“Eu autorizo”. O lema, que acompanhou faixas e cartazes com pedidos de que as Forças Armadas voltassem ao poder por meio de uma intervenção militar, passou a ser recorrente nas manifestações de extrema-direita realizadas ao redor do país desde 2015. O medo de que “o Brasil se transforme em Cuba” e o discurso de combate à corrupção são dois dos principais argumentos que costumam motivar esse tipo de apelo, que no passado serviu para justificar a ditadura vivida entre 1964 e 1985.
Foi ainda em junho de 2013, quando os protestos contra o aumento das passagens foram encerrados, que começaram a aparecer novas demandas nas ruas, entre elas o pedido de intervenção militar. Essa defesa passou a ser mais frequente após surgirem as primeiras denúncias feitas pela Operação Lava Jato, que mais tarde tiveram parte de suas decisões anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por irregularidades na condução dos processos de investigação. Esse discurso ecoou ainda ao longo do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e passou a ser presença frequente nos atos públicos realizados pelo então presidente Jair Bolsonaro. As referências saudosas à ditadura se intensificaram à medida que as eleições presidenciais de 2022 se aproximavam, expressando-se nas manifestações nas ruas, que incluíram interrupção de rodovias e ocupação dos quartéis. Como se sabe, o ápice dessa movimentação se deu no dia 8 de janeiro, quando milhares de pessoas invadiram a Praça dos Três Poderes em Brasília, recusando o resultado das eleições que deram vitória a Luiz Inácio Lula da Silva e pedindo, exatamente, intervenção militar. Na ocasião, de acordo com a página do Supremo Tribunal Federal 1.927 pessoas foram conduzidas à Academia Nacional de Polícia, das quais 1.152 passaram por audiência. Até o fechamento desta reportagem, 116 tinham sido condenadas por esses atos golpistas, segundo nota publicada na página do STF.
As declarações de apoio à ditadura não se limitaram a manifestantes. Em abril de 2019, o então ministro da Educação Ricardo Rodriguez anunciou a revisão dos livros didáticos para que deixassem de incluir os termos ‘Golpe de 64’ e ‘ditadura militar’, negando a existência do regime de exceção. Mais recentemente, em agosto de 2023, o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) elogiou a ditadura durante sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Diante da negativa do General Gonçalves Dias de falar sobre o período, Salles, então relator da Comissão já extinta, declarou: “É a primeira vez que um militar não defende a importante ação de 1964”. Segundo a historiadora Virgínia Fontes, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), manifestações de apoio à ditadura empresarial-militar não são novidade, ao contrário da existência de integrantes do Executivo expressando-se publicamente a favor do regime. “As Forças Armadas brasileiras continuaram fazendo, aberta ou discretamente, a comemoração do golpe empresarial-militar de 1964. A situação nova foi ter um presidente da República eleito, não só apoiando abertamente o golpe, mas fazendo o elogio à tortura”, diz. A referência é ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que, tanto na condição de parlamentar quanto depois, à frente do Executivo, acumulou frases e atitudes em defesa da ditadura. Em um dos episódios mais emblemáticos, ao votar pela saída de Dilma Rousseff da presidência, em abril de 2016, como deputado federal, ele citou o general e torturador Carlos Brilhante Ustra, chefe do Doi-Codi (Departamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna). “Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, declarou. Três meses depois, em entrevista à Rádio Jovem Pan, afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. Também ao longo do mandato como presidente, Bolsonaro protagonizou discursos elogiosos e negacionistas sobre o regime. “Quem esteve no governo naquela época fez a sua parte. O que seria do Brasil sem obras do governo militar? Não seria nada, seríamos uma republiqueta”, disse, por exemplo, durante um discurso no Palácio do Planalto, em 2022.
Apesar de todo esse cenário, pesquisas de opinião realizadas pelo Datafolha apontam que, em outubro de 2022, o apoio à ditadura atingia seu menor patamar desde 1989, quando alcançou 7%, enquanto a preferência pela democracia como regime era de 79%. Em dezembro de 2023, o apoio ao regime de exceção se manteve ao passo que o índice de pessoas que dizem não se importar se o regime é ditatorial ou democrático subiu de 11% para 15%. “Embora seja um segmento menor quantitativamente, ele tem um peso proporcional muito grande, porque ancora o movimento como um todo e é responsável por fazer o número de apoiadores da intervenção militar crescer em alguns períodos, como nos eleitorais”, diz Letícia Cesarino, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E há quem tente dar um tom de legalidade ao pedido de intervenção militar. Uma alegação comum nesse período recente é o de que a Constituição Federal, em seu artigo 142, afirma que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria” e à garantia da “lei da ordem”. O que o argumento esconde é que o texto deixa explícito que isso deve se dar “sob a autoridade suprema do Presidente da República” e “por iniciativa” dos demais “poderes constitucionais”. A interpretação, diz Letícia Cesarino, coloca as Forças Armadas como um poder moderador. “As pessoas [que defendem essa ideia] veem as Forças Armadas como estando acima dos três poderes e tendo essa conexão direta com a vontade popular presente nas palavras de ordem ‘eu autorizo’”, diz.
Ainda que seja possível apontar semelhanças, os entrevistados ouvidos por esta reportagem pedem cautela nas comparações entre passado e presente. “O elo que une os dois momentos é a crença de uma intervenção militar ‘saneadora’ na política, antiesquerdista e contra a elite política civil, considerada ‘corrupta’, fruto de uma mentalidade autoritária que atravessa o século 20 brasileiro”, resume o professor da Universidade de São Paulo (USP), Marcos Napolitano.
Conjuntura pré-golpe e apoio às Reformas de Base
Para entender melhor essa história, vale voltar quase 20 anos antes do golpe empresarial-militar. Entre 1945, ano do fim da Segunda Guerra Mundial, e o final da década de 1950, o país alcançava uma taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que variou entre 6,5% e 8% ao ano, de acordo com o IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mas esses bons índices não significaram uma vida sem dificuldades para os trabalhadores que, em 1953, vão massivamente às ruas na famosa ‘Greve dos 300 mil’, para demandar aumento salarial diante de uma alta desenfreada no preço dos alimentos. Foi para negociar o fim dessa greve, que conquistou 32% de reajuste salarial, que o então presidente Getúlio Vargas nomeou João Goulart como novo Ministro do Trabalho.
Já o começo da década de 1960 foi marcado pelo crescimento do desemprego, da inflação e pelo rebaixamento do salário-mínimo. “Isso se dava, sobretudo, porque o processo de industrialização voltado para o mercado interno, que era como a economia do país se organizava nos anos anteriores, tinha chegado ao seu limite”, explica Gilberto Calil, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Isso quer dizer que o país vivia uma queda da produção industrial, gerada pela redução dos investimentos estrangeiros – que não consideravam mais o mercado interno atrativo –, sem que o país tivesse capacidade de produzir para substituir as importações.
É em meio a essa crise que ocorrem as eleições de 1960. Naquela época, as votações para presidente e vice eram feitas de forma separada, o que levou a eleição de Jânio Quadros para o cargo mais alto do poder Executivo, enquanto João Goulart assume como vice. O presidente foi candidato pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), mas com o apoio do principal partido conservador, a União Democrática Nacional (UDN). Seu lema de campanha estava no famoso jingle “varre, varre, vassourinha, varre a corrupção”. Já João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), era apoiado por ‘herdeiros’ de Getúlio Vargas, morto em 1954, como Leonel Brizola.
Para a surpresa de todos, Quadros renuncia em agosto de 1961 – a interpretação mais comum na historiografia é de que ele apostou na expectativa de ser reconduzido ao cargo por aclamação popular, o que não ocorreu. Diante da iminência da posse de um candidato de oposição à maioria do Congresso, os parlamentares aprovaram às pressas uma mudança na Constituição, naquela época chamada de Ato Adicional. Assim, da noite para o dia foi instaurado no país o parlamentarismo e o Brasil ganhou a figura de um primeiro-ministro, Tancredo Neves. O plebiscito foi antecipado e realizado em 1963.
O resultado, informa o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi que oito em cada dez eleitores foram favoráveis ao presidencialismo. A campanha pelo “Não” – que significava a volta do presidencialismo – foi ampla e contou com apoio de todos os espectros políticos. “Prometendo às esquerdas as reformas de base, à burguesia a ‘ordem e a tranquilidade’, ao povo o ‘fim da crise social’ e aos cristãos um ‘governo cristão’, Goulart conquistou algo similar ao que seria sua própria e ‘verdadeira’ eleição presidencial”, escreve o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Demian Melo no artigo ‘O plebiscito de 6 de janeiro de 1963 na crise orgânica dos anos sessenta’. Para o pesquisador, aliás, essa é uma importante pista do amplo apoio social que Jango tinha para permanecer na presidência, contrariando o discurso de que o golpe atendia à vontade do povo.
As Reformas de Base prometidas por João Goulart eram a resposta do governo à crise econômica, buscando promover mudanças necessárias de um país em transição do rural para o urbano. As principais reformas propostas tinham como horizonte a ampliação do mercado interno de consumidores, com a diminuição da desigualdade do país. No centro, estava a Reforma Agrária, mas também estavam presentes a reforma fiscal, que incluía a taxação de remessa de lucros, bancária, administrativa e universitária.
Como vários historiadores registraram, para divulgar essas ideias, Jango rodava o Brasil em comícios, sendo um dos mais famosos o realizado em 13 de março na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, com cerca de 200 mil pessoas. E a presença massiva da população nesses atos pode ser apontada como outro dado para rechaçar o argumento frequentemente utilizado de que o golpe empresarial-militar foi uma demanda da maioria da população, que rejeitava a plataforma política de Jango. Mas há ainda uma outra evidência: de acordo com uma pesquisa realizada pelo Ibope na cidade de São Paulo, sob encomenda da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, entre os dias 20 a 30 de março de 1964, somente 7% dos entrevistados declararam que as reformas não eram necessárias. A principal variação se dava em relação ao tempo de realização: 40% consideraram que elas eram urgentes, enquanto 39% acreditavam que era possível fazer aos poucos. A mesma sondagem apontou que 70% dos entrevistados aprovavam o governo e que mais de 80% conheciam e 64% aprovavam as medidas recentemente tomadas pelo então presidente, entre elas o controle do preço dos aluguéis, a estatização de refinarias de petróleo privadas e a desapropriação de terras às margens de açudes, ferrovias e rodovias federais. Apenas 20% discordavam dessas iniciativas. As informações, baseadas em arquivos doados pelo próprio Ibope, estão disponíveis na edição 204 do Jornal da Unicamp.
No entanto, as Reformas de Base não eram consenso entre a classe política e empresarial do país. “[O golpe] se colocou em oposição ao conjunto de reformas [que eram] bastante tímidas, mas [visavam à] ampliação das bases do capitalismo brasileiro”, diz Calil. “Já o projeto colocado em prática [com o golpe] está relacionado à lógica do desenvolvimento associado dependente, da atração de capitais externos, da redução salarial, de um mercado de consumo que é basicamente voltado a uma pequena parcela da população com renda altamente concentrada”, completa.
O elo empresarial-militar
Ignorando – ou reagindo – a esse apoio popular ao governo de Jango, em 31 de março de 1964, o Exército brasileiro toma as ruas. Na sessão do dia seguinte no Senado, o presidente da Casa, Auro de Moura Andrade, decreta vacância do cargo, sob o argumento de que o presidente se ausentara sem comunicado oficial. Essa foi uma manobra que até o filme ‘Entre Armas e Livros’, da produtora Brasil Paralelo, um dos principais conteúdos revisionistas que circulam atualmente como esforço de melhorar a imagem da ditadura, reconhece “tecnicamente” como “golpe”, embora argumente que era uma medida necessária para salvar o país.
Foi publicado, então, o Ato Institucional nº 1, que já anunciava em parte o que estava por vir: “Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País”, diz o texto, de 9 de abril de 1964, que também marcou eleições indiretas para o ano seguinte. Na sequência, veio a cassação dos direitos políticos dos ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart.
Um dos estudos mais completos sobre esse período mostra, no entanto, que os militares não desenharam o projeto de tomada de poder sozinhos. No livro ‘1964: a conquista do Estado’, René Dreifuss destaca como a participação de empresários foi decisiva para a formatação desse projeto. É isso que explica a tendência crescente, entre os historiadores, de caracterizar o regime autoritário inaugurado com o golpe como “ditadura empresarial-militar”.
Dreifuss demonstra, por exemplo, o papel do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), da Escola Superior de Guerra (ESG) e em especial do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) na articulação para destituir o presidente eleito a partir de documentos que registram as propostas dessas instituições para o país e os cargos que eles assumiram após o golpe. O Ipes foi fundado em 1962 por empresários, intelectuais e militares de alta patente. Em sua ata de fundação, são elencadas três finalidades: “promover e incentivar a educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”; “desenvolver e coordenar estudos e atividades de caráter social” e “obter, por meio da pesquisa objetiva e da livre discussão, conclusões e recomendações que contribuam para o progresso econômico, o bem-estar social e o fortalecimento do regime democrático do Brasil”. No entanto, ao ter acesso a inúmeras atas de reuniões do Ipes, o livro conclui que houve participação expressiva dos principais empresários do país no golpe. “Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes ligações industriais e bancárias) ser chamada mais precisamente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de tecno-empresários”, escreve.
Um dos exemplos para esta dupla atuação está na presença do General Golbery do Couto, presente na criação do Ipes, integrante do Conselho orientador e responsável pela criação do Serviço Nacional de Informações (SNI). A atuação do SNI era semelhante, diz Dreifuss, a uma das atividades às quais o Ipes continuou se dedicando: a preparação de relatórios sobre a atuação da resistência contra a ditadura e movimentos populares para círculos empresariais, militares e administrativos. “Esses relatórios justificavam a atitude de ‘linha dura’ cuja adoção os líderes do Ipes afirmavam ser necessária, por parte dos empresários e militares, contra a ‘subversão’ do país. Consequentemente, esses relatórios também justificavam o contínuo levantamento de fundos para o Ipes”, afirma o pesquisador.
Mas a atuação do Instituto estava além dos aparatos de inteligência e repressão. “Esse grupo formado pelos maiores empresários da época ocupou todos os primeiros postos do governo imediato pós golpe, o que resultou que eles reformaram o Estado à imagem e semelhança desse grupo empresarial”, diz Virgínia Fontes. Nesse sentido, a fala do líder do Ipes e integrante da Câmara Americana de Comércio, Antônio Carlos do Amaral Osório, colhida por Dreifuss e reproduzida no livro, sintetiza a análise feita pela professora da UFF: “Uma das grandes realizações da revolução de 1964 foi, sem dúvida, a de reforçar uma nova concepção das relações entre o Estado e as classes empresariais”.
Ameaça comunista e terrorismo
Apesar de todos esses interesses por trás do golpe, a principal justificativa utilizada para a ação dos militares na época era a necessidade de salvar o país do comunismo. A preocupação com “bolchevizar” o país – em referência aos bolcheviques, que lideraram a Revolução Russa em 1917 – , citada no texto do AI-1, é um argumento que vem sendo recuperado e repetido nesse esforço de alguns grupos de ‘repaginar’ a história da ditadura. Para construir essa ideia falaciosa, recorre-se ao contexto da época. O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, não estava distante e o mundo vivia o período que ficou conhecido como Guerra Fria, uma disputa entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, capitaneado pela União Soviética, por maior influência no mundo. E a preocupação cresceu após a Revolução Cubana, que, em 1959, levou um país próximo ao Brasil a aderir ao bloco soviético. No plano nacional, havia muitas agitações políticas pelas reformas de base e forte movimentação de trabalhadores do campo em defesa de uma redistribuição de terras, prometida pelo governo. “Havia uma percepção de que a proposta comunista era algo muito presente”, explica Rodrigo Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Apesar disso, segundo ele, dizer que essa mobilização significava uma articulação para a implantação de um novo modelo social e econômico no Brasil estava longe de ser verdade. “Os movimentos de direita distorceram a realidade, criando uma representação de que o movimento comunista era muito mais forte do que ele era realmente”, analisa. No livro ‘Passados e Presentes: o golpe de 1964 e ditadura militar’, Motta afirma ainda, após o golpe, “as guerrilhas foram usadas como desculpa para o incremento do regime autoritário”. “As organizações armadas eram pequenas e não contavam com apoio popular relevante, o que tornava seu crescimento e sucesso impossíveis”, escreve, reforçando, ainda, que, além de minoritárias, as ações mais intensas de resistência ocorreram após 1968, com o AI-5, o mais duro do regime, que suspendeu direitos políticos, impediu o funcionamento dos sindicatos e deu poderes ao presidente da república para “demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade” funcionários públicos e militares ou membros das polícias militares. O AI-5, aliás, já não fazia mais menção aos comunistas ou bolcheviques, destinando-se ao “combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo”.
As inúmeras violações de direitos que aconteceram durante a ditadura foram de certa forma autorizadas pela série de Atos Institucionais editados pelo regime. “Os atos institucionais foram essenciais porque definiram, por exemplo, que seria um regime político baseado em eleições indiretas para presidente, definiram o estatuto da cassação de direitos políticos, perda de mandato, perda de direito ao voto”, enumera o Rodrigo Motta, em entrevista à Poli. Mas ele registra que a ditadura também adotou outros mecanismos legais para perseguir e punir aqueles que tentavam protestar contra o governo. Entre eles, está o decreto-lei 477, de 1969, que impôs sanções a estudantes e profissionais de educação e entendem como infração disciplinar o ato de incitar “a deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento”.
Outra medida de mais ampla atuação foi a Lei de Segurança Nacional, existente desde o período da ditadura de Getúlio Vargas, que foi alterada em 1967 e endurecida após o AI-5. O texto prevê que “toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei” e, como principal novidade, estabeleceu a pena de morte. “É curioso que nunca executaram, embora tenham sido feitas algumas poucas condenações à morte, acabaram resolvendo indultar porque a ditadura queria passar uma imagem de que era benigna. Na verdade, eles preferiam matar às escondidas, sumir com os corpos do que fazer uma execução pública baseada na legislação autoritária”, diz Motta. Os principais órgãos responsáveis pela repressão foram o sistema DOI-Codi, os Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DOPS) e os Institutos Médico Legal (IML), cemitérios públicos e presídios, elenca em texto da professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Janaína Teles. “O sistema carcerário foi reutilizado para punir, separar e isolar os dissidentes. Essa estrutura permitiu o uso sistemático de valas clandestinas em cemitérios públicos de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, o que afastou a hipótese de que essas práticas resultariam de ‘excessos’ estranhos ao padrão de conduta das instituições e autoridades brasileiras”, escreve Teles no artigo ‘Eliminar “sem deixar vestígios”: a distensão política e o desaparecimento forçado no Brasil’, publicado em 2020. Em 2008, os depoimentos da família Teles foram responsáveis por condenar o general Brilhante Ustra pelos crimes de tortura. Os pais da professora, Amelinha e César, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foram torturados nas dependências do DOI-Codi em São Paulo e ela e o irmão Edson, ainda crianças, também foram levados às dependências do departamento.
Entre 1964 a 1985 o Estado brasileiro foi o responsável por 434 mortes e desaparecimentos, sendo 191 mortes e 243 pessoas desaparecidas, segundo o terceiro volume do relatório da Comissão da Verdade, de 2014. Em quase duas mil páginas, o documento traz a biografia de cada uma das vítimas da ditadura empresarial-militar e as circunstâncias em que ocorreram as mortes e desaparecimentos. A Comissão considerou a morte em três situações: “execuções sumárias ou arbitrárias (incluindo mortes decorrentes de tortura); mortes em conflitos armados com agentes do poder público e suicídios na iminência de prisão ou de tortura e em decorrência de sequelas de tortura”. Já os desaparecimentos foram identificados a partir da recusa do Estado em informar o paradeiro da pessoa. Apesar dos esforços para reunião dos documentos, esses crimes nunca foram julgados. Ainda assim, afirma Calil, foi o suficiente para incentivar movimentações que negassem o terrorismo de Estado. “Vamos ter uma reação violenta a qualquer tipo de investigação ou acerto de contas, mesmo que um acerto de contas mais simbólico”, diz. Como resposta política ao trabalho da Comissão da Verdade, ainda em setembro de 2014, um manifesto assinado por 27 generais da reserva voltou a afirmar os motivos elencados para a tomada do poder. “O que nós, militares, fizemos foi defender o Estado brasileiro de organizações que desejavam implantar regimes espúrios em nosso país. Temos orgulho do passado e do presente de nossas Forças Armadas”, escrevera.
O discurso contra a corrupção
Em outubro de 1965, o governo editou o Ato Institucional nº 2 e com isso as eleições indiretas deixaram de ter prazo determinado para ocorrer. Foi instituído o bipartidarismo, os direitos políticos foram cassados e as manifestações políticas proibidas, assim como as eleições sindicais. “O AI-2, de outubro de 1965, é o momento em que a ditadura política se explicita enquanto um novo regime que veio para ficar. Muitos setores liberais já tinham ficado assustados com o primeiro Ato Institucional, ainda em abril de 1964. Para bons entendedores, mesmo aqueles que tinham apoiado a queda de Goulart, o Ato era um sinal de intervenção profunda na vida política brasileira”, diz Marcos Napolitano.
No texto de abertura do decreto, há uma mudança de argumento sobre os motivos que levaram ao golpe de Estado: agora, passa-se a falar também no combate à corrupção. Diz o documento: “A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundaram o País na corrupção e na subversão”. E, segundo o professor da UFMG, a mudança de tempo não ficou restrita ao Ato Institucional. “Pouco após o início do governo Castelo Branco, difundiu-se que seria preciso derrotar não apenas a esquerda e o comunismo, o problema principal, mas também um segundo alvo, a corrupção”, escreve Motta no livro ‘Passados presentes: O golpe de 1964 e a ditadura militar’. O professor acrescenta que a imprensa favorável ao novo governo teve um papel importante nessa mudança discursiva, em especial nos editoriais de O Globo e O Estado de S. Paulo. “Após a ênfase inicial no tom anticomunista, ambos passaram a estimular o novo governo a se voltar também contra a corrupção”, continua, no texto. Qualquer semelhança com o discurso que embasa boa parte dos entusiastas da intervenção militar hoje não é mera coincidência.
A imagem de que durante a ditadura empresarial-militar não havia corrupção é outro elemento que sobreviveu ao longo das décadas, embora tenha sido desmentida por diversos estudos. A partir da reunião de documentos, entrevistas concedidas por empresários a jornais e pesquisadores, o livro ‘Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988’, de Pedro Henrique Campos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), por exemplo, mostra que atos ilícitos com o dinheiro público foram frequentes no regime, em especial no setor de obras públicas. E ele reforça que, diante da capacidade do regime de esconder ou impedir investigações, o número de denúncias é certamente menor do que a quantidade de casos.
Alguns indícios mais fortes de desvios, escreve Campos, começaram a aparecer a partir de 1974, com a abertura do regime e a retomada de atividades, como as realizadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), responsável pela fiscalização do destino de recursos públicos. Ele relata que uma prática comum era as empreiteiras apresentarem um valor abaixo do mercado para ganhar a licitação e no decorrer do processo incluírem novas obras para receberem valores superiores aos de mercado e tornar o empreendimento mais lucrativo. Nesse processo, escreve o pesquisador, ganhavam não apenas os executores das obras, mas os agentes públicos que as contrataram.
Milagre econômico para quem?
De 1968 a 1973, o país viveu um período de grande crescimento econômico, alcançando mais de 10% do PIB impulsionado por grandes obras, como estradas e hidrelétricas, e pelo incentivo à indústria. Esse cenário, no entanto, não refletiu na melhoria da qualidade de vida para a maioria da população. “Além de terem maior acesso aos bens de consumo, as classes média e alta foram mais beneficiadas pelas políticas públicas, a exemplo do financiamento habitacional, que privilegiou os imóveis mais caros”, escreve Motta.
Ao mesmo tempo em que fazia um forte investimento estatal em obras, de outro lado, o governo retirava direitos trabalhistas e reduzia o poder de compra dos trabalhadores. Uma dessas medidas foi o fim da estabilidade do emprego, que era garantida após dez anos de trabalho na mesma empresa para aqueles contratados por CLT. Como uma espécie de compensação, foi criado o FGTS, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. “As empresas ganharam, assim, facilidade para demitir – e com isso o poder de baixar os salários contratando gente mais jovem”, explica Rodrigo Motta, em seu livro. Durante o período também houve rebaixamento dos salários Se em março de 1964 o salário mínimo equivalia a R$ 1.737, em março de 1985, mês do fim do regime, ele atingia um dos valores mais baixos da série histórica, R$ 686, segundo dados do Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. E essa política, que envolvia arrocho salarial e reajustes abaixo da inflação, veio acompanhada da Lei nº 4330, promulgada em julho de 1964, que tornava as greves ilegais. “A ditadura bloqueou de maneira durável o acesso dos setores populares no Brasil a qualquer formulação política. Não é à toa que prendeu, torturou, proibiu sindicatos de trabalhadores de atuarem, mas nunca proibiu sindicatos patronais de continuarem existindo”, lembra Virgínia Fontes.
A ditadura bloqueou de maneira durável o acesso dos setores populares no Brasil a qualquer formulação política. Não é à toa que prendeu, torturou, proibiu sindicatos de trabalhadores de atuarem, mas nunca proibiu sindicatos patronais de continuarem existindo.
Virgínia Fontes, professora da Universidade Federal Fluminense
Em 1965, foi aprovada a Reforma Tributária que instituiu o regime fiscal vigente até hoje, e que será modificada a partir de 2026 após a recente aprovação da PEC 45/2019. Uma reforma caracterizada por taxar principalmente o consumo, em que o impacto no bolso de quem ganha menos é maior do que naqueles que ganham mais. Esse modelo é contrário ao que propunha Jango, no qual a taxação seria feita majoritariamente na renda e não no consumo, ou seja, quem ganhasse mais, pagaria proporcionalmente mais imposto. (Leia mais na edição nº 93 da Poli)
Além da Reforma Tributária e do achatamento dos salários, a ditadura realizou outras medidas que também estavam na pauta do presidente deposto, embora com propósitos bem diferentes. Uma dessas iniciativas foi a aprovação do Estatuto da Terra, responsável por regular direitos e deveres dos proprietários rurais com a finalidade de executar a Reforma Agrária e a política agrícola. “Eles não fizeram reforma agrária por causa da oposição dos grandes proprietários de terra, e em troca promoveram a ocupação da Amazônia com a intenção de ocupar as fronteiras e de explorar economicamente a região em benefício do seu projeto de crescimento econômico”, explica Motta. O professor acrescenta que o impacto para as populações indígenas foi devastador, levando a mortes e desapropriações. Um dos principais impactados foi o povo Waimiri-Atroari diante da construção da BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). De acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA), a população era de três mil pessoas no início dos anos 1970 e iniciou a década seguinte reduzidos a 350 habitantes.
O fim do milagre econômico é provocado pela crise do preço do petróleo, que levou o preço às alturas e prejudicou a economia brasileira, dependente de energia fóssil e de investimentos externos. A dívida externa do país saiu de seis bilhões de dólares em 1964 para estratosféricos 100 bilhões, segundo dados do Banco Mundial. Os últimos anos da ditadura empresarial-militar também foram marcados por um salto nos preços, com a inflação atingindo 470% ao ano, de acordo com o IBGE.
Crise da democracia liberal
Passadas exatas seis décadas do golpe empresarial-militar e quatro do seu fim, podemos dizer que a democracia está consolidada? A resposta unânime dos entrevistados é “não”. E isso não é uma situação exclusiva do Brasil. “Nenhuma democracia do mundo, atualmente, está consolidada. Mesmo nos países de tradição democrática, ela está ameaçada, seja por aventureiros irresponsáveis, seja por grupos autoritários e neofascistas”, diz Napolitano, que atribui a ascensão da direita à crise financeira global ocorrida entre 2008 e 2009. “Essa crise, fruto do neoliberalismo econômico, solapou as bases sociais do liberalismo democrático”, avalia.
A abertura de terreno para a extrema-direita que ameaça a democracia, na análise de Virgínia Fontes, está relacionada com a capacidade da direita ultraliberal de corroer o espaço democrático, principalmente a partir da década de 1990. Com o fim do regime autoritário, diz, a atuação do grande empresariado na defesa dos seus interesses muda de forma, mas está permanente presente. “Agora as táticas são muito mais de cooptação e de indiferenciação das forças políticas”, explica e completa: “Há a submissão de praticamente todo o espectro partidário a esses grupos empresariais mais relevantes”. É esse cenário, segundo ela, que se abre caminho para “grupos fascistizantes” que, entre outros aspectos, mobilizam a nostalgia em relação à ditadura empresarial-militar. “Eles se aproveitam da devastação que foi feita pela própria direita para se apresentar como o novo e podem ser mobilizadores caso as forças democráticas não atuem para apresentar novas ideias, informações e formação”, finaliza
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