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Entrevista: 
Tarcísio Motta

'Uma corrida entre um fusquinha e uma ferrari tem o resultado praticamente antecipado, mas tentam jogar a culpa (e o mérito) no motorista!'

Tarcísio Motta, doutor em História na Universidade Federal Fluminense, professor do Colégio Pedro II e ex-diretor de imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE-RJ) explica nesta entrevista que o Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira (Ideb) 2011 , divulgado no mês de agosto, é preocupante, mas não só pelo resultado. De acordo com o professor, a forma mais adequada de avaliação não é quantitativa, como vem sendo realizada atualmente, mas sim uma que contemple o projeto político-pedagógico de cada escola, possibilitando o diagnóstico e os desejos da comunidade escolar.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 11/10/2012 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O último Ideb apontou baixo índice do ensino médio. A que se deve isso?

O ensino médio sofre hoje as consequências de décadas de descaso do poder público com educação. O Plano Nacional de Educação (PNE) da década passada já apontava a necessidade da ampliação de recursos, de políticas de formação inicial e continuada de professores e uma série de outras políticas que não foram implementadas e ocasionaram a crise que vivemos hoje no ensino médio. A expressiva ampliação do número de matrículas do ensino fundamental na década de 1990 criou uma demanda sobre o ensino médio que os governos estaduais não conseguiram atender com qualidade. As escolas noturnas se transformaram em verdadeiros depósitos de alunos, sem projeto pedagógico ou sem autonomia. O Ideb, desta forma, é apenas a constatação daquilo que professores e funcionários têm vivenciado nos últimos 20 anos.

O Ideb é uma forma adequada de avaliar o ensino médio? Como ele é realizado?

Em minha opinião, a criação de índices quantitativos para a educação é um engodo. O governo e os meios de comunicação criam a ilusão que o número/nota/índice é realmente o resultado da qualidade da educação naquela escola ou rede, sem levar em conta as condições materiais e concretas para a realização do processo pedagógico. Os índices e metas servem para comparação entre escolas e redes, como se estas estivessem necessariamente na mesma situação para oferecer os conteúdos aos alunos, criando um ambiente de culpabilização de alunos, professores, diretores e funcionários, sem que se avaliem concretamente as condições para a realização do processo pedagógico. É mais ou menos assim: uma corrida entre um fusquinha e uma ferrari tem o resultado praticamente antecipado, mas tentam jogar a culpa (e o mérito) no motorista!

É necessária uma avaliação diferente para as populações do campo e as da cidade, por exemplo? O ideb contempla estas particularidades?

O grande problema dos sistemas de avaliação em larga escala é justamente a impossibilidade de prever todas as especificidades que interferem no processo pedagógico. Considero, por isso, que os índices que têm como um dos seus componentes fundamentais provas padronizadas estão fadados a distorcer a realidade e comparar aspectos que são, em si mesmo, incomparáveis. Uma escola localizada em área pobre de uma pequena cidade do interior pode ter como resultado uma nota baixa, sem que isso signifique, necessariamente, baixa qualidade do ensino ofertado ali, já que as condições sob as quais o processo ocorreu são profundamente desfavoráveis. Nesse sentido, a diferenciação entre campo e cidade pode ser um passo positivo, mas ele é insuficiente. Do meu ponto de vista, avaliações em larga escala com objetivos comparativos e criadoras de rankings são incompatíveis.

Quais são os principais gargalos que o Ideb não consegue contemplar?

Como apontei anteriormente, o principal gargalo é a padronização daquilo que não deve ser padronizado, ou seja, o processo educativo. Outro problema é que os professores, diretores e até secretários de educação passarão a pensar as políticas públicas e as estratégias de sala de aula com o objetivo de ‘aumentar o ideb', como se isso correspondesse exatamente a melhorar a ‘qualidade da educação'. Isso significa, por exemplo, que governos tentarão cortar aqueles que estão prejudicando a nota: fechando turmas noturnas e implementando programas de aceleração de aprendizagem. Tudo para acelerar a passagem destes alunos que, potencialmente, tendem a puxar a nota para baixo. No lugar de garantir uma melhor educação para aqueles que mais precisam, o sistema de avaliação padronizada exclui aqueles que podem prejudicar o desempenho da nota.

O Ideb avalia as disciplinas de português e matemática. Isso é suficiente para analisar a qualidade do ensino?

Não, de forma alguma. Acredito numa educação integral que forma o cidadão nas suas múltiplas dimensões. A escolha destas disciplinas visa justamente à possibilidade de padronização e a comparação até mesmo internacional.

A forma de avaliação é quantitativa. Como, a partir de números, pode ser avaliada a educação?

Não pode. O processo de avaliação de cada escola e cada sistema deve ser protagonizado pelas comunidades escolares que, a partir de um projeto de escola desejada, deve gerar demandas aos poderes públicos e à administração da escola para chegar a esta escola desejada. O processo, portanto deve ser qualitativo, não quantitativo.

Você acha que existe alguma forma de avaliação válida? Como seria ela?

Como já indiquei, podemos elaborar um sistema de avaliação que parta do projeto político-pedagógico de cada escola, onde encontramos o diagnóstico e os desejos da comunidade escolar. A avaliação pode incluir algum mecanismo de verificação por parte das secretarias de educação, a partir de avaliações por amostragem que indiqueam os caminhos que a escola está trilhando. O fundamental é que essa avaliação seja transparente, pública e participativa, fazendo da escola um espaço de construção das propostas da própria comunidade. Ao mesmo tempo, é preciso ter um processo de avaliação do sistema como um todo, a partir de parâmetros quantitativos e qualitativos dos equipamentos, estrutura e condições para que as escolas funcionem: bibliotecas, laboratórios, número de alunos por turma, salário e planos de carreira. Tudo isso precisa estar apontado nos Planos Municipais ou Estaduais de Educação e tornar-se metas de Estado (e não de governo) e serem avaliados constantemente.

E o professor, como ele deve ser avaliado e preparado?

Um professor deve estar em constante processo de avaliação e autoavaliação. Um sistema de orientação pedagógica e educacional deve funcionar identificando os problemas encontrados e apontando políticas e estratégias para superar tais problemas. O fundamental é que ocorra um processo de formação continuada que permita ao professor a reflexão sobre seu fazer e sobre as possibilidades de melhorar. Salário digno e ambiente estimulante também são fundamentais para o sucesso da atividade docente. Por tudo isso que apontei acima, o Ideb e sua política de culpabilização, muitas vezes associada a prêmios e bonificações salariais, não resolvem o problema e apenas recriam as distorções e os obstáculos já existentes.

O Ministério da Educação (MEC) estuda um novo modelo de ensino, em que as atuais 13 disciplinas serão distribuídas em apenas quatro grandes áreas e a Câmara dos Deputados estuda novos modelos para o ensino médio. Como você analisa essas iniciativas?

Considero que, neste ponto, temos duas discussões. Primeiro a iniciativa do MEC em apontar a possibilidade de organização do Ensino Médio a partir das áreas do conhecimento tal qual está hoje organizado o Enem. Essa medida hoje é incompatível com o processo existente de formação de professores. A formação de professores para o Ensino Médio nas Universidades brasileiras hoje é profundamente disciplinar e tais professores terão grandes dificuldades em lidar com conteúdos acadêmicos diferentes daqueles para os quais foram formados. Esse processo, caso adotado, deveria ser bastante paulatino e partir de uma mudança no caráter da formação dos professores - e não da mudança curricular diretamente nas escolas - para só depois alterar a formação inicial dos docentes. Esse ponto está diretamente relacionado com a segunda questão: as propostas de reformulação curricular do Ensino Médio têm sido elaboradas sem um mínimo de participação de seus atores principais, os profissionais da educação. O Plano Nacional de Educação (PNE), que está tramitando no Congresso Nacional, por exemplo, ignorou grande parte dos debates travados pela sociedade civil na Conferência Nacional de Educação (Conae) de 2010 e praticamente não envolveu a sociedade nos necessários debates a respeito da educação pública no país. Desta forma, considero que o primeiro passo que deveria ser dado no sentido de reformulação do Ensino Médio é fomentar o debate crítico e criativo de alunos, professores e comunidade a respeito do sentido e dos objetivos desta etapa da formação acadêmica.

O ministro da Educação, Aloizio Mercadante, admitiu que essa etapa de ensino é "um grande desafio" para qualquer sistema educacional. Por quê? No que ela se diferencia das outras etapas?

Considero que a educação pública no Brasil hoje é um enorme desafio independentemente da etapa. Do ponto de vista do Ensino Médio, o grande desafio é, justamente, aliar a necessidade de conhecimento acadêmico e propedêutico a uma formação que já aponte para a formação profissional. A dicotomia entre ensino técnico e propedêutico prejudica a necessidade de se pensar estas modalidades de forma integrada, negando a parte dos jovens brasileiros o acesso a uma parcela importante do conhecimento acumulado pela humanidade.