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‘Uma parcela muito significativa da população vive com restrições alimentares'

Ana Maria Segall é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fez parte do grupo de monitoramento da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), que produziu um inquérito sobre a insegurança alimentar no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19. Segundo os resultados, quase 117 milhões de brasileiros encontram-se em algum nível de insegurança alimentar e 19 milhões passam fome. Os dados também mostraram que, proporcionalmente, a situação é mais grave nas áreas rurais, embora, num país urbano como o Brasil, o número absoluto de pessoas nesse estado esteja nas cidades. Nesta entrevista, a pesquisadora detalha esse cenário, analisa suas principais causas e mostra que, apesar do impacto da pandemia, a piora vem de antes.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/07/2021 14h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

A partir dos resultados da pesquisa da qual você participou, é possível ‘medir’ o real impacto da pandemia na situação de insegurança alimentar no Brasil, tendo em vista que o cenário já vinha piorando desde 2018?

A preocupação nossa foi mostrar que a pesquisa trazia um resultado aumentado de um processo que já vinha acontecendo. Nós tivemos o cuidado de garantir que a pesquisa tivesse os mesmos critérios amostrais do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que usasse a mesma escala, porque nós queríamos traçar um perfil histórico. Na nossa pesquisa nós utilizamos a EBIA [Escala Brasileira de Insegurança Alimentar] com oito itens: pergunta sobre situação de segurança e insegurança alimentar na família, a partir das condições dos adultos e do domicílio. A gente não inclui perguntas referidas a crianças. O IBGE usa sempre a escala completa, de 14 itens. Nós reanalisamos todas as pesquisas anteriores do IBGE (2004, 2009, 2013, 2017 e 2018) porque tínhamos certeza, pelos dados que vínhamos acompanhando e por outros indicativos - por exemplo, a pesquisa da Unicef, que já trazia dados da pandemia –, que encontraríamos resultados bem piorados. E a gente queria assegurar que os dados não seriam interpretados exclusivamente como sendo [resultado] do impacto da pandemia. É óbvio que tem o impacto da pandemia, mas [o cenário] é resultado de políticas, porque poderia ser muito diferente.

Nós tínhamos, no nosso questionário, perguntas relativas a renda e tal, mas tínhamos um módulo da pesquisa que era todo voltado para saber se houve perda de emprego durante o período da pandemia, se houve redução de renda e algumas outras perguntas relativas ao que poderia ser a “causa” do aumento da insegurança alimentar nesse período. A gente teve esse cuidado. Temos o histórico mostrando que é um processo que já vinha e que foi agravado com a pandemia, não por culpa exclusiva do vírus. É importante mostrar que já vinha uma gestão ruim, antipobre, o desemprego já vinha aumentando e muito: nós chegamos ao final do ano de 2019 com 13% e tantos de desemprego. Com a pandemia chegou, no final de 2020, a 14% e qualquer coisa. Ou seja, nós saímos no final de 2013, início de 2014, com praticamente pleno emprego e, em 2017 e 2018, a POF [Pesquisa de Orçamento Familiar] já tinha mostrado o que estava acontecendo.


A pesquisa mostra números diferentes, mas, além disso, é possível afirmar que, hoje, a fome no Brasil tem caras diferentes – nas periferias urbanas, na zona rural, nas aldeias indígenas etc? E no passado, historicamente? A fome na cidade, onde não se pode plantar, é diferente da fome no campo? As determinantes e as formas de enfrentamento são diferentes?

Talvez a gente possa ter uma premissa. As questões do emprego e, sobretudo, da renda, são um indicador comum, tanto rural quanto urbano. A gente tem indicadores que diferenciam essas duas populações, urbana e rural. Por exemplo, na área urbana, as populações têm muito mais acesso a políticas públicas e a outras intervenções não necessariamente públicas, como são as redes de solidariedade. Você tem um apoio social e um acesso a recursos sociais na área urbana maior que na área rural. Então o enfrentamento na área urbana da fome, sobretudo a insegurança alimentar grave, tem componentes que [levam em conta] essas características. [Na cidade], você vai ter, por exemplo, a informalidade no trabalho, o bico, a história do empreendedorismo, a pessoa que vai vender cafezinho em ponto de ônibus, que vai vender bala no semáforo: você tem estratégias de sobrevivência na área urbana que não tem na área rural. Por outro lado, você tem indicadores na área rural que também são diferenciados. Por exemplo, a produção para autoconsumo. A obtenção da renda na área rural, sobretudo para os camponeses, os pequenos produtores, tem características diferentes da área urbana porque eles dependem de mercados próximos, por exemplo, a venda em feiras, as pessoas também fazem troca... Na área rural, você também tem estratégias de troca, que podem significar algum nível de enfrentamento [da insegurança alimentar]. Então há o impacto da renda, que vai ser semelhante - baixou a renda, aumentou a insegurança alimentar - e tem o impacto desses indicadores que diferenciam essas populações.

O que a nossa pesquisa mostrou? Uma coisa importante que a gente explorou pouco no relatório, mas a gente tem dados para isso, é como a irregularidade do fornecimento de água está relacionada à insegurança alimentar, tanto na área urbana quanto na rural. Só que na área rural, a intermitência, a irregularidade ou a ausência de água tem um impacto importante na produção. Na área rural, e a pesquisa mostrou isso, a falta de água impacta a produção, e ao diminuir a produção, também vai reduzir a renda dessa parcela da população. Na área urbana, isso tem muita relação também com o enfrentamento da própria Covid: a questão da higienização do domicílio e da própria pessoa fica dificultada pela falta d’água.

Na área rural, um indicador importante foi a dificuldade de comercialização dos produtos. As feiras fecharam, as pessoas não tinham para quem vender seus produtos e, com isso, teve dois impactos. Um foi na própria renda: reduziu a renda dessas pessoas porque elas não puderam comercializar os seus produtos. Mas também reduziu a produção, porque como não tinham para quem vender, elas deixaram de produzir. Resumindo: você tem indicadores básicos, como renda, emprego, escolaridade, por exemplo, que são comuns às duas populações. Mas existem indicadores que diferenciam as estratégias que essas populações têm que enfrentar.


É possível dizer que os resultados da pesquisa sobre a área rural referem-se a agricultores familiares e pequenos agricultores? Como se chegou a esse dado?

A gente identifica porque a distribuição do território da área rural é muito peculiar no Brasil: você tem grandes extensões de terra com ninguém dentro, tem trator, mas o produtor não mora ali. Se você pegar as grandes plantações de grãos, de cana-de-açúcar, é terra com planta em cima e praticamente sem gente. Tem pouquíssimos trabalhadores e o proprietário não mora lá. Nós pegamos a menor unidade de território que o IBGE usa, sorteamos esses mesmos conglomerados do IBGE e, desse território, sorteamos os domicílios. A chance de cair um agricultor familiar, um pequeno agricultor ou um médio agricultor é muito maior do que a chance de cair um [representante do] agronegócio. A gente nem entrevista o agronegócio porque o proprietário não está lá. A nossa pesquisa basicamente pegou agricultores familiares, pequenos e médios agricultores, uma representatividade muito grande desse rural que não é o rural rico, o rural de médio pra baixo.


Mas não tem os empregados do agronegócio?

Aí a gente tem os indicadores: a gente sabe se o chefe de domicílio é um autônomo ou se é um empregado, porque tem a pergunta sobre ocupação. A gente tem dados do setor censitário com as características das propriedades. Como a unidade de pesquisa não é a propriedade mas sim o domicílio, a gente tem os dados sobre domicílio, aí a questão do rendimento da família, do emprego do chefe, educação, ocupação... A gente tem esse dado, mas ele não foi analisado.


A irregularidade no acesso á água tem impacto sobre a insegurança alimentar também na cidade?

Sim. Você pode ter uma relação direta como, por exemplo, dificuldade para cozinhar: faltou água em casa, as pessoas deixam de usar o fogão, se tem dinheiro, compra alimento, se não tem, usa estratégias outras que a gente não pesquisou, mas a gente sabe, por estudos qualitativos, que as pessoas utilizam enlatados, embutidos, salsichas... É conhecido que a água faz parte da segurança alimentar. Poderia ter uma escala com essa pergunta, porque água é alimento, se falta água na casa, independentemente de para que seja, é uma situação de insegurança porque a água é um alimento fundamental na sobrevivência das pessoas. Ela não está sozinha, não é só a falta da água: essas pessoas moram em um território de muita vulnerabilidade, estão com dificuldade de acesso à renda e aos alimentos, é um conjunto. Na verdade, se a gente for pensar em determinação da insegurança alimentar grave, é muito difícil você achar que você pode isolar uma condição. As condições compõem o quadro de vulnerabilidade. A segurança alimentar não é uma condição unidimensional, portanto a insegurança alimentar e os determinantes também não são unidimensionais.


Os dados levantados por esse inquérito dizem alguma coisa sobre a insegurança alimentar da população indígena? Existem estratégias para buscar esses dados ainda durante a pandemia?

A gente não tem. A população indígena é dispersa e é relativamente pequena, está em torno de um milhão de habitantes. E ela é muito rarefeita. Então, mesmo as pesquisas do IBGE como são as PNAD e a POF, que têm amostras de 58 mil domicílios, não conseguem incluir nas análises a população indígena e outras populações tradicionais como os quilombolas, por exemplo. A única pesquisa que poderia fazer isso é o Censo, mas o Censo está parado, não tivemos ano passado nem vai ter este ano. Essa é uma dificuldade, todas as pesquisas nacionais não conseguem incluir essas populações tradicionais. Também tem uma questão importante, que é saber se essa escala que a gente usa para a população geral é aplicada à população indígena. O grupo de pesquisa lá de Campinas fez uma validação para uma escala indígena, com os Guaranis lá de São Paulo. Testamos essa escala com populações do Norte do Brasil e a gente tem uma escala bastante confiável, muito parecida, inclusive: se a gente fizer um inquérito nacional dessas populações, teria condições de comparabilidade. Como a gente não tem condições de incluir essas populações tradicionais nos inquéritos nacionais, por razões amostrais, a Rede pensou em ter outra estratégia de inclusão dessas populações. Na verdade, o projeto da Rede é de monitoramento da insegurança alimentar no contexto da pandemia. O inquérito é a primeira abordagem e a segunda é a disponibilização de um instrumento que facilite aos pesquisadores da Rede abordarem populações específicas. Aí tem população de rua, tem os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos, as populações extrativistas... Como a Rede tem uma capilaridade muito grande, são mais de 200 pesquisadores, a gente acha que é possível ter um instrumento padrão de monitoramento - não é um instrumento que vai aprofundar análises de cada um desses grupos, mas que vai buscar incluir, numa estatística geral da população brasileira, essa população que está sempre excluída das estatísticas oficiais. A ideia da Rede é cobrir essa lacuna. Para isso, a gente está finalizando um protocolo que está dentro de um aplicativo, que vai permitir que os pesquisadores da Rede possam abordar essas populações.


Queria que a senhora falasse sobre os diferentes níveis de insegurança alimentar. Mesmo que não saiba o que é, todo mundo tem ideia de que fome é inadmissível. Mas os níveis leve e moderado podem se confundir com práticas que não necessariamente configuram uma situação de insegurança alimentar, como segmentos da classe média deixarem de comprar alimentos orgânicos em algum momento. Queria que a senhora desse um exemplo: numa família comum, como a gente sabe que ela mudou de um grau de segurança alimentar para insegurança alimentar leve e depois, moderada?

A escala mede a questão do acesso aos alimentos do ponto de vista da capacidade das pessoas, que pode ser uma capacidade exclusivamente monetária, pode ser pela capacidade de produção ou por ambas. No estudo qualitativo que nós fizemos na época da validação da EBIA, um grupo focal que a gente fez com pessoal de área rural, disse: “olha, no limite, o que determina a insegurança alimentar é a renda porque, se faltou produção, se faltou capacidade de comercialização, se a gente tem dinheiro, a gente compra o alimento”. A Escala pergunta para as pessoas se faltou dinheiro, se ela teve que fazer algum tipo de ajuste na dieta por falta de recursos, monetários ou não. Logo que saiu a EBIA, teve um jornalista da Globo que falou a seguinte bobagem: ‘Poxa, semana passada eu não pude comer caviar, então eu estou em situação de insegurança alimentar’. A escala mede o acesso do ponto de vista da capacidade de recursos para comprar o alimento. O que acontece com as famílias? Quando elas começam a perder essa capacidade, começam a se ajustar, vão se adaptando a uma situação que pode ser nova ou pode ser algo que se repete periodicamente. Por exemplo, o salário não dá, antes de terminar o mês, termina o salário.

Existem questões que são crônicas e que são periódicas, algumas situações são sazonais, como a época de muita seca ou de muita chuva. As famílias têm uma capacidade de manejar a falta ou a insuficiência de recursos para manter a alimentação necessária na sua família. Quando o recurso que a família tem não é um limitante para a alimentação, a família está sempre em situação de segurança alimentar. Uma família que tem renda alta gasta 20% em alimentação, 80% sobra para outras coisas. Nas famílias pobres, esse percentual vai aumentando e a capacidade de manejo vai diminuindo.

O recurso reduziu? A primeira coisa que acontece é que a qualidade da dieta começa a ser comprometida. Há pesquisas mostrando que quando os recursos começam a diminuir as pessoas tiram frutas e verduras, que são alimentos essenciais para a qualidade da dieta. Elas começam a ter essa estratégia, ela precisa manter a quantidade de alimentos que produzem a energia suficiente para o trabalho, para a vida, para a saúde. Nessa fase de ajuste, a gente já começa a dizer que é insegurança alimentar leve. Ela vem junto com um componente psicológico da insegurança, que é a preocupação de que aquela família não vai conseguir ter alimento num futuro próximo. Essa preocupação traduz insegurança, porque são famílias que têm uma instabilidade de renda bastante grande: elas já viveram experiências de insegurança alimentar ou sabem que podem vir a ter insegurança alimentar. Então, a insegurança alimentar leve, na nossa classificação, é aquela situação em que a pessoa está preocupada porque os recursos reduziram e vai ter impacto na alimentação. Ela não tem garantia de que vai ter alimentos e já começa a usar como estratégia a retirada de alguns alimentos da sua cesta alimentar. Essa é a insegurança alimentar leve: a preocupação e mais o comprometimento da qualidade da alimentação na família. Se as condições nessa família levaram à redução de recursos para acesso aos alimentos, ela vai entrar numa situação que vai progressivamente piorando. Não só retira esses alimentos, como outros: retira carne, laticínios... Aí começa a ter uma redução, inclusive, de quantidade de alimentos. Piora a qualidade da alimentação, que na insegurança leve já estava comprometida, mas a qualidade piora, e começa uma situação em que os adultos começam a usar estratégias de se alimentar menos para deixar para as crianças. Essa situação em que a dieta está qualitativamente comprometida e os adultos começam a ter que reduzir a sua ingestão para garantir a das crianças configura insegurança alimentar moderada. Essa família não consegue segurar as pontas, os recursos realmente são insuficientes e ela chega a um ponto em que, mesmo com a estratégia dos adultos de reduzir sua própria ingestão, já começa a faltar alimento inclusive para as crianças. Essa situação, quando todos os moradores da casa têm uma redução na quantidade de alimentos, é a insegurança alimentar grave, que configura a situação de fome. O que a família tem para se alimentar é insuficiente para manter a sua vida de forma adequada. Na insegurança alimentar moderada, por exemplo, a proporção de adultos que fazem um número menor de refeições é aumentada, a pessoa, ao invés de três refeições por dia, faz duas, se toma café da manhã, não almoça, só vai jantar. Mas quando isso chega às crianças, quando a criança não faz todas as refeições ou não tem o alimento em quantidade suficiente, significa que aquela família está, realmente, experimentando situação de fome, está em situação de insegurança alimentar grave. Ou seja, é uma cadeia de agravamentos.


A pesquisa foi realizada num período em que o auxílio emergencial, antes de R$ 600, tinha sido reduzido à metade. Isso pode ter tido impacto nas respostas? O retrato seria diferente se a pesquisa fosse feita em outro período de 2020? Como se pode analisar o caráter mais ou menos flutuante da insegurança alimentar no Brasil?

Os dados que a gente tem das pesquisas nacionais mostram que não é tão flutuante assim. Você tem uma parcela muito significativa da população que vive com restrições alimentares muito importantes.

De forma quase permanente?

São quase permanentes para áreas muito típicas. Você vai encontrar, por exemplo, na área rural, principalmente de Norte e Nordeste, uma situação pior, mas você vai encontrar, nas áreas de periferia urbana das grandes cidades, situações muito similares. Se você pegar as favelas, o pessoal que mora em situação precária, a situação da fome é recorrente, é presente, está ali, talvez até mais constante do que em algumas áreas rurais em que as pessoas ainda têm produção para autoconsumo. Em números absolutos, desses 19 milhões [de brasileiros em situação de fome], eu acho que na área rural estão cerca de 3 milhões. A desproporção é muito grande. Nós temos mais de 80% da população em área urbana, e a grande maioria dos pobres estão em área urbana, até porque nós tivemos, a partir dos anos 1960 e 70 um êxodo rural absurdo. Essas pessoas foram para as periferias e alimentam o contingente de famílias que experimentam fome como uma realidade presente nas suas vidas, de forma crônica. Não é uma questão flutuante. É diferente, por exemplo, quando você pega uma população indígena no Norte que, na época da cheia, os peixes desaparecem e as pessoas ficam isoladas, nada chega. Então, você tem situações de carência alimentar que são sazonais. Também na seca no Norte acontece a mesma coisa. Isso pode ser flutuante, a gente não tem isso identificado no Brasil de forma muito consistente, mas a gente sabe, pela experiência de outras pesquisas, que realmente o acesso a qualquer serviço e qualquer bem nessas populações tem uma influência sazonal importante. Agora, nas periferias urbanas, não. É a informalidade no trabalho, é a irregularidade da renda que mantêm essas populações das periferias em situação de muito risco ou situação realmente de insegurança alimentar grave, apesar de essas populações terem recursos estratégicos melhores, porque têm acesso a políticas públicas. Agora, numa situação como a que nós vivemos, de desemprego em massa e redução das políticas públicas de enfrentamento da insegurança alimentar, isso agrava muito, principalmente nas periferias urbanas. Pode uma ou outra família saírem, mas é uma situação permanente. Nós tivemos um período de alguma mobilidade social, mas isso acabou. Filho de pobre é pobre. A gente não tem, e vai ser muito difícil o Brasil voltar a ter, mobilidade social.


E os resultados seriam diferentes se o inquérito fosse feito no período do auxílio emergencial mais alto?

Nós temos um segmento importante da população que tinha ou tem acesso ao Bolsa Família, ao BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Na área rural, para a compra institucional da produção dos agricultores, você tem uma série de políticas públicas de promoção da segurança alimentar e, sobretudo, de combate à fome. Essas políticas foram eliminadas ou muito reduzidas. Por exemplo, o BPC e o Bolsa Família não tiveram reajuste de valores. E, além disso, ele simplesmente parou a inclusão de pessoas no Cadastro Único, ou seja, estagnou os valores dos programas e não permitiu que novas pessoas entrassem. Com o agravamento do desemprego e com a vinda da pandemia, passou a ter um contingente da população com muita necessidade e sem esses programas mais permanentes. O auxílio emergencial veio cobrir essa situação e ampliou, inclusive, as características de elegibilidade para o seu recebimento. Os pequenos empresários e os autônomos que perderam renda tiveram acesso durante esse período ao auxílio emergencial. O auxílio emergencial faz diferença porque ele cobre a deficiência do Estado naquelas políticas que já vinham mostrando que tinham sucesso. Se a gente tivesse medido naquele período em que o auxílio era maior, certamente, a insegurança alimentar não teria aumentado tanto quanto aumentou. De 2018 até o início de 2020, provavelmente, iria aumentar na mesma proporção que aumentava antes. Para você ter uma ideia, a insegurança grave aumentou, entre 2013 e 2018, 8% ao ano. Entre 2018 e 2020 - que são basicamente dois anos porque as medidas do IBGE são a partir de setembro e a nossa pesquisa também avaliou os três últimos meses do ano -, aumentou 27% ao ano. O que a gente poderia supor? Que o auxílio emergencial poderia manter esse aumento que já vinha tendo, de 8% ao ano, e não de 27% ao ano. Essa é uma situação que faz diferença. O que leva a gente a ter como proposta de papel do Estado a garantia do que está se chamando de renda básica. Não adianta você ter auxílios emergenciais só. Ele é fundamental, em um valor que, de fato, possa cobrir as necessidades básicas, pelo menos, de alimentação, mas o Brasil tem que partir agora, o mais urgentemente possível, para a garantia de uma renda básica. Porque a gente sabe que alimentação nem sempre é a primeira prioridade. Se eu tenho recursos muito limitados, o que eu tenho que gastar primeiro? Com aluguel, porque se não pagar, eu vou para a rua. Eu tenho que pagar luz e água, porque se não, não tenho nem como cozinhar. Ainda mais agora, com o preço do gás do jeito que está! A alimentação pode ser a quarta, às vezes até a quinta prioridade. Agora, por exemplo, com a pandemia, a questão dos medicamentos, das questões de saúde, jogam a alimentação para uma prioridade ainda mais baixa. Isso porque alimentação você consegue de alguma forma, as pessoas recebem doação ou uma padaria fornece um pão para a família, um vizinho empresta... Mas o aluguel, não. E, apesar de o STF [Supremo Tribunal Federal] ter proibido despejo nesse período, está acontecendo. Ou seja, o auxílio emergencial é fundamental, mas é importante a gente partir para uma renda básica cidadã.


Morre-se de fome no Brasil ainda?

Certamente, porque a fome leva a várias situações biológicas como, por exemplo, a alimentação inadequada, do ponto de vista qualitativo, mas, sobretudo, quantitativo. Entre idosos e crianças, leva a uma maior vulnerabilidade orgânica e biológica, as pessoas pegam infecção mais fácil, têm desequilíbrios metabólicos. Já tem estudos mostrando o aumento da mortalidade infantil nesse período grave que estamos vivendo. Então, certamente, leva à morte nessas circunstâncias.

Mas tem uma outra situação que a gente precisa estudar com mais cuidado, que é o quanto a insegurança alimentar está muito relacionada com a violência e, sobretudo, com a violência doméstica. A gente tem aumento da violência intrafamiliar, que pode ser decorrência da situação de vulnerabilidade, que inclui a questão da fome. A gente não pode dizer exclusivamente da fome, mas, certamente, tem aumento, por exemplo, de pequenas e médias ações ilícitas, pequenos furtos, invasões de domicílio, invasão de pequenos comércios nas periferias [motivados pela fome]. Em Campinas, logo no início dos anos 2000, a gente estava num grupo focal e um senhor bem apessoado, bem arrumadinho, virou e falou: ‘Tem dias que eu chego em casa e olho para o fogão, e as panelas não foram destampadas. Eu tenho vontade de pegar um revólver e ir para um supermercado’. A fome tem várias facetas, do ponto de vista dos seus determinantes, mas ela tem muitas facetas, do ponto de vista de suas consequências, que não são só biológicas.

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