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Entrevista: 
Helena David

‘Persiste, nos níveis ministeriais, um ideário utilitarista de ofertar uma formação aligeirada que instrumentalize as ACS’

Enquanto esta entrevista estava sendo editada, os agentes comunitários de saúde (ACS) estavam se mobilizando para a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 22/11, que tem como objetivo garantir um piso nacional para categoria. Essa é uma das principais pautas de atuação desses trabalhadores, somada às reinvindicações de formação e plano de carreira. Todas são parte da busca por reconhecimento de uma categoria profissional que tem uma longa trajetória de atuação no Sistema Único de Saúde (SUS). Idealizados na década de 1980 como trabalhadores que atuam na comunidade, sendo moradores da comunidade, no Brasil esses trabalhadores surgiram primeiro no Nordeste para depois comporem uma iniciativa nacional, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que estaria completando 30 anos em 2021 se não tivesse sido de certa forma incorporado pela Estratégia Saúde da Família, atualmente em vigor. Apesar das influências internacionais, principalmente da Conferência de Alma-Ata, segundo a professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Helena David, o Brasil construiu um modelo único de trabalhador comunitário para a área da saúde. Nesta entrevista, ela fala também dos desafios da carreira desses trabalhadores, comenta as contradições que remetem à concepção de atenção básica que deu origem ao Saúde da Família e fala sobre o papel da categoria no combate à pandemia de Covid-19.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 07/12/2021 19h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Gostaria que você contasse um breve histórico sobre o PACS, o Programa de Agente Comunitário de Saúde, relacionando com a política de Atenção Básica.

Após a Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde, ocorrida na cidade do Cazaquistão de Alma-Ata, houve uma grande mobilização de todas as frentes governamentais, acadêmicas e da sociedade civil que já vinham participando de debates sobre o acesso ampliado à saúde para a população, em especial a dos países periféricos. Uma das propostas de Alma-Ata era a de desenvolver um conjunto de ações prioritárias nos territórios, mobilizando pessoas moradoras das comunidades com perfil de liderança e apoio social. No Brasil, as agentes de saúde, ou agentes comunitárias de saúde, foram sendo treinadas a partir de iniciativas das Pastorais da Igreja Católica e de iniciativas municipais, algumas articuladas a um apoio de setores acadêmicos. Como eram e são até hoje majoritariamente mulheres, irei sempre me referir às ACS nesta entrevista. No âmbito federal, houve uma mobilização para o desenho de ações voltadas para o enfrentamento das altas taxas de mortalidade infantil em áreas rurais dos estados do Nordeste, com destaque para a experiência pioneira do Ceará. Mas é preciso destacar a caminhada histórica: apesar de o país estar sob o regime militar, era possível desenvolver propostas de ampliação do acesso à saúde calcadas em valores de interiorização e descentralização, como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde no Nordeste (PIASS), iniciado em fins da década de 1970. Outras iniciativas brotaram e se ampliaram na primeira metade dos anos 1980, o que levou a uma convergência de definições quanto ao perfil das ACS e à ideia de estruturar sua atividade por meio de um Programa específico para normatizar e organizar essas trabalhadoras, levando à implantação do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS) em 1991, a partir do ano seguinte denominado Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Vale lembrar que a estrutura para Atenção Primária era, com algumas exceções, baseada na ideia dos centros de saúde, na maioria urbanos, e em ações de cunho campanhista e eventual para as áreas rurais e do interior.

"As ACS foram aumentando exponencialmente de número e os estudos mostram que as razões para isso são diversas, e incluem desde projetos para a melhoria da saúde da população mais pobre até aqueles que se misturavam com interesses político-eleitorais"

Durante esses 30 anos, quais foram as principais mudanças de atuação dessas profissionais? Como foi a transição do PACS para o PSF, Programa Saúde da Família, e depois para a ESF, Estratégia de Saúde da Família?

As ACS foram aumentando exponencialmente de número e os estudos mostram que as razões para isso são diversas, e incluem desde projetos para a melhoria da saúde da população mais pobre até aqueles que se misturavam com interesses político-eleitorais. A organização por meio de associações de ACS foi um passo natural, e as agentes, mais organizadas e também fortalecidas por iniciativas das universidades e centros de pesquisa, passaram a exigir uma formação mais consistente, salários melhores e estáveis. Ainda no início dos anos 1990, outras experiências de Atenção Primária internacionais influíram no desenho de novos projetos, aí já incluindo uma equipe com médicos e enfermeiros, como o Programa Médico de Família e o Programa de Saúde da Família (PSF), com forte inspiração na experiência cubana. Durante alguns anos, o PACS conviveu com o PSF, sendo diversos os arranjos organizativos – poderia haver apenas PSF, apenas PACS, ou os dois, num mesmo município.

As práticas cotidianas e o perfil de cada profissional aproximaram mais os enfermeiros das ACS, o que ainda ocorre até hoje – na maior parte dos municípios, são os enfermeiros os responsáveis pela supervisão e educação permanente dos ACS. Essa transição se deu pelo interesse em compor equipes completas e mais resolutivas, efetivando a descentralização das ações – sem, no entanto, se acompanhar de um apoio de infraestrutura para a oferta ampliada de ações de saúde, tais como laboratórios, exames e fluxos de referência para especialistas. Ainda assim, a década de 1990 assistiu à expansão do PSF e do PACS, em especial após a publicação da Norma Operacional Básica do SUS, em 1997, que normatizou formas de financiamento mais estáveis para essas ações, agora já denominadas de Atenção Básica. O PSF passa a se denominar Estratégia Saúde da Família na década de 2000, com a extinção do PACS, mas manutenção das ACS dentro das equipes – que também foram se modificando para incluir outros profissionais, como odontólogos. A indução financeira  e técnica por parte do Ministério da saúde para a implantação e fortalecimento da ESF foi mantida, ainda que com retrocessos e críticas, o que levou os municípios a estabelecerem a ESF como programa prioritário para sua Atenção Básica até recentemente.

O PSF tem origem em propostas do Banco Mundial. Pode resgatar um pouco esses antecedentes e refletir sobre as contradições desse processo? O que se manteve da focalização que era parte da proposta original e o que conseguiu ser superado?

A influência desses organismos é anterior ao SUS e tornou-se mais visível, no campo da saúde, a partir da década de 1970. Na década de 1990, o projeto de expansão das ações do SUS no Brasil teve sustentação financeira importante por meio dos Acordos de Empréstimo Internacionais, chancelados pelo Banco Mundial e seu subsidiário, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). São órgãos vinculados ao Fundo Monetário Internacional (FMI), cujas políticas defendem um modelo macroeconômico pautado. Esse órgão, por sua vez, vinculou a concessão dos empréstimos a determinadas metas de racionalização de custos que visavam cumprir uma agenda internacional de ajustes de caráter neoliberal junto aos países de capitalismo dependente, o que desembocou no conjunto de reformas de Estado que marcaram o governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil, com um alto custo social em termos de concentração de renda, perdas salariais e enfraquecimento das lutas dos trabalhadores. Nesses anos, é importante notar que há retração na influência da OMS [Organização Mundial de Saúde] e da OPAS [Organização Pan-Americana de Saúde] sobre o desenho dos sistemas de saúde. Ainda assim, houve resistência e amadurecimento das proposições em torno dos princípios do SUS, explicitando o campo de disputas em torno dos projetos para a Atenção Básica, dentre os quais a formação e o trabalho dos ACS.

É no mínimo instigante verificar que, em publicações como o Boletim ‘A Saúde no Brasil’, do Ministério da Saúde, de abril/junho de 1983, se pode ler um texto de autoria de Cesar Vieira afirmando que o debate para mudanças no modelo assistencial da Atenção Primária no Brasil deveria se dar não apenas no campo técnico-normativo, mas no político. E me parece que não estamos enfrentando essas questões no campo político na atualidade.

E em relação à carreira? Quais são as principais questões?

A primeira grande questão trazida pelas próprias ACS foi quanto à sua formação: os múltiplos projetos existentes no país na segunda metade dos anos 1980 possuíam formatos de treinamento, capacitação ou mesmo de formação articulada à ampliação da escolaridade, mas sem uma diretriz curricular de base. Esse foi um enfrentamento importante, capitaneado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, e em articulação com a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), que lograram a produção de Diretrizes Nacionais para a Formação de ACS por meio de um curso técnico de escolaridade média, a ser ofertado pelos municípios. Essa perspectiva teve muita resistência por parte dos gestores municipais, que até então investiam pouco ou nada na formação de ACS, limitando-se a processos seletivos simplificados e formas de contratação eventuais e precárias. Uma formação mais sólida surge, para as ACS, como perspectiva de melhorias salariais e uma posição mais legitimada no trabalho em equipe. São pontos que até hoje não foram resolvidos, e persiste, nos níveis ministeriais, um ideário utilitarista de ofertar uma formação aligeirada que instrumentalize as ACS apenas para seguir como uma trabalhadora auxiliar para a equipe, perdendo de vista o seu papel de mediadoras entre as comunidades e os serviços, de educadoras populares e de defensoras do SUS nos territórios.

Outra questão diz respeito às formas de contratação, superando os contratos temporários, eleitoreiros e precarizados. Alguns municípios desenvolveram arranjos organizativos que permitiram a realização de concurso público para ACS, incluindo-as nos seus quadros de servidores. É uma ideia que me parece interessante e que deve ser acompanhada quanto aos seus desdobramentos, em comparação com as formas precárias e instáveis que ainda persistem.

"O que muda, de modo mais marcante, nesses 30 anos é o fato de que hoje se olha a profissão e o trabalho das ACS como algo a ser valorizado, enquanto as primeiras iniciativas tinham um caráter de voluntariado e desdobramento de práticas comunitárias já existentes"

Qual é o perfil desse trabalhador? Durante esses 30 anos isso mudou?

Em função dessas disputas, da ampliação do acesso à informação e pela própria expansão da Atenção Básica no país, não se pode falar em um perfil único. As próprias organizações sindicais de ACS podem tender a uma defesa de proposições apenas em torno de seus interesses mais imediatos, replicando o modo de agir de um sindicalismo de resultados. Em outras localidades, no entanto, pode-se encontrar ACS que se organizam de forma diferente, que lutam pelo e com o SUS local para ampliar o acesso da população aos serviços. O que muda, de modo mais marcante, nesses 30 anos é o fato de que hoje se olha a profissão e o trabalho das ACS como algo a ser valorizado, enquanto as primeiras iniciativas tinham um caráter de voluntariado e desdobramento de práticas comunitárias já existentes.

O ACS é um ator importantíssimo na equipe de saúde da família, mas não está presente em todos os modelos de atenção básica. O modelo de Cuba, por exemplo, não conta com esse trabalhador. Como isso se dá em outros países?

Do ponto de vista da evolução profissional, penso que apenas o Brasil de fato estruturou um perfil profissional para as ACS e mantém a presença dessas mulheres atuando no SUS em todo o território nacional. Nesse sentido, o PACS e a presença dos ACS na ESF é brasileira e única. Conheci experiências no México, que são exclusivas de alguns estados, nos quais as ACS são voluntárias, atuando em prol de suas comunidades e também para obter acesso às ações de saúde.

Do jeito que estão organizados, os ACS são estratégicos, por exemplo, no combate à pandemia do novo coronavírus? Quais são seus pontos-chave de atuação?

Ao afirmar que as ACS são estratégicas para a saúde das comunidades, nos baseamos primeiramente no fato de serem comunitárias – ou seja, não são do serviço para a comunidade, mas o oposto. Sua atuação durante a pandemia representou a possibilidade de manutenção de uma ligação entre os serviços da Atenção Básica, que ficaram rapidamente desestruturados e em segundo plano em relação ao nível dos hospitais e emergências. O seu conhecimento do território e das famílias em condições de vulnerabilização também permitiu que as ACS se articulassem junto às suas Associações de Moradores, organizações de jovens, setores acadêmicos (quando existem) e secretarias municipais nas quais houve atenção maior para a Atenção Básica, atuando como grandes mobilizadoras para as ações de prevenção da Covid-19 e identificando as situações de empobrecimento, insegurança alimentar, aumento de violência doméstica e urbana, entre outros problemas que se somam à situação sanitária.

Por fim, como está o programa ‘Saúde com Agente’, que oferecerá formação técnica para ACS de todo o país? Essa formação que se desenha tem a ver com os princípios de reorganização da Atenção Básica que estavam previstos no PACS, no PSF e na ESF?

Não tenho me debruçado em detalhes sobre as propostas recentes de formação. Até onde fui informada, há uma vertente que propõe cursos exclusivamente na modalidade EaD para as ACS, o que considero um equívoco, já que uma formação consistente e coerente de ACS deve incluir espaços presenciais de ensino-aprendizagem, incluindo o território onde irão atuar. Porém, há que se considerar o conjunto de mudanças e desmontes das políticas públicas que se avizinham e que buscam enfraquecer, a meu ver, a dimensão coletiva do trabalho de saúde, em equipe, no território e com as ACS. Nesse sentido, as propostas deverão ser socializadas e apreciadas pelo conjunto de entidades profissionais e pelas trabalhadoras e trabalhadores de saúde para responder: essa proposta fortalece ou enfraquece o SUS de acesso universal e equânime que queremos construir? A resposta, que deve incluir também os porquês, encaminhará os pontos sobre os quais o debate técnico e político será doravante conduzido.