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Entrevista: 
Cristina Paniago

'Toda a luta pela emancipação humana só pode se dar contra o capital'

O setor saúde se prepara para participar da 15ª Conferência Nacional de Saúde, marcada para acontecer este ano, em que se completam 25 anos da aprovação da lei que regulamentou o controle social no SUS, a 8.142/90; no fim de 2014, por sua vez, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Educação, que buscou formas de colocar em prática o Plano Nacional de Educação, finalmente aprovado depois de quatro anos de tramitação no Congresso. É nesse contexto que a professora de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Cristina Paniago faz um balanço dessa forma de participação social no Estado. Para Cristina, o controle social não tem conseguido nem ao menos frear a supressão de direitos sociais conquistados anteriormente. Ela acredita que as formas tradicionais de participação política dos trabalhadores - incluindo o controle social, os sindicatos e movimentos sociais, entre outros - são inadequados para disputar espaço numa conjuntura marcada pela crise estrutural do capital, e defende que é preciso criar novas formas de organização dos trabalhadores que tenham como meta a construção de uma alternativa ao capitalismo, e não a busca de legitimação pelo Estado capitalista.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 30/01/2014 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Qual é o balanço que você faz do controle social na definição das políticas públicas desde a redemocratização?

Para fazer um balanço precisaria pontuar: quais foram os ganhos em termos de autonomia organizativa das massas populares ou dos trabalhadores? Deveríamos avaliar e contabilizar qual foi a acumulação de forças que nós tivemos para poder fazer os embates mais vigorosos com o capital. A defesa daqueles que ainda insistem na possibilidade, apesar dos percalços e dos fracassos, de alcançar algum êxito com a participação dentro dos meios institucionais do Estado através do controle social propõe  ocupar o Estado para expandir conquistas sociais, politizar o uso dos recursos públicos e da atuação na esfera pública e transformar a natureza do Estado. E o que vemos de resultado nesses 20 anos? De uma forma mais abrangente, olhando o período histórico e não períodos e locais específicos foi: cooptação, colaboração de classes, subordinação aos critérios impostos pelos espaços legais e impotência diante do agigantamento dos problemas sociais que temos enfrentado com a crise do capital. Apesar de todas as barreiras, restrições e impossibilidades, há a afirmação idealista de que devemos continuar tentando. Analisar só benefícios circunstanciais nos leva a perder a noção do que está em jogo: o aprofundamento dos males sociais, o desemprego crônico, a incidência de maior sacrifício para a classe trabalhadora para sustentar e tirar o capitalismo dos impasses que ele está vivendo para manter o crescimento da lucratividade. Sequer conseguimos conter o avanço do capitalismo na desvalorização da classe trabalhadora, dos salários, das condições de vida e por último, que é o nosso foco fundamental, das políticas públicas. Deveríamos colocar, nessa altura da história, uma posição bastante preocupante de insistirmos nesse meio quase que exclusivamente em muitos setores nos campos das políticas sociais sem criarmos formas alternativas diante da sua ineficiência no último período.

Em que medida essa ineficiência é fruto de uma desmobilização no sentido de disputar esses espaços e em que medida é fruto de um problema de cunho estrutural do controle social institucionalizado, na sua opinião?

A questão da eficiência ou não do controle social não é fundamentalmente da situação de mobilização da classe trabalhadora, porque se houve de fato uma mobilização como tem se anunciado do ano passado pra cá, de manifestação de massa, essas movimentações não vieram provocadas ou favorecidas pelo controle social; elas vieram porque sentiram efetivamente a degradação da condição de vida da classe trabalhadora. Analisar só a esfera institucional de participação é muito restritivo para ver o conjunto da luta de classes e as condições históricas nas quais ela tem se desenvolvido nos últimos tempos. Vivemos numa situação de crise estrutural do capitalismo. Isso é inegável. Num momento de ascendência do capitalismo, esses meios institucionais tiveram alguma condição de ser veículo tanto de reivindicação quanto de regulamentação e gestão em alguns aspectos das políticas sociais. Quando entramos na fase de crise, fomos perdendo aquilo que em momentos anteriores pudemos conquistar em termos de expansão de direitos, da abrangência e cobertura universal de alguns benefícios sociais, na medida em que a própria crise do capital passou a exigir do Estado maior colaboração inclusive do ponto de vista financeiro, complementando o próprio mercado de forma muito mais ativa do que já tinha feito no passado.

Em sua opinião as Jornadas de Junho deixaram alguma lição no que se refere às possibilidades de intervenção social no Estado?

Acho que as Jornadas de Junho são uma prova histórica do meu argumento. O capitalismo mudou no sentido de que teve que agravar ainda mais a exploração da classe trabalhadora. Para isso teve que retirar conquistas da classe trabalhadora que porventura, no momento anterior de ascensão, pôde reconhecer através da distribuição dos recursos, da legalização e regulamentação das políticas. E o que percebemos com as Jornadas de Junho é que não se esperou reconhecimento ou os canais oferecidos pelo Estado para essa discussão das necessidades reais da classe trabalhadora. Foram para a rua, e não porque as organizações sociais dos trabalhadores, seus movimentos sociais, sindicatos e partidos os levaram. Aquilo que investimos tanto como meio auxiliar para essa mobilização social não precisou comparecer para haver a reivindicação de massas. Então ao retornar essa movimentação social de massas – que tem uma série de problemas, insuficiências, mas é vigorosa, é autêntica, e aponta uma tendência que não é só do Brasil – temos que olhar mais para essas formas alternativas e tentar recuperar essa autenticidade, essa autonomia, que não se canaliza para dentro do Estado para poder se mostrar e colocar em pauta suas necessidades. O Estado muitas vezes, ao nos levar para dentro dele, nos limita no sentido de traduzir as reivindicações dentro do formato que ele previamente determina. E sem a força das ruas não temos sequer condições de avançar dentro do Estado. Com as forças das ruas não precisamos desses meios dentro do Estado. Essa é a contradição que precisamos estudar melhor para potencializar o que está por vir. Para que não percamos o bonde da história.

E quanto às formas alternativas de produção e distribuição de riqueza que existem atualmente, como a autogestão e a economia solidária, por exemplo: têm algo a acrescentar nesse debate, em sua opinião?

Eu posso estender boa parte da crítica que fiz ao controle social também a essas alternativas que tentam fazer alterações da forma de produzir riqueza em enclaves, dentro da própria ordem do capital, porque elas acabam sendo contaminadas pelo mercado. Ainda permanecem nessas organizações os mesmos critérios que constituem a forma de ser do capitalismo: o lucro, a mais-valia, a mercadoria, o valor de troca. Então não há condição de alterar a ordem social, que é abrangente, globalizada e totalitária através do pouco a pouco, de unidades isoladas que vão se juntando de uma forma que o capitalismo não consegue absorver. Ao contrário, se crescer ameaça sua própria lógica. E aí o combate será feroz, como tem sido. Autogestão só é possível numa outra sociedade, onde a autodeterminação seja possibilidade de uma sociedade igualitária, sem classes. Economia solidária é uma alternativa paliativa, desmobilizadora e que tenta conciliar com o mercado as necessidades de emancipação do trabalho. E não há possibilidade, dentro da lógica do mercado capitalista, de o trabalhador ter outro lugar que não seja produzir riqueza para concentrar riqueza. A economia solidária não questiona a propriedade privada: ela tenta transformá-la em um meio coletivo de propriedade privada. É uma confusão de conceitos, inclusive: ser proprietário dos meios não garante a emancipação daquele proprietário, porque ele continua proprietário para competir com outros coproprietários no mercado. Proprietários individuais competindo com proprietários coletivos: isso mantém a mesma ordem da lógica do capital. Não conseguiram produzir algo de novo porque é impossível dentro do capitalismo construir alternativa a ele.

Você pode citar exemplos de novas formas de organização que têm potencial para fazer essa crítica ao capitalismo?

Vivemos num momento da história que é absolutamente inusitado desde que há capitalismo. A crise estrutural impôs muitas modificações na luta de classes, das quais nós ainda não temos consciência o suficiente para, a partir do reconhecimento dessa nova conjuntura, construir novos meios. Há períodos na história em que não basta repetir o mesmo. E há um momento em que o próprio reconhecimento vai gerar novas intervenções, novas relações na luta de classes, e elas é que vão projetar os meios adequados. Não existe fórmula. Todas as formas que a classe trabalhadora tem utilizado até hoje – sindicatos, partidos, movimentos sociais, formas alternativas de autogestão, controle social, orçamento participativo – são inadequadas para nova conjuntura que estamos vivendo na crise estrutural. A classe trabalhadora soube criar, de acordo com a sua história anterior, os meios com os quais lutou contra as desigualdades sociais até a eclosão da crise estrutural. Estes meios já não servem efetivamente para os desafios atuais, como vimos recentemente nos explosivos conflitos sociais em todo o mundo, os quais prescindiram dos movimentos sociais, dos sindicatos e dos partidos pré-existentes ao demonstrarem a força do movimento de massas na pronta reação à crise política e econômica avassaladora, ainda que insuficientemente compreendida em toda sua extensão, gravidade e permanência. Por necessidade de garantir sua própria existência social, a classe trabalhadora passa a inventar novas formas de enfrentamento diante dos penosos danos sociais provocados pela crise estrutural do capital. Participação autônoma e experiência de luta independente tem sido um apelo crescente na luta de massas. Temos que estar atentos a isso e evitar impor os meios tradicionais de luta como os únicos canais de expressão e fortalecimento da luta da classe trabalhadora.  A organização de classe surge como resposta a uma luta que se impôs em situações históricas concretas, e sua eficácia deve ser comprovada pelo avanço da independência da classe trabalhadora e não pelo aumento de sua dependência às instâncias institucionais legitimadas pelo Estado capitalista.

Mas como é possível que as formas de organização dos trabalhadores que irão contribuir para a superação do capitalismo surjam com o capitalismo ainda em vigor? O que impede que aconteça com essas novas formas o que aconteceu com as tradicionais, que você citou anteriormente, e que também foram formas de organização e participação social dos trabalhadores criadas por eles no processo de resistência contra a exploração capitalista em determinadas conjunturas?

O fato de ainda não sabermos o que e como levar a luta nesta nova situação histórica de crise estrutural do capital não nos autoriza reproduzir o “mesmo”, como justificativa do ‘possibilismo politicista’.  Daríamos um grande passo adiante se admitíssemos que o que fazemos é insuficiente e nos afasta progressivamente da luta emancipatória dos trabalhadores. Há momentos na história em que é mais fácil ver o que não se deve repetir, ainda que não tenhamos a capacidade de gerar os meios necessários para intervir criativamente de imediato na luta de classes a favor dos interesses emancipatórios dos trabalhadores. A mudança radical entre a fase de ascendência do sistema do capital, na qual a luta por melhorias dentro do capitalismo pôde sustentar alguns ganhos defensivos para a classe trabalhadora e a ilusão de um avanço progressivo até sua emancipação da exploração do capital, como pregava o reformismo socialdemocrata, e a atual fase de crise estrutural provocou enormes alterações na luta de classes.  A capacidade do sistema do capital em garantir, como fez antes, a reprodução social universal, ainda que extremamente desigual, passa a ser enormemente comprometida, colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade. Toda a luta pela emancipação humana só pode se dar contra o capital, e agora com a crise estrutural do sistema deve-se visar não apenas à atenuação da exploração, mas a constituir-se uma alternativa social hegemônica a ele e não se colocar como objetivo reformá-lo. A crise estrutural exige uma inovadora ação política da luta de classes, com abrangência de massas. Sem uma crítica e uma autocrítica das experiências históricas de luta da classe trabalhadora dificilmente nos tornaremos capazes de superar o caráter reformista da luta democrática e da participação social que há décadas aguarda, através da luta institucional dentro e fora do Estado, por resultados positivos em direção à superação das desigualdades sociais e à consecução de uma organização autônoma da classe trabalhadora.

Como avalia a polarização em torno do decreto da presidente Dilma Rousseff para criação da Política Nacional de Participação Popular, que foi rejeitado na Câmara dos Deputados logo após as eleições depois de ser tachado de autoritário e “bolivariano”? E que prognóstico faz para essa área nos próximos quatro anos? 

Essas contradições não podem nos cegar. Não adianta olhar a política de forma casuística em alguns pontos em que aparentemente há interesse da classe trabalhadora dentro do Congresso. Esse combate encobre inclusive todas as medidas muito mais radicais e danosas para a classe trabalhadora que estão sendo e serão implementadas pelo governo e das quais  nós sequer tomamos conhecimento ou criamos meios para combater. Acho inócua essa discussão sobre um projeto que tem uma oposição conservadora dentro do Congresso, o que  poderia provocar uma tendência nossa de cerrar fileiras a combater no Congresso a defesa do projeto. Não estamos cerrando fileiras no fundamental. A defesa de um projeto de participação social em nada altera o que está sendo feito agora com o aumento do superávit primário, com a retirada de alguns direitos que estão em vista pelo governo, do seguro-desemprego, das pensões, do arrocho salarial que vai vir.