Gostaria que você contasse um breve histórico sobre o PACS, o Programa de Agente Comunitário de Saúde, relacionando com a política de Atenção Básica.
Após a Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde, ocorrida na cidade do Cazaquistão de Alma-Ata, houve uma grande mobilização de todas as frentes governamentais, acadêmicas e da sociedade civil que já vinham participando de debates sobre o acesso ampliado à saúde para a população, em especial a dos países periféricos. Uma das propostas de Alma-Ata era a de desenvolver um conjunto de ações prioritárias nos territórios, mobilizando pessoas moradoras das comunidades com perfil de liderança e apoio social. No Brasil, as agentes de saúde, ou agentes comunitárias de saúde, foram sendo treinadas a partir de iniciativas das Pastorais da Igreja Católica e de iniciativas municipais, algumas articuladas a um apoio de setores acadêmicos. Como eram e são até hoje majoritariamente mulheres, irei sempre me referir às ACS nesta entrevista. No âmbito federal, houve uma mobilização para o desenho de ações voltadas para o enfrentamento das altas taxas de mortalidade infantil em áreas rurais dos estados do Nordeste, com destaque para a experiência pioneira do Ceará. Mas é preciso destacar a caminhada histórica: apesar de o país estar sob o regime militar, era possível desenvolver propostas de ampliação do acesso à saúde calcadas em valores de interiorização e descentralização, como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde no Nordeste (PIASS), iniciado em fins da década de 1970. Outras iniciativas brotaram e se ampliaram na primeira metade dos anos 1980, o que levou a uma convergência de definições quanto ao perfil das ACS e à ideia de estruturar sua atividade por meio de um Programa específico para normatizar e organizar essas trabalhadoras, levando à implantação do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS) em 1991, a partir do ano seguinte denominado Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Vale lembrar que a estrutura para Atenção Primária era, com algumas exceções, baseada na ideia dos centros de saúde, na maioria urbanos, e em ações de cunho campanhista e eventual para as áreas rurais e do interior.
"As ACS foram aumentando exponencialmente de número e os estudos mostram que as razões para isso são diversas, e incluem desde projetos para a melhoria da saúde da população mais pobre até aqueles que se misturavam com interesses político-eleitorais"
Durante esses 30 anos, quais foram as principais mudanças de atuação dessas profissionais? Como foi a transição do PACS para o PSF, Programa Saúde da Família, e depois para a ESF, Estratégia de Saúde da Família?
As ACS foram aumentando exponencialmente de número e os estudos mostram que as razões para isso são diversas, e incluem desde projetos para a melhoria da saúde da população mais pobre até aqueles que se misturavam com interesses político-eleitorais. A organização por meio de associações de ACS foi um passo natural, e as agentes, mais organizadas e também fortalecidas por iniciativas das universidades e centros de pesquisa, passaram a exigir uma formação mais consistente, salários melhores e estáveis. Ainda no início dos anos 1990, outras experiências de Atenção Primária internacionais influíram no desenho de novos projetos, aí já incluindo uma equipe com médicos e enfermeiros, como o Programa Médico de Família e o Programa de Saúde da Família (PSF), com forte inspiração na experiência cubana. Durante alguns anos, o PACS conviveu com o PSF, sendo diversos os arranjos organizativos – poderia haver apenas PSF, apenas PACS, ou os dois, num mesmo município.
As práticas cotidianas e o perfil de cada profissional aproximaram mais os enfermeiros das ACS, o que ainda ocorre até hoje – na maior parte dos municípios, são os enfermeiros os responsáveis pela supervisão e educação permanente dos ACS. Essa transição se deu pelo interesse em compor equipes completas e mais resolutivas, efetivando a descentralização das ações – sem, no entanto, se acompanhar de um apoio de infraestrutura para a oferta ampliada de ações de saúde, tais como laboratórios, exames e fluxos de referência para especialistas. Ainda assim, a década de 1990 assistiu à expansão do PSF e do PACS, em especial após a publicação da Norma Operacional Básica do SUS, em 1997, que normatizou formas de financiamento mais estáveis para essas ações, agora já denominadas de Atenção Básica. O PSF passa a se denominar Estratégia Saúde da Família na década de 2000, com a extinção do PACS, mas manutenção das ACS dentro das equipes – que também foram se modificando para incluir outros profissionais, como odontólogos. A indução financeira e técnica por parte do Ministério da saúde para a implantação e fortalecimento da ESF foi mantida, ainda que com retrocessos e críticas, o que levou os municípios a estabelecerem a ESF como programa prioritário para sua Atenção Básica até recentemente.
O PSF tem origem em propostas do Banco Mundial. Pode resgatar um pouco esses antecedentes e refletir sobre as contradições desse processo? O que se manteve da focalização que era parte da proposta original e o que conseguiu ser superado?
A influência desses organismos é anterior ao SUS e tornou-se mais visível, no campo da saúde, a partir da década de 1970. Na década de 1990, o projeto de expansão das ações do SUS no Brasil teve sustentação financeira importante por meio dos Acordos de Empréstimo Internacionais, chancelados pelo Banco Mundial e seu subsidiário, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). São órgãos vinculados ao Fundo Monetário Internacional (FMI), cujas políticas defendem um modelo macroeconômico pautado. Esse órgão, por sua vez, vinculou a concessão dos empréstimos a determinadas metas de racionalização de custos que visavam cumprir uma agenda internacional de ajustes de caráter neoliberal junto aos países de capitalismo dependente, o que desembocou no conjunto de reformas de Estado que marcaram o governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil, com um alto custo social em termos de concentração de renda, perdas salariais e enfraquecimento das lutas dos trabalhadores. Nesses anos, é importante notar que há retração na influência da OMS [Organização Mundial de Saúde] e da OPAS [Organização Pan-Americana de Saúde] sobre o desenho dos sistemas de saúde. Ainda assim, houve resistência e amadurecimento das proposições em torno dos princípios do SUS, explicitando o campo de disputas em torno dos projetos para a Atenção Básica, dentre os quais a formação e o trabalho dos ACS.
É no mínimo instigante verificar que, em publicações como o Boletim ‘A Saúde no Brasil’, do Ministério da Saúde, de abril/junho de 1983, se pode ler um texto de autoria de Cesar Vieira afirmando que o debate para mudanças no modelo assistencial da Atenção Primária no Brasil deveria se dar não apenas no campo técnico-normativo, mas no político. E me parece que não estamos enfrentando essas questões no campo político na atualidade.
E em relação à carreira? Quais são as principais questões?
A primeira grande questão trazida pelas próprias ACS foi quanto à sua formação: os múltiplos projetos existentes no país na segunda metade dos anos 1980 possuíam formatos de treinamento, capacitação ou mesmo de formação articulada à ampliação da escolaridade, mas sem uma diretriz curricular de base. Esse foi um enfrentamento importante, capitaneado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, e em articulação com a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), que lograram a produção de Diretrizes Nacionais para a Formação de ACS por meio de um curso técnico de escolaridade média, a ser ofertado pelos municípios. Essa perspectiva teve muita resistência por parte dos gestores municipais, que até então investiam pouco ou nada na formação de ACS, limitando-se a processos seletivos simplificados e formas de contratação eventuais e precárias. Uma formação mais sólida surge, para as ACS, como perspectiva de melhorias salariais e uma posição mais legitimada no trabalho em equipe. São pontos que até hoje não foram resolvidos, e persiste, nos níveis ministeriais, um ideário utilitarista de ofertar uma formação aligeirada que instrumentalize as ACS apenas para seguir como uma trabalhadora auxiliar para a equipe, perdendo de vista o seu papel de mediadoras entre as comunidades e os serviços, de educadoras populares e de defensoras do SUS nos territórios.
Outra questão diz respeito às formas de contratação, superando os contratos temporários, eleitoreiros e precarizados. Alguns municípios desenvolveram arranjos organizativos que permitiram a realização de concurso público para ACS, incluindo-as nos seus quadros de servidores. É uma ideia que me parece interessante e que deve ser acompanhada quanto aos seus desdobramentos, em comparação com as formas precárias e instáveis que ainda persistem.
"O que muda, de modo mais marcante, nesses 30 anos é o fato de que hoje se olha a profissão e o trabalho das ACS como algo a ser valorizado, enquanto as primeiras iniciativas tinham um caráter de voluntariado e desdobramento de práticas comunitárias já existentes"
Qual é o perfil desse trabalhador? Durante esses 30 anos isso mudou?
Em função dessas disputas, da ampliação do acesso à informação e pela própria expansão da Atenção Básica no país, não se pode falar em um perfil único. As próprias organizações sindicais de ACS podem tender a uma defesa de proposições apenas em torno de seus interesses mais imediatos, replicando o modo de agir de um sindicalismo de resultados. Em outras localidades, no entanto, pode-se encontrar ACS que se organizam de forma diferente, que lutam pelo e com o SUS local para ampliar o acesso da população aos serviços. O que muda, de modo mais marcante, nesses 30 anos é o fato de que hoje se olha a profissão e o trabalho das ACS como algo a ser valorizado, enquanto as primeiras iniciativas tinham um caráter de voluntariado e desdobramento de práticas comunitárias já existentes.
O ACS é um ator importantíssimo na equipe de saúde da família, mas não está presente em todos os modelos de atenção básica. O modelo de Cuba, por exemplo, não conta com esse trabalhador. Como isso se dá em outros países?
Do ponto de vista da evolução profissional, penso que apenas o Brasil de fato estruturou um perfil profissional para as ACS e mantém a presença dessas mulheres atuando no SUS em todo o território nacional. Nesse sentido, o PACS e a presença dos ACS na ESF é brasileira e única. Conheci experiências no México, que são exclusivas de alguns estados, nos quais as ACS são voluntárias, atuando em prol de suas comunidades e também para obter acesso às ações de saúde.
Do jeito que estão organizados, os ACS são estratégicos, por exemplo, no combate à pandemia do novo coronavírus? Quais são seus pontos-chave de atuação?
Ao afirmar que as ACS são estratégicas para a saúde das comunidades, nos baseamos primeiramente no fato de serem comunitárias – ou seja, não são do serviço para a comunidade, mas o oposto. Sua atuação durante a pandemia representou a possibilidade de manutenção de uma ligação entre os serviços da Atenção Básica, que ficaram rapidamente desestruturados e em segundo plano em relação ao nível dos hospitais e emergências. O seu conhecimento do território e das famílias em condições de vulnerabilização também permitiu que as ACS se articulassem junto às suas Associações de Moradores, organizações de jovens, setores acadêmicos (quando existem) e secretarias municipais nas quais houve atenção maior para a Atenção Básica, atuando como grandes mobilizadoras para as ações de prevenção da Covid-19 e identificando as situações de empobrecimento, insegurança alimentar, aumento de violência doméstica e urbana, entre outros problemas que se somam à situação sanitária.
Por fim, como está o programa ‘Saúde com Agente’, que oferecerá formação técnica para ACS de todo o país? Essa formação que se desenha tem a ver com os princípios de reorganização da Atenção Básica que estavam previstos no PACS, no PSF e na ESF?
Não tenho me debruçado em detalhes sobre as propostas recentes de formação. Até onde fui informada, há uma vertente que propõe cursos exclusivamente na modalidade EaD para as ACS, o que considero um equívoco, já que uma formação consistente e coerente de ACS deve incluir espaços presenciais de ensino-aprendizagem, incluindo o território onde irão atuar. Porém, há que se considerar o conjunto de mudanças e desmontes das políticas públicas que se avizinham e que buscam enfraquecer, a meu ver, a dimensão coletiva do trabalho de saúde, em equipe, no território e com as ACS. Nesse sentido, as propostas deverão ser socializadas e apreciadas pelo conjunto de entidades profissionais e pelas trabalhadoras e trabalhadores de saúde para responder: essa proposta fortalece ou enfraquece o SUS de acesso universal e equânime que queremos construir? A resposta, que deve incluir também os porquês, encaminhará os pontos sobre os quais o debate técnico e político será doravante conduzido.