliberal dificultou a mobilização popular que, por seu turno, favoreceu a profissionalização da representação dos usuários na política pública (uma forma de burocratização do controle social) apesar do ativismo de muitos representantes que souberam manter acesa a chama da participação. Mas a avaliação é de que se trata de um processo cuja retomada é possível: creio este seja o sentido da manifestação de Antonio Sérgio Arouca quando defendeu, pouco antes de morrer, uma conferência mais popular e democrática do que a VIII Conferência Nacional de Saúde.

Existem "armadilhas" no conceito de controle social? E na sua tradução como política para a saúde no Brasil?

Não creio. Existe o problema dos diversos sentidos, alguns conflitantes, do conceito, ou seja, da polissemia. A ignorância da polissemia é a marca do pensamento ingênuo. Talvez uma ‘armadilha’ decorrente dessa ignorância seja uma defesa acrítica do conceito por ser entendido como um ‘princípio’ do SUS, defesa vigente sob a forma de um ‘susismo’ incapaz de analisar o sistema de saúde numa sociedade de classes com tradição autoritária tão arraigada como a do Brasil.

A questão do controle social é constantemente associada à conquista e ao exercício da cidadania. Como separar a cidadania do ‘faça você mesmo’ presente no discurso do capitalismo financeiro da cidadania com horizontes universalizantes?

Cidadania é um conceito que diz respeito à participação de indivíduos na esfera pública em sociedades capitalistas que adotaram a democracia representativa. Cidadão é aquele que vota e é votado, que tem direitos políticos. Na vertente socialdemocrata, e depois da II Guerra Mundial, com o avanço do Estado de Bem-estar social em alguns países, a cidadania assumiu a forma social. Uma nova onda de participação, que continua ainda hoje, aconteceu nos anos 1960 a partir das greves operárias e dos movimentos estudantil e feminista. Com isso, a redistribuição da riqueza e do poder foi posta em questão. O processo sofreu uma interrupção no começo dos anos 1980, com tentativas de destruir essas conquistas ou de limitá-las. A luta ideológica fez parte desse processo. Os neoliberais empreenderam o trabalho de eliminar a história para afirmar a democracia como um valor universal, entendida como democracia representativa e, portanto com o lugar exclusivo do eleitor e a delegação do poder pelo voto. O voto tornou-se um ‘cheque em branco’ nas mãos dos governantes. Por outro lado, começou-se a adjetivar a cidadania com termos neoliberais, a exemplo da ‘cidadania corporativa’ assumida pelas empresas com ‘responsabilidade social’. Examinei esses aspectos no artigo ‘Promoção da Saúde e Cultura Política: a reconstrução do consenso’, publicado na revista Saúde e Sociedade v.13, n.2, acessível no link  http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v13n2/02.pdf Agora com a recessão econômica mundial parece que o pêndulo voltou a se deslocar na direção do estado, então talvez venhamos a assistir a uma retomada da participação popular. Oxalá.

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