Em dezembro do ano passado foram divulgados os resultados de uma pesquisa chamada Epicovid 2.0, que avaliou os impactos da recente crise sanitária mundial no país. E um dos dados apresentados pelo estudo mostra que 27,3% dos participantes desconfiavam da vacina contra a covid-19. Entre os que não se vacinaram, 32,4% afirmaram não acreditar no imunizante, enquanto 31% achavam que ele fazia mal à saúde. Para completar, um contingente menor, de 0,5%, simplesmente achava que o novo coronavírus não existia. O cenário retratado pela pesquisa é o mesmo que fez com que, no relatório da 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2023, várias propostas apontassem a necessidade de se combater a desinformação. Foi a primeira vez que as Fake News e suas variações ganharam espaço num encontro como esse, mas muitos outros problemas que compõem a pauta de reivindicação dos movimentos sociais da comunicação vêm sendo denunciados pelas instâncias de controle social do campo da Saúde há décadas.
Proibir ou regular a propaganda de medicamentos, alimentos e bebidas alcóolicas, garantir acesso público à produção científica financiada com recursos do Estado, exigir transparência dos governos sobre suas ações, universalizar a internet banda larga de qualidade e fortalecer as mídias comunitárias e populares são apenas alguns exemplos de propostas que constam de relatórios das dez conferências nacionais de saúde realizadas desde o fim da ditadura até hoje no país. Isso sem contar as duas conferências livres convocadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 2017 e 2023 especificamente para discutir Comunicação em Saúde. “É preciso lutar por espaços de comunicação para que o SUS [Sistema Único de Saúde] se fortaleça, pois se a comunicação não se tornar democrática, o SUS não avança também”, diz o texto final da primeira.
As pautas da comunicação na saúde
Um passeio pelos relatórios das conferências nacionais de saúde mostra as diferentes preocupações que, ao longo desse tempo, os militantes da área manifestaram em relação à comunicação. Na histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, pouco se falou em comunicação propriamente, embora ali já se anunciasse claramente a necessidade de “proibir a propaganda comercial de medicamentos e produtos nocivos à saúde” e defendesse a realização de uma campanha nacional em defesa do direito universal à saúde. Em 1992, com o SUS ‘engatinhando’, a 9ª Conferência Nacional de Saúde começou a atentar para a importância da mídia na disseminação das informações que chegavam à população, e o que parece mais importante no texto final desse encontro é a busca de estratégias para que a população passasse a conhecer o sistema de saúde recém-criado.
Quatro anos depois, na 10ª Conferência, discutiu-se a importância dos sistemas de informação para o SUS. Naquele momento o controle social destacou também a importância de campanhas educativas sobre as situações de saúde e sugeriu que se aproveitassem canais como as contas de luz, as reuniões em igrejas e outros espaços de mobilização popular para fornecer informações de serviços sobre direitos e deveres dos usuários. Ao mesmo tempo, o relatório reforça a importância de que as decisões tomadas naquele espaço de participação social das conferências cheguem até o conjunto da população e reconhece que, para isso acontecer, é preciso contar com a mídia de massa.
A falta de estrutura de comunicação dos conselhos de saúde é destacada no texto final da 11ª, que aconteceu em 2000. E o principal caminho apontado para reversão desse cenário são as “lutas pelo acesso e legalização das rádios comunitárias, jornais, TV e outros meios que possam prestar informações e assegurar a expressão da população”. A necessidade de fazer com que a população conheça o SUS permanece um problema apontado na 12ª Conferência, realizada em 2004, que propõe a criação de um canal de TV aberto nacional para questões de saúde, a implantação de TVs e rádios comunitárias com programação voltadas para temas da área e uma política de comunicação específica para veículos comunitários, em articulação com os conselhos de saúde. Também aqui se volta a tratar da importância do controle da propaganda de produtos que têm impacto sobre as condições de saúde, como cigarro e bebidas alcóolicas. Essa preocupação se repete na 13ª, que também propõe a realização de campanhas de divulgação sobre os aspectos positivos do SUS, a partir de uma percepção de que sua abordagem na mídia hegemônica era principalmente negativa. Saiu do encontro ainda a orientação de que a reserva de espaço para divulgação do SUS se tornasse uma exigência para a concessão pública de canais de rádio e TV. Na 14ª, volta à carga a importância de se divulgar o papel dos conselhos, o controle da propaganda de medicamentos e bebidas alcóolicas e a proposta de criação de um canal de rádio e TV específicos para a saúde.
Atravessada pela notícia de que o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha tinha aceitado o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a 15ª Conferência tem um relatório mais enxuto, que ressalta a importância da divulgação do conhecimento científico e de experiências exitosas e da defesa do SUS através da mídia e de meios comunitários. A 16ª foca no fortalecimento da capacidade de participação da sociedade nas políticas públicas, com propostas voltadas à maior transparência e campanhas publicitárias sobre o SUS e os direitos dos usuários. Na 17º, realizada em 2023, a novidade foi o foco no combate à desinformação e a proposta de se construir uma Política Nacional de Comunicação Pública para o SUS.
Comunicação para a Reforma Sanitária
Toda essa trajetória mostra a clareza do movimento sanitário de que a comunicação era fundamental para conquistar e promover as mudanças que se queria na saúde brasileira. E essa constatação, que é anterior mesmo à criação do SUS, fez com que ao longo desse tempo fossem desenvolvidas também diversas experiências de comunicação e saúde.
Foi ainda no início da década de 1980 que nasceu, por exemplo, o Programa Radis, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz, hoje responsável por uma revista impressa com tiragem de mais de 113 mil exemplares distribuídos pelo Brasil inteiro. Em 1982 foram lançadas as primeiras publicações do programa, com o objetivo principal de, segundo o coordenador Rogério Lannes, manter os alunos egressos dos cursos da ENSP, que vinham do país inteiro, informados sobre o que saía na imprensa relacionado ao campo da saúde. Mas, já naquele momento, a “curadoria” desses conteúdos era orientada por um conceito ampliado de saúde. Em 1986, durante a gestão do sanitarista Sergio Arouca à frente da Fiocruz, se deu o começo de uma “guinada”. Em março aconteceria a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que entrou para a História como um momento auge de mobilização em torno das pautas da saúde. E o principal papel das iniciativas tocadas pelo programa Radis passou a ser, segundo Lannes, “convocar e repercutir” o que acontecia nesse encontro, incluindo os trabalhos da Comissão Nacional da Reforma Sanitária, instituída após a conferência para organizar as propostas que deveriam subsidiar a Assembleia Nacional Constituinte em relação ao tema da saúde. A partir daí, diz, o programa assumiu claramente o papel de porta-voz do movimento social da saúde, criando, inclusive, em 1987, uma publicação (chamada Proposta) que se autointitulava ‘jornal da Reforma Sanitária’. Com formato e linguagem mais jornalísticos, sua principal tarefa, naquele momento, foi ‘cobrir’ os bastidores da Constituinte de modo que os movimentos sociais soubessem os pontos de vista que eram debatidos ali a tempo de pressionar os parlamentares. “Era a informação que chegava mais rápido porque a [grande] imprensa não cobria [os assuntos relacionados à comissão de ordem social]”, conta Lannes, explicando que, em relação à constituinte, a mídia empresarial estava mais focada nas discussões da comissão de ordem econômica, que discutia temas como o papel do Estado, a propriedade privada, a reforma agrária e a desregulamentação de setores como petróleo e gás.
Sinal dos tempos, foi nessa mesma época que nasceu outro projeto de comunicação e saúde, dessa vez focado no audiovisual. Aurea Pitta, pesquisadora aposentada do Instituto de Comunicação em Informação e Comunicação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), da Fiocruz, trabalhava como bióloga e locutora quando foi tocada pelos debates da 8ª Conferência Nacional de Saúde num encontro de sindicalistas, em que lideranças do Conselho Regional de Medicina falaram sobre a expectativa que havia em torno daquele encontro. “Eu também fiquei muito entusiasmada”, conta.
Na Fiocruz, ela e outros profissionais passaram a desenvolver um projeto de produção e distribuição de conteúdos de audiovisual que também existe até hoje: a Vídeo Saúde. O trabalho começou com um mapeamento do acervo que já existia na Fiocruz. Depois vieram as primeiras produções próprias, mas o salto, na avaliação de Pitta, se deu quando o processo furou os muros da instituição. “Eu acho que o projeto da Vídeo Saúde mesmo surgiu quando começamos a captar vídeos a partir não só de contato com produtores externos, mas também fazendo a organização das mostras de vídeo”, explica, referindo-se a editais de seleção e exposição de experiências audiovisuais que, já naquele momento, contavam com produções de secretarias de saúde, movimentos sociais e outros coletivos. “As mostras traziam as outras vozes, que estão fora das instituições de Estado. Elas davam a tão desejada polifonia a um projeto de comunicação pública”, analisa, lançando já a concepção que marcaria as experiências comunicacionais na saúde ao longo dos anos seguintes.
A partir de 1994, parte do conteúdo da produtora chegou à TV, por meio de uma nova frente de atuação da Fiocruz no campo da comunicação: o Canal Saúde, criado a partir, principalmente, das provocações trazidas pela 9ª Conferência Nacional de Saúde, realizada dois anos antes, que destacava a importância de permitir que a população conhecesse o SUS. Depois de completar 30 anos, em 2024, hoje o Canal pode ser assistido pela televisão aberta no Rio, Brasília e em São Paulo, como parte da multiprogramação da TV Brasil. Os conteúdos da emissora – compostos atualmente por dez programas – podem ser acessados também por antena parabólica com recepção digital e pela Web, além de algumas produções serem ainda retransmitidas por canais educativos, universitários ou comunitários.
“Planejar não pode ser monopólio do Estado. Qualquer força social luta por objetivos próprios e está em capacidade de fazer um cálculo que precede e preside as ações institucionais"
Áurea Pitta
Mas no tempo em que tudo isso mal passava de desejo, Áurea Pitta conta que, embora todos estivessem “antenados” com os debates sobre o conceito ampliado de saúde e com as lutas pelos rumos da democracia, faltava fazer uma “descoberta”: “que comunicação seria essa?”. Foi influenciada pelas concepções de planejamento estratégico-situacional do economista chileno Carlos Matus que Pitta atentou para o fato de que todo o movimento de desconcentração e descentralização do poder que tentava se promover no país e no SUS deveria se refletir também no planejamento e nas decisões sobre os problemas de saúde – e que isso tinha diretamente a ver com a comunicação. “Planejar não pode ser monopólio do Estado. Qualquer força social luta por objetivos próprios e está em capacidade de fazer um cálculo que precede e preside as ações institucionais”, diz. Ela ilustra: “Se tem um problema de saúde num município X, pneumonia ou bronquite, por exemplo, não adianta você fazer um planejamento de saúde dizendo que vamos tratar a pneumonia. Isso é óbvio. Mas você tem que explicar esse problema situacionalmente, naquele local, procurar a origem, seus determinantes sociais e políticos”, explica. E completa: “Se não tiver uma comunicação pública em que várias vozes concorram para explicar um problema de determinação social da saúde e da doença, você não consegue ir lutando contra aquele problema ao longo do tempo”.
Comunicação Pública
Legalmente, a ideia de uma comunicação pública que vá além do caráter estatal está prevista na Constituição, no artigo 223, que fala da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Com o objetivo de garantir estruturas de comunicação que fossem geridas de forma participativa, a partir de instâncias colegiadas compostas por representantes de segmentos da sociedade civil, o texto constitucional referia-se especificamente à radiodifusão. Apesar disso, ao longo do tempo, outras iniciativas de comunicação pública setoriais foram sendo experimentadas, principalmente no campo da saúde, que tem lançado mão dos mais diversos meios e formatos para garantir o direito à comunicação.
“A sobrevivência de revistas como a Poli e a Radis, não só pelas suas questões editoriais, mas pelo formato [impresso], pela complementariedade que fazem com o audiovisual e outras formas, é essencial para que as pessoas e as coletividades possam ter opção em graus crescente de aprofundamento [dos conteúdos]. Porque o império das redes sociais e do tamanho [reduzido] dos textos, a restrição de aprofundamento são também uma forma de você emudecer ou não oferecer os elementos para as pessoas fazerem reflexões mais profundas sobre o que acontece na realidade”
Rogério Lannes
Passados exatos 20 anos da Constituição Federal, num tempo em que as atenções já se voltavam para a internet e as redes sociais, nasceu, ainda no âmbito da Fiocruz, uma nova iniciativa jornalística que também se orientava editorialmente pelo conceito ampliado de saúde mas dava destaque a pautas – e a um público – de outras duas áreas de políticas públicas: a educação e o trabalho. Trata-se desta Revista Poli que você tem em mãos, editada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que hoje está na sua 100ª edição. Definindo sua prática como “jornalismo público”, no editorial do seu número de lançamento, em 2008, a Poli defende que “a participação social precisa se dar para além dos espaços institucionalizados pelo SUS” e concebe a comunicação como um “caminho que deve não só ‘informar’ a sociedade sobre o que se passa em determinado campo mas também propiciar espaços de debate e construção coletiva e democrática”. “A sobrevivência de revistas como a Poli e a Radis, não só pelas suas questões editoriais, mas pelo formato [impresso], pela complementariedade que fazem com o audiovisual e outras formas, é essencial para que as pessoas e as coletividades possam ter opção em graus crescente de aprofundamento [dos conteúdos]. Porque o império das redes sociais e do tamanho [reduzido] dos textos, a restrição de aprofundamento são também uma forma de você emudecer ou não oferecer os elementos para as pessoas fazerem reflexões mais profundas sobre o que acontece na realidade”, defende Rogério Lannes.
Depois de anos de experiência e reflexão sobre todas essas práticas, em 2016 a Fiocruz lançou uma Política de Comunicação, que se baseia na defesa de uma “comunicação pública”. O texto atribui à herança do movimento sanitário uma “cultura do jornalismo crítico e independente e da comunicação pública, que acolhe a diversidade de vozes e promove reflexões e discussões em torno da construção e defesa do SUS e dos direitos sociais”. Define a comunicação pública como aquela que se dá no “compartilhamento, negociações, conflitos e acordos na busca do atendimento de interesses referentes a temas de relevância coletiva”, esforços que todos os veículos citados nesta reportagem fazem no seu dia a dia. “É a ideia de uma comunicação estatal mais aberta à sociedade civil, mais sensível à pluralidade, à liberdade de expressão e à circulação de ideias diferentes dentro dos seus meios”, resume o diretor do Icict/Fiocruz Rodrigo Murtinho.
Fora do Estado: comunicação ‘alternativa’ em Saúde
A importância de se pautar uma perspectiva pública e coletiva de saúde, coerente com os princípios da Reforma Sanitária, gerou também outros frutos, além dos espaços das instituições de Estado. Foi por entender que “a cobertura da mídia comercial de saúde é muito focada em bem-estar, de um ponto de vista individualista, ou pautada na defesa da saúde privada” que, de acordo Gabriela Leite, surgiram o boletim e o site ‘Outra Saúde’, que integram um projeto maior, chamado Outras Palavras. De acordo com sua editora, o boletim hoje tem mais de 10 mil assinantes, a maior parte formada por gestores, trabalhadores e pesquisadores da saúde pública – e a opção por um tipo de conteúdo que chega principalmente na forma de uma newsletter teve, também o objetivo de burlar os filtros dos algoritmos digitais, levando as informações diárias diretamente aos leitores “Outra Saúde tem enfoque crítico e comprometido com o SUS e a Saúde Coletiva”, resume Leite.
Embora sua especialidade seja a cobertura de “sistemas alimentares”, outra experiência que com regularidade aborda temas relacionados à saúde é o projeto ‘Joio e o Trigo’, que produz conteúdos em diferentes mídias. “Nossa cobertura tem um enfoque crítico ao capitalismo e às corporações. Quando olhamos para a produção de alimentos, o que nos interessa é o espaço cada vez maior que a produção de commodities vem ocupando no Brasil e o recuo da produção de alimentos típicos da nossa cultura alimentar, como o arroz e o feijão. Essa cobertura encontra diretamente a saúde várias vezes”, explica Maíra Mathias, jornalista do projeto, que exemplifica: “Abordamos aspectos regulatórios, como a rotulagem nutricional, o banimento das gorduras trans pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] ou debates e pesquisas científicas que mostram como o consumo de determinados produtos alimentícios tem consequências negativas para a saúde da população. Esse é o caso da classificação NOVA que criou o conceito de ultraprocessados e possibilitou um sem-número de estudos epidemiológicos. Abordamos ainda o uso massivo dos agrotóxicos no Brasil ou lobbies corporativos como o da Novo Nordisk [empresa farmacêutica] para ter medicamentos incorporados ao SUS”, conclui.