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20 anos de saúde indígena no SUS

Um retrato do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena criado pela Lei Arouca em 1999
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 21/11/2019 09h10 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Foto: Luis Oliveira - MInistério da Saúde

Quando você estiver lendo essa reportagem, é possível que a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, prevista para acontecer entre 9 e 12 de dezembro, tenha sido cancelada. Ou então adiada pela segunda vez, já que inicialmente o evento aconteceria em maio, até ser postergada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS) – sob protestos do movimento indígena. “Se a conferência acontecer em 2019 vai ser um milagre”, aposta Uwira, liderança do Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi) e secretário-geral da 6ª Conferência. Entrevistado pela Poli quando faltavam exatos 50 dias para o início previsto para a conferência, ele apontou muitas incertezas no processo de organização para justificar o prognóstico pessimista.

Tudo indica que, para a saúde indígena, 2019 deve terminar como começou: em meio a incertezas. Em fevereiro deste ano, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou ao jornal Folha de São Paulo que o governo vinha trabalhando em propostas que poderiam reformular radicalmente a forma como se organiza a atenção à saúde dos povos indígenas dentro do Sistema Único de Saúde. Entre as propostas em discussão estaria a transferência de parte das ações aos estados e municípios e a extinção da Sesai, com a transferência da responsabilidade por essa área para um departamento dentro de uma secretaria da Pasta voltada para a atenção primária – que foi efetivamente criada em maio. Sob pressão do movimento indígena, o governo acabou voltando atrás e manteve a Sesai no organograma do Ministério da Saúde.

As falas vieram exatamente no momento em que o modelo que o ministro chamou de um “sistema paralelo” no SUS está completando 20 anos. Em 1999, o Congresso Nacional aprovou a Lei Arouca, como é conhecida a lei nº 9.836, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, cuja formulação remonta a deliberações dos povos reunidos já nas primeiras edições das conferências de saúde indígena. Foi nesses espaços que também ganhou corpo a reivindicação pela criação de um órgão específico dentro do Ministério da Saúde para coordenar as ações voltadas para essa população, que só sairia do papel mais tarde, em 2010, com a criação da Sesai.


O que havia antes?

Mas o que é, como se organiza e que impacto teve o Subsistema ao longo das últimas duas décadas? Para começar a responder essa pergunta, é preciso voltar ao princípio. Ao princípio do SUS, melhor dizendo. Já na 1ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, que aconteceu em 1986, concomitantemente à 8ª Conferência Nacional de Saúde, foi aprovada uma recomendação de que a saúde indígena fosse organizada por meio de um Subsistema de serviços vinculado ao SUS e coordenado pelo Ministério. Mas isso demoraria um pouco a acontecer.

Nesse meio tempo, a coordenação da saúde indígena ficou indo e voltando do Ministério da Justiça - ao qual está vinculada a Fundação Nacional do Índio (Funai) - para o Ministério da Saúde - ao qual é vinculada a Funasa, a Fundação Nacional de Saúde. Um ano depois da aprovação da Lei Orgânica do SUS, em 1990, um decreto emitido pelo então presidente Fernando Collor transferiu da Funai para a Funasa a responsabilidade pela coordenação das ações de saúde para os povos indígenas. Em 1994, no entanto, outro decreto, desta vez assinado por Fernando Henrique Cardoso, revogou o anterior, e devolveu a coordenação à Funai.

Isso resultou em um impasse, no qual a Funasa deteve a responsabilidade pelas ações de prevenção e controle de agravos à saúde, saneamento básico e capacitação de recursos humanos, e a Funai ficou com as ações de assistência médico-sanitária. “Víamos essa situação com muita preocupação. Na prática havia pouco conhecimento sobre a realidade da saúde da população indígena”, lembra Clóvis Ambrosio, liderança que participou das primeiras conferências de saúde como integrante do Conselho Indígena de Roraima. Luiza Garnelo, pesquisadora do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), lembra que, na época, a assistência à saúde para os indígenas era muito pontual. “Não se pode falar de uma rede assistencial ou de uma cobertura de atenção primária estruturada”, aponta.

Em paralelo, a saúde indígena no SUS foi dando alguns passos no sentido de adquirir a configuração que tem hoje. Ainda em 1991, em meio a uma crise deflagrada pela invasão da Terra Indígena Ianomâmi por cerca de 40 mil garimpeiros, o governo federal criou o primeiro distrito sanitário do país, entre os estados de Roraima e Amazonas, sob a responsabilidade da Funasa. Dois anos depois, a 2ª Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas aprovou a proposta de tornar os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ou Dseis, o modelo de organização dos serviços de saúde para esses povos, com coordenação do Ministério. Clovis Ambrosio lembra que o sanitarista Sergio Arouca, na época deputado federal, estava presente na 2ª Conferência e ali assumiu o compromisso de apresentar um projeto de lei para regulamentar a saúde indígena no SUS. Isso aconteceu em 1994 e se tornou realidade em 1999, quando a Lei Arouca acrescentou um dispositivo à Lei Orgânica do SUS, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, hierarquizado, regionalizado e descentralizado não via municipalização – como o restante do SUS –, mas por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.

A legislação pôs fim às disputas entre as instituições governamentais pela gestão e execução das ações de saúde indígena, que passaram a ser responsabilidade do Ministério da Saúde. E garantiu ainda aos indígenas o direito de participar dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde.


Avanços

Existem 34 Dseis espalhados pelo território nacional. Sua delimitação leva em conta critérios como a distribuição demográfica tradicional dos povos indígenas, que não coincide necessariamente com os limites de estados e municípios onde estão localizadas as terras. Perfil epidemiológico, disponibilidade de serviços, profissionais e infraestrutura e vias de acesso à rede regional do SUS são alguns dos outros critérios levados em conta na hora de se delimitar um Dsei.

Todos dispõem de uma rede de serviços de saúde em seu território: cada aldeia abriga um posto de saúde e cada conjunto de aldeias fica sob a responsabilidade de um polo-base, que funciona como uma unidade básica. É nele que ficam as equipes multiprofissionais de saúde indígena, que fazem visitas periódicas às aldeias. Integram ainda a rede de serviços dos Dseis as Casas de Saúde do Índio, ou Casais, que cuidam dos indígenas encaminhados para serviços de média e alta complexidade. “O distrito tem uma responsabilidade direta na execução dos serviços na atenção primária, mas é um articulador da integralidade das ações em nível secundário e terciário. Ele tem a responsabilidade, portanto, de fazer a articulação com outros serviços e instâncias do SUS para garantir essa integralidade”, explica Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Esse é um argumento, segundo ela, para refutar a ideia de que se trata de um “sistema paralelo” ao SUS. “O Subsistema é uma complementação da Lei Orgânica do SUS. Não tem nem coincidência de serviços, porque uma das suas características é ser delimitado. A área de atuação é em territórios indígenas, que são locais em que os municípios não costumam atuar”, completa.

A pesquisadora da Fiocruz Amazônia Luiza Garnelo acredita que a implantação do Subsistema representou um “avanço inquestionável”. Com sua criação, diz ela, há a formalização de uma rede de atenção primária, com cobertura para os povos indígenas do Brasil inteiro. “Você prover a cobertura assistencial onde antes não havia nada é um grande ganho”, diz. Ela ressalta também o crescimento do aporte de recursos do governo federal para a saúde indígena a partir da criação do Subsistema: de R$ 180 milhões em 1999 para pouco mais de R$ 500 milhões no ano de 2007.

Evolução que continuou ao longo dos anos seguintes, principalmente após a criação da Sesai, cujo orçamento ultrapassou R$ 1,6 bilhão em 2018. Criada em 2010 em um contexto de desgaste da imagem pública da Funasa, que vinha sendo alvo de críticas e denúncias de corrupção pelas associações indígenas, a secretaria foi incumbida de coordenar a gestão do Subsistema, atribuição que mantém até hoje. “A Sesai era uma reivindicação dos movimentos indígenas, que já vinham cobrando uma maior autonomia na gestão dos recursos e dos serviços nas comunidades”, diz André Baniwa, vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana. Para Ana Lúcia Pontes, a secretaria ajudou a garantir a consolidação da estrutura do Subsistema dentro do SUS. “Inclusive com o incentivo à formação de trabalhadores e a formulação de políticas também no diálogo com outras secretarias e ministérios”, complementa.

Para a pesquisadora da Ensp/Fiocruz, o Subsistema ampliou o acesso dos indígenas às ações de atenção à saúde em todos os níveis. “Hoje há uma diversidade maior de serviços ofertados. Antigamente você tinha quase que apenas a distribuição de remédios e vacinação”, aponta. Ela considera importante ainda os avanços políticos do Subsistema. “Ele traz a questão do protagonismo indígena na formulação das políticas de saúde, no sentido de mudar a relação do Estado com essas populações”, avalia. 

A reportagem da Poli entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde solicitando uma entrevista de balanço dos 20 anos do Subsistema, mas até o fechamento dessa revista não havia obtido resposta.

Mapa dos 34 Dseis que compõem o Subsistema
Retrato incompleto da saúde indígena

Pesquisadores da área, no entanto, ressaltam que é difícil fazer um balanço do que o Subsistema representou em termos de indicadores de saúde dessas populações. Em parte, isso se dá pela relativa escassez de pesquisas em âmbito nacional sobre as condições de saúde dos povos indígenas do Brasil que permitam a construção de séries históricas.

Carlos Coimbra, também pesquisador da Ensp/Fiocruz, explica que enquanto as condições de nutrição e saúde da população brasileira mais ampla vêm sendo objeto de estudos desde a década de 1960, no caso dos indígenas esses dados só começaram a ser compilados recentemente. O primeiro estudo que forneceu um panorama sobre o quadro de saúde das populações indígenas em âmbito nacional foi realizado em 2009: por meio do 1º Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, do qual Coimbra foi um dos coordenadores, foi possível identificar, por exemplo, altas incidências de desnutrição e anemia entre as crianças indígenas, ao mesmo tempo em que emergiam problemas como obesidade, diabetes e hipertensão nessas populações. “Esse tipo de pesquisa tem que acontecer sempre, para nos permitir fazer comparações entre a conjuntura da saúde indígena hoje com dez anos atrás. Está na hora de fazer um segundo inquérito, mas é preciso recursos”.

Outro levantamento em âmbito nacional sobre a saúde das populações indígenas, dessa vez na saúde bucal, está previsto para começar no final de 2020. O 1º Inquérito Nacional de Saúde Bucal dos Povos Indígenas começou a ser planejado em 2017, com a participação de pesquisadores de diversas universidades e instituições do Brasil, entre elas a Fiocruz, com recursos do Sesai. Rui Arantes, pesquisador da Ensp/Fiocruz que integra a equipe de coordenação técnico-científica do estudo, explica que a população amostral da pesquisa é estimada em 70 mil pessoas, dos 34 Dseis do país.

“A ideia é que os dentistas que atuam nas aldeias sejam treinados para coletar os dados em serviço. Então a primeira etapa é capacitá-los para fazer esse levantamento epidemiológico”, afirma. Ele explica que os dados que existem sobre as condições de saúde bucal de grupos indígenas específicos mostram realidades distintas. “A diversidade sociocultural do Brasil é muito grande. São mais de 300 grupos étnicos vivendo sob diferentes condições econômicas, com distintas formas de alimentação, com acesso ou não ao flúor, ao creme dental e à escova”, enumera o pesquisador. E completa: “Acho que essa vai ser a grande contribuição do inquérito: dar elementos para pensar na organização da atenção considerando a especificidade de cada grupo étnico, de cada Dsei”.

Arantes identifica nas ações de saúde bucal dentro do Subsistema um foco ainda muito grande no trabalho clínico, com pouca prioridade para prevenção e promoção. “O que derrubou os índices de cáries em nível mundial foi o acesso ao flúor, não foi o acesso a tratamentos dentários. No caso dos povos indígenas, em que o acesso é difícil e os profissionais não estão presentes o tempo todo, é importante implementar ações de educação em saúde e prevenção. Essa é uma coisa em que eu acho que o Subsistema peca um pouco ainda”, analisa.

Os dados levantados pelo inquérito de saúde e nutrição realizado em 2009 vêm sendo desdobrados até hoje. Um estudo do próprio Carlos Coimbra e outros autores publicado num suplemento especial dos Cadernos de Saúde Pública em 2019 identificou, por exemplo, que a maior parte dos primeiros exames de pré-natal nas mulheres indígenas acontecem no quinto mês de gravidez. “O ideal seria que fossem realizados no primeiro trimestre, reduzindo, por exemplo, a chance de transmissão para a criança de doenças infecciosas que a mãe possa ter, como toxoplasmose aguda, sífilis e hepatite B”, explica Carlos.

Segundo ele, a desigualdade nos indicadores de saúde dos indígenas em relação ao restante da população é uma constante das pesquisas. “Entre os indígenas você continua tendo coeficientes de mortalidade infantil pelo menos três vezes superiores aos da população em geral. Cerca de um quarto das crianças indígenas não crescem de acordo com o esperado para a sua idade, o que caracteriza um quadro de desnutrição crônica. É um cenário de enorme desigualdade”, pontua.

Outro artigo do suplemento da CSP se debruçou sobre os números da tuberculose entre crianças e adolescentes indígenas no período entre 2006 e 2016. O estudo identificou uma incidência média de 49 casos da doença para cada 100 mil habitantes entre a população de até 19 anos, superior à identificada em estudos realizados em países da África, como Nigéria e Uganda. “Temos uma situação complexa, em que a sobreposição entre doenças infecciosas e parasitárias tem uma presença importante na determinação da morbidade, ao mesmo tempo em que você tem obesidade, sobrepeso, hipertensão e diabetes aumentando rapidamente entre os indígenas”, analisa o pesquisador da Ensp. 


Velhos e novos problemas

Essas e outras questões foram objeto de um documento publicado pelo Ministério da Saúde em 2019, ainda sob a gestão de Marco Antonio Toccolini na Sesai. A análise da situação de saúde no subsistema de saúde indígena compilada pelo governo federal traz dados de 2014 a 2018, que sinalizam alguns avanços em relação à cobertura de serviços e ações de saúde e também uma melhoria no quadro sanitário geral dos indivíduos cadastrados no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) que receberam atendimento pelas equipes multiprofissionais nos 34 Dseis. Mas mostram a persistência de velhos problemas, bem como a emergência de alguns novos.

Na saúde materna, por exemplo, o relatório aponta um aumento no registro de consultas de pré-natal de mulheres indígenas: a quantidade de grávidas com zero consultas caiu de 43,6% em 2015 para 18,3% em 2017, enquanto o percentual de gestantes que tiveram de quatro a cinco consultas quase dobrou no período, de 12,3% para 24,2%, aumento semelhante ao registrado entre as gestantes que tiveram seis ou mais consultas, que passou de 12,3% para 26,4%.

Entre as crianças indígenas menores de cinco anos, o relatório aponta algumas inadequações no estado nutricional. Em 2016 foi registrado déficit de peso em 9,2% delas. O cenário é particularmente alarmante no Norte do país, onde em alguns Dseis, como o Yanomâmi, esse índice ultrapassa os 50%. É na região Norte que estão também os distritos que registraram os maiores percentuais de crianças menores de cinco anos com baixa estatura: enquanto na média dos Dseis esse índice foi de 31,4% em 2016, ele chegou a 82% no Dsei Yanomâmi, a 73% no Dsei Alto Rio Juruá e a 62,3% no Alto Rio Purus.

A mortalidade infantil segue sendo um grave problema de saúde entre as populações indígenas. Dos 2,9 mil óbitos registrados pelo Siasi em 2016, 585 (20,2%) foram entre crianças menores de um ano, e outros 257 (8,9%) na faixa etária de um a quatro anos. Entre as causas da mortalidade infantil indígena predominam as consideradas evitáveis, como doenças do aparelho respiratório, doenças infecciosas e parasitárias e doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas.

Em paralelo, os dados mostram ainda um aumento na prevalência das doenças crônicas não transmissíveis, classificação que agrega problemas como as doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, diabetes e os cânceres. A prevalência dessas enfermidades aumentou de 138,5 para 203,5 casos para cada 10 mil habitantes de 2015 a 2017.


Gargalos do subsistema

A persistência de desigualdades no quadro de saúde da população indígena permanece como um desafio do Subsistema que este ano completa duas décadas de existência. Para pesquisadores da área, um fator que concorre para isso é a dependência que a saúde indígena tem dos serviços prestados por entidades privadas. “Toda a execução dos serviços de saúde é feita por contratação de serviços de terceiros. A vantagem é que isso permitiu, quando o Subsistema foi implantado, que você colocasse as ações para funcionar com rapidez”, avalia Luiza Garnelo. Uma contrapartida, segundo ela, é a dificuldade de gerenciamento. “Com essa multiplicidade de agentes contratados é difícil fazer a gestão, acompanhar a qualidade do atendimento. Há muita assimetria na resposta dada por essas entidades”, pontua.

Já para Carlos Coimbra, a alta rotatividade de profissionais no Subsistema, aliada à falta de continuidade das ações de capacitação da força de trabalho para atuar nos contextos indígenas, representa outro desafio. “O Subsistema prevê uma atenção culturalmente adequada, então os trabalhadores devem passar por capacitação. Mas isso não é feito há muito tempo. A descontinuidade nessa programação educacional não ajuda a qualificar melhor esse profissional, que muitas vezes é recém-formado e vai para uma terra indígena sem conhecer aquela realidade”, diz o pesquisador da Fiocruz.

A atenção à saúde diferenciada é um elemento central da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, de 2002. A Pnaspi, como é conhecida, prega que os serviços de saúde voltados a esses povos devem ser estruturados levando em consideração suas especificidades culturais e epidemiológicas, bem como as formas de organização social próprias. No entanto, esse princípio ainda está longe de ser efetivado no Subsistema. “A partir dos relatórios e publicações feitas nos Dseis, observamos que a ação é muito programática. É uma política de abrangência nacional, que tem sua efetividade, mas não é culturalmente sensível”, avalia Luiza Garnelo.

Ela também identifica como um dos principais gargalos do Subsistema a dificuldade de articulação dos Dseis com os serviços de média e alta complexidade. “O Dsei é transfronteiriço em relação aos municípios e estados. Isso gera uma enorme dificuldade para referenciar pacientes da atenção primária nos distritos para um hospital em um estado ou município diferente”, diz a pesquisadora. E completa: “Essa é uma questão que não foi equacionada. Fica muito em cima da rede de relações dos profissionais de cada distrito. Precisa de pactuações firmadas com clareza, de fluxos definidos. E não tem”.

O Ministério da Saúde regulamentou, por meio de uma portaria do final de 2017, o Incentivo para Atenção Especializada aos Povos Indígenas (IAE-PI), que libera recursos federais a estabelecimentos de alta e média complexidade do SUS que comprovarem adotar medidas para adequar seu atendimento às especificidades culturais dos povos indígenas. No entanto, segundo matéria publicada na página da Sesai na internet, apenas 39 estabelecimentos do Sistema Único recebiam recursos desse incentivo até setembro de 2019. “A média e a alta complexidade continuam sendo um gargalo muito grande, em parte por causa da falta da pactuação de diversos hospitais com o IAE-PI”, assinala Paulo Tupiniquim, coordenador-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e representante da entidade no conselho distrital do Dsei Minas Gerais e Espírito Santo. “Para poder agendar uma consulta especializada, com oftalmologista, por exemplo, demora de dois a três anos”, revela.


Conjuntura adversa

Vinte anos após a aprovação da lei que criou o Subsistema, sua consolidação permanece um desafio para os povos indígenas e o SUS, especialmente em uma conjuntura em que vários direitos desses povos vêm sendo questionados. No final de setembro, em seu discurso de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro criticou a extensão das terras indígenas demarcadas no país e garantiu que não serão demarcadas novas terras. A delegação brasileira fora à Nova York acompanhada de Ysani Kalapalo, indígena apoiadora do governo apontada como representante dos povos do Xingu, mas cuja representatividade foi questionada em uma carta de repúdio assinada por lideranças da região.

Também no final de setembro, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) alertou que o número de áreas indígenas invadidas em 2019 dobrou em relação a 2018: em nove meses, foram 160 casos registrados em 19 estados, contra 76 invasões em 13 estados ao longo de todo o ano de 2018. O relatório ‘Violência contra os Povos Indígenas no Brasil’, publicado anualmente pelo Cimi, aponta um aumento no número de assassinatos de indígenas no país em 2018: foram 135 casos, contra 110 em 2017. A vítima mais recente, pelo menos até o fechamento dessa revista, foi Paulo Paulino Guajajara, liderança assassinada a tiros em uma emboscada no dia 1º de novembro, na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão.

“O princípio de qualquer política pública para uma população indígena é a demarcação dos seus territórios. Sem ele o índio não tem condições de ter saúde de qualidade, de ter um ambiente saudável”, diz Paulo Tupiniquim, para quem o que está em jogo é o interesse nas terras indígenas para a abertura de novas frentes de exploração econômica pelo agronegócio e pela mineração. E complementa: “Por isso não podemos nos calar. Resistimos durante 519 anos e vamos continuar resistindo pelos nossos direitos”.