Já faz dois anos que o principal Projeto de Lei (2630/2020) que propôs regular o funcionamento das plataformas digitais no Brasil, conhecido como ‘PL das Fake News’, está parado na Câmara dos Deputados, alvo de ataques das chamadas ‘big techs’ e de grupos políticos que alegam defender a liberdade de expressão. Outras propostas chegaram a ser apresentadas e o governo federal tem mencionado a discussão de um texto próprio para submeter ao Congresso. De todo modo, parece tempo demais de inércia diante de um cenário em que se vive uma verdadeira ‘epidemia’ de desinformação, disseminação de discursos de ódio, vazamento de dados pessoais e outros problemas associados, principalmente, ao ambiente das redes sociais. Mas para os movimentos sociais que desde a Assembleia Nacional Constituinte lutam pela democratização da comunicação no Brasil, a espera – e a queda de braços em torno do tema – não é propriamente uma novidade: afinal, faz quase 40 anos que eles reivindicam a regulamentação dos artigos da Constituição que tentaram estabelecer um mínimo de regulação da mídia no país. E o motivo desse atraso de décadas é a pressão contrária a essa pauta feita principalmente pelos empresários da radiodifusão brasileira – aqueles mesmos que hoje apoiam a regulação das redes sociais – e por parlamentares e grupos políticos com interesse direto na concessão de emissoras de rádio e TV . “Diferente dos países capitalistas centrais, nós, no Brasil, temos dois grandes problemas: um cenário moderno, que envolve o enfrentamento das plataformas e da desinformação, e um cenário arcaico, ligado principalmente à radiodifusão, que a gente ainda não superou”, resume Rodrigo Murtinho, diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica em Saúde (Icict), da Fiocruz.
Para as novas gerações, principalmente dos grandes centros urbanos, que cresceram assistindo vídeos pelo YouTube e se informando pelas redes sociais, a preocupação com a programação e a influência do rádio e da televisão pode parecer coisa do passado. Mas, apesar de uma tendência clara de mudança, os números mostram um cenário de acesso à informação e entretenimento mais complexo e desigual do que o que se costuma supor. Dados da última versão do Digital News Report, um estudo produzido anualmente pelo Instituto Reuters sobre o consumo de notícias, mostram que, já há algum tempo, os canais on line, que incluem tanto sites quanto as redes sociais, são a principal fonte de notícias no país. Em 2013, primeiro ano da série histórica, 90% das pessoas utilizavam principalmente esse meio de informação, enquanto em 2024, esse contingente caiu para 74%, mantendo-se, no entanto, no topo do ranking. Em segundo lugar estão as redes sociais consideradas de forma isolada, sem os demais veículos on line, que subiram de 47% para 51% nesse intervalo de tempo. Os meios impressos (jornais e revistas) caíram de 47% para 11%, a mudança mais significativa nesse período. Já a televisão – que compõe o setor de radiodifusão que os movimentos pela democratização há décadas tentam regular – também teve uma queda importante, mostrando uma curva descendente desde 2016, mas mantém-se como principal fonte de informação para nada menos do que 50% da população – eram 75% em 2013.
“Não é porque hoje nós temos plataformas que a televisão e o rádio podem fazer o que quiserem”
Maria José Braga
Todo esse cenário diz respeito apenas ao consumo de notícias. Mas quando o assunto é entretenimento, os números absolutos sobre a audiência da televisão brasileira – e, consequentemente, sobre a influência desse meio na opinião pública e nos comportamentos sociais – também não são desprezíveis. Se por um lado a audiência das telenovelas, por exemplo, vem caindo em meio à concorrência com canais de streaming como a Netflix, por outro, segundo uma pesquisa realizada em dezembro do ano passado pela empresa Opinion Box, 26% dos brasileiros acompanham reality shows regularmente mas outros 40% afirmam assistir a esse tipo de conteúdo “às vezes” – como se pode imaginar, o que mais faz sucesso é o Big Brother Brasil (BBB), que tem 30% de uma audiência cativa desde a primeira temporada, lançada 25 anos atrás. E o dado que talvez seja mais interessante é que a maioria dos espectadores (72%) acompanham esse tipo de programação pela TV aberta. “O movimento [social pelo direito à comunicação] hoje está concentrado em pautas mais específicas, como a questão das Fake News e a regulação das plataformas, como se essa questão da comunicação como um todo não fosse mais importante. Mas não é assim, né? Porque a Globo está aí se reinventando”, alerta Luiz Felipe Stevanim, editor da Revista Radis, da Fiocruz. Maria José Braga, Secretária Geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), concorda: “Não é porque hoje nós temos plataformas que a televisão e o rádio podem fazer o que quiserem”, diz.
O velho e o novo, ao mesmo tempo
Os países que conseguiram regular a radiodifusão no passado têm mais ferramentas hoje para enfrentar as plataformas de mídias sociais
A jornalista e militante dos Direitos Humanos Bia Barbosa, que integra o coletivo Diracom – Direito à Comunicação e Democracia, argumenta, inclusive, que os países que conseguiram regular a radiodifusão no passado têm mais ferramentas hoje para enfrentar as plataformas de mídias sociais. “Vários estudos mostram que as crianças europeias são muito mais protegidas do que as crianças brasileiras, não só porque agora eles têm uma legislação nesse sentido [de maior controle das plataformas] mas também em função de um histórico regulatório [da comunicação] mais amplo que a Europa sempre teve”, exemplifica.
E não para por aí: alguns agravantes do cenário atual de poder e influência das plataformas digitais têm diretamente a ver com pautas não resolvidas que há anos estão na lista de reivindicações dos movimentos sociais da comunicação. O exemplo mais visível é o que ficou conhecido como ‘zero rating’ (ou tarifa zero) e sua relação com a não-universalização da banda larga – um tipo de internet mais rápida e estável. O nome pode parecer complicado, mas o fenômeno é bem conhecido da maioria da população. Trata-se da prática pela qual alguns aplicativos de celular – em geral de mídias sociais – podem ser usados sem gastar dados móveis. Para o consumidor, parece ótimo: que atire a primeira pedra quem
nunca ficou sem internet no telefone e comemorou por poder, pelo menos, navegar e se comunicar pelo Instagram ou pelo Facebook. A questão é que, alívios individuais à parte, isso faz com que, em função da falta de conectividade ou como estratégia para economizar dados móveis, boa parte das pessoas acesse informações e conteúdos exclusiva ou majoritariamente pelas redes sociais, o que reduz a diversidade de fontes e cria obstáculos, por exemplo, para que quem consome uma notícia nas redes possa checar em algum site jornalístico ou científico se se trata de desinformação. “Se a gente não tivesse tido uma política de zero rating lá atrás, hoje talvez não estivesse discutindo concentração de plataformas no Brasil, porque a gente talvez tivesse uma diversificação maior, inclusive, das plataformas que a nossa população acessa”, ana- lisa Barbosa.
A solução, então, seria retirar o acesso ‘gratuito’ da população a essas mídias? Não. E é por isso que esse problema contemporâneo se entrelaça com a velha defesa da universalização da banda larga no Brasil. O Plano Nacional de Banda Larga, lançado em 2010, no governo Dilma Rousseff, significou, nas palavras de Bia Barbosa, um esforço de “massificação” do acesso à internet, ao determinar que operadoras privadas deveriam oferecer “pelo menos um pacote mais baratinho” para aumentar a conectividade no país. Já o caminho que os movimentos sociais da área defendiam – e que foi, inclusive, formalizado no relatório da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada um ano antes – era bem diferente: lançar mão de uma empresa pública, a Telebras, para, de fato, levar internet de qualidade aos lugares mais remotos do país, aqueles onde as empresas privadas de telecomunicações não tinham interesse em atuar porque eram menos lucrativos. “Se você passa a entender o espaço da internet como fundamental para o exercício do direito à comunicação, você tem que colocar na conta do Estado a necessidade de universalizar o acesso à internet”, explica a jornalista do Diracom.
Passados tantos anos, e diante dos dados mais divulgados sobre acesso à internet no Brasil, essa demanda pode parecer ultrapassada, mas, mais uma vez, um olhar atento aos números mostra sutilezas que costumam escapar às manchetes de jornais. De acordo com a última versão da pesquisa TIC Domicílios, do Cetic, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em 2024, 85% dos lares brasileiros em áreas urbanas tinham acesso à internet, uma evolução significativa desde 2005, data do primeiro mapeamento, em que esse indicador era de 13%. Mas aqui é preciso atenção. Em primeiro lugar, o estudo destaca que, mesmo com todo esse avanço, ainda existem 29 milhões de brasileiros que não usam a internet. Em seguida, vale ressaltar que esse alto percentual de conectividade se refere a residências em áreas urbanas: na zona rural, esse número cai para 74%. Quando se segmenta por renda, os dados mostram que 100% da classe A tem acesso à internet no Brasil, enquanto nas classes D e E, são apenas 68%. Foi a combinação desses e outros dados que provocou o Cetic a desenvolver um indicador mais completo, chamado de “conectividade significativa”, para avaliar a real situação do direito à internet no país. E a partir desse cálculo mais complexo, que considera fatores como custo e velocidade da conexão, existência ou não de banda larga fixa nas residências e a capacidade de acessar a rede por diferentes dispositivos, os resultados são menos animadores: apenas 22% dos usuários com mais de dez anos no Brasil têm “condições satisfatórias de conectividade”, a maioria deles, 74%, na classe A. Por fim, é importante ainda lembrar que, segundo o mesmo mapeamento, 60% dos brasileiros acessam a internet exclusivamente pelo celular, número que sobe para 86% entre os segmentos mais pobres da população. Foi nesse cenário, portanto, que o zero rating, que amplia o acesso aos aplicativos de redes sociais, acabou por substituir, de forma bastante seletiva, o direito à conectividade que o Estado não garantiu.
Democratização e direito à comunicação
“Quando adotamos a perspectiva do direito, a gente está colocando a comunicação num lugar tão relevante para a sociedade, para a cidadania e para a democracia de um país quanto a educação, a saúde, a moradia e outros direitos fundamentais"
Bia Barbosa
As consequências de não se ter universalizado o direito ao acesso à internet foram sentidas, de forma mais concreta, durante a recente crise sanitária. “Quando aconteceu a pandemia [de covid-19], o Plano Nacional de Banda Larga já tinha dez anos. E ainda assim não era possível fazer aulas remotas porque as pessoas não tinham acesso à internet de qualidade. Elas tinham acesso ao WhatsApp, a um plano pré-pago, a um Instagram, porque a franquia dá o Instagram e o Facebook, mas como é que você acessa uma plataforma de aulas?”, questiona Stevanim, ilustrando os riscos de se compreender a comunicação apenas como mais uma mercadoria. “Quando adotamos a perspectiva do direito, a gente está colocando a comunicação num lugar tão relevante para a sociedade, para a cidadania e para a democracia de um país quanto a educação, a saúde, a moradia e outros direitos fundamentais”, afirma Bia Barbosa, explicando que essa concepção vai além da pauta da democratização da comunicação, que se concentrava mais no combate aos oligopólios – caracterizados como o cenário em que poucas empresas dominam um determinado setor.
Não que isso fosse pouco. Afinal, o cenário em que os ‘pioneiros’ da luta no campo da comunicação atuavam era o de um país em que, mesmo antes do golpe empresarial-militar, os canais de informação e entretenimento eram controlados por poucos grupos econômicos. E que, ao longo dos 21 anos de regime autoritário, viu essa concentração aumentar ainda mais. A má notícia é que, passadas tantas décadas, a realidade brasileira de hoje não é lá muito diferente – exceto pela entrada de novos oligopólios, agora formados pelas plataformas de redes sociais e streamings, que atuam fora da TV aberta e do rádio convencional. De acordo com pesquisa realizada em 2017 pelo Coletivo Intervozes, o Brasil tinha a maior concentração econômica nessa área entre 12 países em desenvolvimento que participaram do mapeamento: para se ter uma ideia, as quatro principais emissoras de TV, juntas, tinham 71% da audiência. E isso sem contar a propriedade cruzada, ou seja, o fato de esses principais grupos econômicos e políticos serem proprietários de diversos canais, em diferentes mídias, como jornais e revistas impressos, emissoras de rádio e TV, editoras, canais de TV fechada e até gravadoras.
Nesse cenário, democratizar a comunicação significa, principalmente, regular as empresas que recebem concessões do Estado para veicular conteúdo em rádio e TV, adotando medidas que permitam que na programação prevaleça o interesse público coletivo, que se valorize o caráter educativo desses meios e que não se use esses canais para quaisquer tipos de violação de direitos. Mas não só: fazer com que o funcionamento da mídia e seu impacto na sociedade sejam mais democráticos significa também abrir espaço para que mais grupos e segmentos da população tenham voz, produzindo e disseminando outros conteúdos, perspectivas e linguagens. O problema, na avaliação de Luiz Felipe Stevanim, é que na trajetória dos movimentos sociais da área, esse debate acabou se “afunilando” para um aspecto quase puramente regulatório, ou seja, de “construção de leis para regular a comunicação”. Embora fundamental – até porque o vazio legal permanece –, ele considera que essa abordagem acaba muitas vezes limitando essa discussão a especialistas, sem atingir o conjunto da população. “As pessoas não se dão conta do quanto isso é determinante para a saúde, a educação, a cidadania”, lamenta, defendendo que “a principal questão da comunicação hoje” deveria ser garantir que “os diferentes grupos que formam o tecido social brasileiro” possam “falar por eles mesmos”. “É a bandeira das vozes não hegemônicas, das populações de favela, populações indígenas, populações ribeirinhas, quilombolas, rurais, pobres”, ilustra.
Por um lado, o editor da Radis ressalta a importância de instituições públicas, universidades, escolas e outros tipos de entidades “se abrirem” ao debate social mais amplo, incorporando outros atores que, de forma mais ou menos organizada, estão por aí fazendo comunicação popular. Por outro, a luta para que mais vozes tenham o direito à fala e para que a população tenha acesso a uma maior diversidade de visões, perspectivas e experiências passa também por uma dimensão regulatória, na medida em que a sobrevivência e a consolidação dessas iniciativas dependem de recursos que esses grupos, em geral, não têm. Maria José Braga, inclusive, destaca a Lei 9.612, de 1998, que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária no Brasil, como um exemplo de conquista, ainda que restrita, dos movimentos sociais que se organizam desde a Constituinte em torno dessa pauta. Trata-se da legislação que autoriza e define parâmetros para que entidades sem fins lucrativos possam ter a outorga de rádios ou TVs locais. Hoje, o país tem cerca de 4,5 mil rádios comunitárias, mas os principais obstáculos permanecem, entre eles a limitação da potência (a 25 watts) e do alcance (a 1 km) e a proibição de veiculação de publicidade – podem receber apenas “apoio cultural” –, num cenário em que não se conseguiu promover políticas de financiamento público que garantam a sustentabilidade desses canais.
A principal conquista apontada na pauta de fomento à produção de conteúdos ‘alternativos’ e independentes foi a criação do Fundo Setorial do Audiovisual que, no entanto, como pondera Bia Barbosa, é voltado muito mais para conteúdos de exibição nos cinemas do que nos “meios de comunicação cotidianos da vida das pessoas”. Neste momento, a Fenaj está defendendo uma iniciativa semelhante voltada para a produção e disseminação de informações e notícias. Com apoio do FNDC, segundo Maria José Braga, a entidade elaborou uma proposta de Projeto de Lei, ainda não assumida por nenhum parlamentar, que garante financiamento público para o jornalismo. “Assim como a gente conseguiu lá atrás incrementar a produção cultural brasileira, a gente entende que precisa de financiamento público para o jornalismo para fomentar a produção, a diversidade, a pluralidade e, obviamente, a regionalização da produção”, explica. A ideia é criar uma Contribuição sobre Intervenção do Domínio Econômico (Cide), um tipo de tributo que incide sobre um setor específico e que, nesse caso, seria cobrado das grandes plataformas digitais que atuam no país, para financiar a produção dos ‘pequenos’, por meio de um fundo público.
Se não tem sido fácil garantir a pluralidade de vozes nem por meio de iniciativas locais, o sonho de se ter no Brasil um canal de abrangência massiva que diversificasse a programação e o enfoque das notícias em relação aos canais empresariais também não se concretizou, embora alguns passos tenham sido dados. Bia Barbosa cita a criação da EBC, a Empresa Brasil de Comunicação, que tem na TV Brasil sua principal emissora, como um avanço concreto no fomento à diversidade nos meios de comunicação no país. Mas ela ressalta que, também aqui, trata-se de uma conquista relativa. “A EBC tem uma relevância temática. É hoje a única televisão aberta, por exemplo, que ainda passa desenho para crianças, porque tudo isso migrou para o universo do sistema de TV por assinatura”, ilustra, complementando que, por ser pública, ela é também a emissora que “dá maior vazão e espaço para a exibição de filmes e produções nacionais” e que garante programas “que tratam de todas as nossas diversidades religiosas, regionais, de gênero e de raça”. “A EBC é muito relevante nesse sentido, mas quando você olha a população brasileira que está se informando pela TV Brasil ou pelas emissoras de rádio da EBC, ainda é um universo pequeno em relação à proporção da sociedade que se informa pelos meios tradicionais”, analisa. E compara: “A EBC chega num mercado extremamente concentrado, que já tem uma audiência extremamente cativada pela sociedade. É completamente diferente do que aconteceu na Europa, em que os meios de comunicação eram públicos e foram privatizados, e até hoje, depois de 40 anos da privatização da radiodifusão europeia, você tem os meios de comunicação públicos na fidelidade da audiência da população”.
Regulação independente, pluralidade e diversidade: coisas do passado?
“O mundo da comunicação se transformou de uma forma tão radical que eu acho que para as novas gerações, e mesmo para uma pessoa como eu, que viveu aquele período e está vivendo hoje, é um exercício voltar àquela época e compreender, de fato, o que estava em jogo”. A frase é de Venício de Lima, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), e refere-se ao momento da Constituinte, em que as principais propostas para democratizar a comunicação como parte da transição democrática do país foram discutidas. Lima foi assessor da deputada Cristina Tavares (MDB), que produziu o relatório sobre o capítulo da comunicação social na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, e do deputado Artur da Távola (MDB), que foi relator da Comissão da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da comunicação, ambas na Constituinte. “Naquele momento, a estrutura de poder da comunicação no Brasil era muito evidente. As organizações Globo eram um poder enorme, que historicamente tinha ramificações no Legislativo, no Poder Executivo, no Ministério das Comunicações... Um poder muito cioso da influência que exercia e que não queria ceder em nada”, resume, explicando também que, do outro lado desse ‘cabo de guerra’, havia organizações sindicais “muito fortes” lutando pela democratização da comunicação. O destaque na época era a Federação Nacional dos Jornalistas, que foi a principal articuladora da Frente Nacional pela Democratização da Comunicação, e apresentou, junto com a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), duas outras organizações sindicais, uma emenda popular com proposta de texto para o capítulo da Constituição.
Mas pelo que se lutava, afinal? Parece consenso entre os entrevistados desta reportagem que a principal ‘bandeira’ daquele momento era a criação de um Conselho de Comunicação Social. A ideia era instituir uma entidade autônoma, com representantes de diferentes segmentos da sociedade civil, incluindo empresários e sindicatos, desvinculada do governo e do parlamento, que fosse responsável, entre outras coisas, por regular as concessões públicas das emissoras de radiodifusão. De acordo com Venício de Lima, a experiência que os pesquisadores e movimentos sociais da época tinham como principal modelo para a proposta apresentada pela deputada Cristina Tavares no primeiro anteprojeto, era a Federal Communications Commission (FCC) norte-americana, que regulava os setores de telecomunicações e radiodifusão.
A Constituição de fato previu a criação de Conselho Nacional de Comunicação, mas concebido como “órgão auxiliar” do Congresso Nacional, sem qualquer autonomia. Além disso, as concessões de emissoras de rádio e TV, cuja regulação seria a principal tarefa desse órgão de acordo com o desenho proposto pelos movimentos sociais, ficaram como responsabilidade compartilhada entre a presidência da República e o Congresso Nacional. Não por acaso, esse foi o único artigo do capítulo da Comunicação na Constituição que foi regulamentado depois, por meio da Lei 8.389/1991. “A gente teve uma vitória parcial, que foi a inclusão de um capítulo da comunicação na Constituição brasileira, mas sofreu uma derrota, que foi não conseguir a criação de uma instância deliberativa, democrática, com participação social para as comunicações”, lamenta Braga.
“A maioria dos componentes da subcomissão que discutiu a questão de comunicação [na Constituinte] era diretamente ou indiretamente ligada a concessões de rádio e televisão”
Venício de Lima
Distribuídos em diferentes propostas, os objetivos que orientavam as demandas pela democratização da comunicação naquele momento – e ainda hoje – eram a garantia de maior pluralidade e diversidade nos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa que eram concessões públicas. “Quando você fala em democratizar, fala em garantir que mais vozes ocupem esse espaço, tanto do ponto de vista de linguagens diferentes, como do ponto de vista de lugares a partir de onde essas vozes poderiam se expressar”, resume Bia Barbosa, explicando que originalmente o foco era promover a diversidade regional e que, com o tempo, a isso se somou a preocupação com a diversidade de raça, sexual e em relação às pessoas com deficiência. A questão é que essa mudança atingia diretamente alguns interesses poderosos na medida em que denunciava e tentava reverter a concentração desses meios que, há décadas, estavam nas mãos de poucos grupos econômicos e políticos. Desde sempre, portanto, houve reação. “A maioria dos componentes da subcomissão que discutiu a questão de comunicação [na Constituinte] era diretamente ou indiretamente ligada a concessões de rádio e televisão”, conta Venício de Lima, mostrando como, já na largada do processo de redemocratização brasileiro, manifestava-se o que o ele considera uma “anomalia” que até hoje não foi resolvida: o fato de parlamentares serem concessionários de emissoras de rádio e TV.
O artigo 54 da Constituição proíbe que deputados e senadores sejam “proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público”, o que é precisamente o caso de canais que dependem da concessão do Estado. Mas o fato de não existir controle público, que produza de forma transparente, por exemplo, uma lista atualizada de todos os concessionários de rádio e TV no Brasil, e a existência de ‘laranjas’ que assumem os postos em nome de quem exerce cargo político, faz com que também essa determinação tenha se tornado praticamente letra morta.
O último levantamento feito pelo Coletivo Intervozes, em 2022, ano de eleições, cobrindo apenas 14 dos 26 estados brasileiros, identificou 45 candidatos aos mais variados cargos que eram proprietários de canais de rádio ou TV. O relatório chama atenção, por exemplo, para a situação da Bahia, onde, desde a década de 1970, a família Magalhães concentra um verdadeiro conglomerado empresarial, que envolve diferentes veículos de mídia. Para quem, por pouca idade ou pouca memória, tem dificuldade de juntar o nome à pessoa, trata-se da família de Antônio Carlos Magalhães, liderança do antigo PFL (Partido da Frente Liberal), que se tornou o DEM (Democratas) e hoje é o União Brasil. Conhecido como ACM, ele foi diversas vezes governador do estado e ministro das comunicações. E para que não reste dúvidas de que o cenário comunicacional brasileiro atual é herdeiro dos problemas não resolvidos no passado, Venício de Lima lembra como esse político baiano – que faleceu em 2007 mas deixou descendentes na política, como o atual vice-presidente do União Brasil, ACM Neto – já era protagonista da defesa dos interesses empresariais e políticos nessa área desde a Constituinte. “O grupo da comunicação [na subcomissão] era ‘coordenado’ externamente. Por exemplo, Antônio Carlos Magalhães, que era, à época, ministro das comunicações do [então presidente José] Sarney, tinha um irmão que era deputado federal e compunha a subcomissão. Todo mundo sabia que havia um contato entre eles que, além de serem irmãos, tinham os mesmos interesses: eram ligados à Globo, ao Roberto Marinho... Então, era uma disputa impossível”, conta.
Luta sem fim
Ao longo desses 40 anos, a luta contra todo tipo de regulação nunca deixou de ser travada pelos empresários da comunicação no Brasil. “A bancada da radiodifusão sempre foi uma das mais fortes [no parlamento] e até gente de esquerda tinha medo de entrar nessa luta com medo de desaparecer da mídia”, diz Murtinho. Mas a briga se dava também em outras arenas. O debate sobre a comunicação voltou a ganhar força a partir do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, quando o jornalista Franklin Martins foi ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) e passou a defender a regulação da mídia. E o que não faltou foram editoriais dos grandes jornais caracterizando como censura qualquer proposta que se discutisse sobre o tema, apesar das vastas experiências internacionais de países democráticos que têm mecanismos e instituições para regulação da comunicação, como Estados Unidos e Inglaterra.
E, pelo menos até agora, eles têm levado a melhor. No balanço geral dos entrevistados desta reportagem, mais de 15 anos de governos do Partido dos Trabalhadores (PT) praticamente não trouxeram conquistas nas pautas relacionadas à democratização e ao direito à comunicação. “Não conseguimos avançar sequer no processo regulatório, por menor que seja: nem na publicidade, nem nas concessões do sistema de radiodifusão... Nem com a entrada da TV digital a gente conseguiu ampliar essa diversidade: a gente acabou ficando ali na ‘rabeira’ com o canal Educação, canal Saúde junto com a TV Brasil, onde tem multiprogramação, enquanto, por outro lado, teve a entrada de não sei quantas TVs católicas e evangélicas”, critica Murtinho. Stevanim considera que “não houve avanços estruturais e significativos”, mas que “foi possível ocupar alguns espaços e trazer alguns debates, questões, avanços, legislações pontuais”. Ele se refere, por exemplo, ao fato de, num período em que o Ministério das Comunicações estava mais próximo dos interesses da radiodifusão, as discussões iniciais sobre uma TV pública que depois viria resultar na criação da EBC terem encontrado espaço no Ministério da Cultura, na época ocupado por Gilberto Gil.
As dificuldades, no entanto, não ficaram nos governos passados: Bia Barbosa destaca uma iniciativa da atual gestão que ela caracteriza como um verdadeiro “retrocesso” em relação a um dos pontos centrais das lutas históricas do setor. Trata-se da Lei nº 7/2023, sancionada pelo presidente Lula no primeiro ano deste mandato, que amplia o número de outorgas que os concessionários de serviços de radiodifusão podem ter. “Hoje as regras mínimas de barreiras para uma concentração ainda maior, que existiam a partir do Código Brasileiro de Telecomunicações e das legislações gerais do setor, foram derrubadas”, denuncia.
Também com ressalvas, Maria José Braga aponta “dois únicos avanços” conquistados pelos governos de esquerda na área: a convocação da 1ª (e única) Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, e a criação da EBC, em 2007, como estratégia de fortalecimento do sistema público de comunicação. “Não resolveram o problema efetivo, mas foram conquistas”, opina, ressaltando que elas não foram “nenhuma concessão de um governo progressista” e sim “[resultado de] muita pressão do movimento social”. Ela lamenta, no entanto, que o governo nunca tenha tirado do papel as mais de 700 propostas aprovadas na Conferência.
Bia Barbosa confirma o cenário de esperança que a convocação da Confecom gerou – os empresários de radiodifusão, inclusive, se recusaram a participar do evento. “A gente teve ali uma relevância do tema no debate público, mobilizando mais de 30 mil pessoas em conferências municipais e estaduais. Ali a gente tinha uma sinalização de que a comunicação talvez pudesse começar a ser tratada a partir da perspectiva do direito. Mas no cenário de desestabilização política do governo Dilma [Rousseff], principalmente na transição do primeiro para o segundo governo, isso desmorona completamente. Aí vêm o golpe e o governo Bolsonaro e a gente tem uma década quase de completa nulidade em relação a esse debate no governo federal e no Congresso Nacional”, lamenta. E completa: “Não é uma coincidência que esses temas desaparecem do debate público. Você tem as mobilizações do FNDC, várias agendas que continuam acontecendo, mas a pauta gira completamente para o universo da internet”.
Internet e redes sociais: mais avanços e novos riscos
O contexto a que a fala de Bia Barbosa faz referência se aproxima do momento da eleição presidencial de 2019, quando o fenômeno das chamadas Fake News e a disseminação de discursos de ódio pelas redes sociais invade o cenário político brasileiro. Mundialmente, o problema já tinha ganhado atenção três anos antes, em 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Foi mais ou menos nesse período que o combate à desinformação, que passa pela regulação das plataformas digitais, se tornou pauta prioritária no campo da comunicação e do debate político. “O modelo de negócio dessas empresas tem trazido desafios à saúde pública, violações de direitos humanos, propagação de discurso de ódio e desinformação e ataques à nossa democracia”, resume a pesquisadora do Diracom.
“Nós não estamos nem falando da promoção de uma comunicação diversa, igualitária, plural, nada disso. Estamos querendo que não haja crimes, que as plataformas sejam responsabilizadas”
Luiz Felipe Stevanim
E aqui a menção ao “modelo de negócios” é fundamental para realçar a responsabilidade – e os ganhos – dessas empresas com a desinformação e a polarização política produzidas no ambiente das redes sociais. De forma muito resumida, pode-se dizer que a maior lucratividade dessas plataformas – Instagram, Facebook, YouTube, entre outras – depende de um verdadeiro círculo vicioso. Como vários estudos já demonstraram, conteúdos que envolvem polêmicas, denúncias, discursos de ódio e teorias da conspiração costumam gerar mais engajamento – likes, curtidas, compartilhamentos, comentários – nas redes sociais. E como é exatamente disso que as plataformas precisam, a cada vez que você reage a um determinado tipo de postagem, os algoritmos digitais sugerem outros semelhantes, num processo que reduz a diversidade dos conteúdos que chegam a cada usuário de forma personalizada, criando verdadeiras ‘bolhas’ em que só circulam as mesmas ideias, e, ao mesmo tempo, ampliando a reprodução da desinformação. “São necessários parâmetros mínimos democráticos para que uma empresa possa operar no Brasil e influenciar a opinião pública, a política, os hábitos, a vida, a maneira de ser e de se vestir”, defende Stevanim, que completa: “Nós não estamos nem falando da promoção de uma comunicação diversa, igualitária, plural, nada disso. Estamos querendo que não haja crimes, que as plataformas sejam responsabilizadas”. Alvo de muita polêmica, o PL 2.630 – aquele que está há dois anos parado na Câmara – dificilmente conseguirá ser votado na Câmara, na avaliação de Bia Barbosa. Até o momento em que esta reportagem foi finalizada, outros projetos – a exemplo do nº 2.628/2022, que trata especificamente da proteção a crianças no ambiente on line – já tramitavam no Congresso, mas nenhum tinha avançado ou ganhado destaque no debate público.
Por outro lado, avançou no legislativo um Projeto de Lei, nº 2.338/2023, que trata do uso da Inteligência Artificial (IA) no Brasil e, de certa forma, toca em questões que permanecem nesse vazio regulatório, mobilizando os movimentos da área. Bia Barbosa destaca, por exemplo, o fato de a versão atual do projeto tratar da “previsão de proteção à integridade da informação”, que pode ser um caminho para abordar a questão da desinformação. “A Inteligência Artificial tem condições de fazer essa desinformação circular de uma maneira muito mais rápida e com um impacto muito maior. Se você pensar em deepfake [manipulação de fotos, vídeos e áudios para produzir conteúdos falsos], vai ver o quanto essa tecnologia tem a possibilidade de causar um estrago mais danoso ainda do ponto de vista de gerar interpretações equivocadas na sociedade”, diz. Mas também aqui a batalha promete ser dura: segundo a jornalista, a pressão das empresas que controlam as plataformas está acontecendo e já conseguiu, por exemplo, retirar do texto atual a classificação que considerava como de “alto risco” os sistemas de inteligência artificial usados para moderar e recomendar conteúdos nas redes sociais.
Entre as pautas mais “modernas”, a “grande conquista”, na avaliação de Rodrigo Murtinho, foi o Marco Civil da Internet, a lei nº 12.965, de 2014, que, segundo ele, se tornou “referência internacional”. Apesar disso, um dos pontos mais importantes defendidos pelos movimentos sociais, a neutralidade da rede, simplesmente não ‘pegou’. Falar em neutralidade no caso da internet significa que, quando você contrata um plano, nenhuma motivação econômica ou política, por exemplo, poderá definir privilégios ou obstáculos para os dados transmitidos. Se você chegou até este ponto da reportagem, o exemplo vai lhe parecer ‘familiar’: o ‘zero rating’, aquele mecanismo que permite acesso a redes sociais mesmo quando o celular não tem dados móveis, é um caso típico de privilegiamento que fere essa determinação legal. “A neutralidade de rede não foi efetivada”, reconhece Murtinho.
Informações públicas, dados pessoais
Alvo de menos disputas com grupos empresariais, já que foca na transparência dos governos, a Lei de Acesso à Informação (LAI), publicada em 2011, é um exemplo de pauta dos movimentos sociais da comunicação que tem gerado bons resultados, embora, como aponta Rodrigo Murtinho, permaneça o desafio de garantir que, além do Executivo federal, as gestões municipais e estaduais também consigam cumpri-la. Sancionada em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), nº 13.709, de 2018, é outro avanço apontado pelos entrevistados na pauta contemporânea da comunicação. É essa legislação, segundo Murtinho, que “consagra a ideia de privacidade como um direito” – pouco depois, em 2022, a Emenda Constitucional nº 115 inseriu a proteção dos dados como um dos direitos fundamentais listados na Carta Magna. Mas isso não quer dizer que não haja queda de braço. Ao contrário – e aqui o setor privado da saúde tem tido papel fundamental.
"A comunicação, a informação e, fortemente, os dados estão hoje no centro do processo de reprodução do capital”
Rodrigo Murtinho
A disputa pelos nossos dados tem sido uma prática tão cotidiana que rapidamente você vai se reconhecer como parte dela. Com o argumento de facilitar a vida dos usuários, alguns aparelhos utilizados hoje para medir taxas como a glicose, por exemplo, são conectados à internet e transmitem os dados coletados diretamente para o médico que os acompanha. “Mas a empresa que fabrica esses aparelhos recebe esses dados também”, alerta Murtinho. Outro mecanismo, ainda mais comum, de coleta e uso de dados pessoais para interesses privados são os programas de fidelidade, muitas vezes compartilhados por empresas de diferentes setores. Um exemplo é a plataforma chamada Stix, utilizada por grandes grupos econômicos ligados ao setor bancário, de farmácia e supermercado, entre outros. Funciona assim: quando você fornece seu CPF para conseguir um desconto na drogaria, as informações sobre os medicamentos que você toma com mais ou menos frequência são transmitidas para um mesmo ‘banco de dados’ que terá também registros, por exemplo, sobre se você costuma comprar muito doce ou bebida alcóolica no mercado. Com o cruzamento desses e muitos outros dados que cada um de nós entrega ‘voluntariamente’, é possível traçar perfis de consumo que permitem tanto direcionar propagandas de produtos e serviços como criar restrições ou obstáculos para a oferta – por exemplo, da parte de uma empresa de plano de saúde. “A ascensão do neoliberalismo e do desenvolvimento tecnológico criam uma base concreta do desenvolvimento do capitalismo global que coloca a questão da informação e da comunicação, que já eram fundamentais, em outro patamar. A comunicação, a informação e, fortemente, os dados estão hoje no centro do processo de reprodução do capital”, conclui Murtinho.