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A relação entre trabalho, educação e movimentos sociais

Professores Gaudêncio Frigotto e Roseli Caldart refletem sobre como os três temas precisam estar relacionados numa proposta de educação que alie teoria e prática para a superação do capitalismo
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 13/04/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

"De nada valem as ideias se não existirem homens e mulheres que as ponham em prática". A frase de Marx foi lembrada pelo professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Pós-gradução da EPSJV/Fiocruz, Gaudêncio Frigotto, no início da mesa A relação entre trabalho e educação na perspectiva da educação do campo.  A atividade contou também com a presença na mesa da professora do Instituto de Educação Josué de Castro (Iterra) e integrante do coletivo de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Roseli Caldart.  A palestra dos dois professores foi realizada no dia 3 de abril durante o seminário do curso Trabalho, Educação e Movimentos Sociais, desenvolvido pela EPSJV/Fiocruz.

Para Gaudêncio, é importante fazer a crítica da atual relação hegemônica entre trabalho e educação e definir qual é a perspectiva contra-hegemônica a ser seguida.  O professor explica que, por meio de uma leitura marxista, é possível delimitar os vários sentidos do trabalho, entre eles, como necessidade do ser humano. "Falar sobre o fim de uma determinada forma histórica que assume o trabalho é muito diverso de falar sobre o fim do trabalho, porque isso seria prescindir daquilo que é a forma do ser humano criar-se e recriar-se", alerta. Segundo o professor, a compreensão dessa dimensão é importante para a caminhada pela superação da exploração dos trabalhadores. "Se esta atividade vital é inerente a cada ser humano, então, ela é crucial para pensar a superação desse modo de produção e criar seres humanos que não naturalizem a exploração de uns sobre os outros. Socializarmos, dessa forma, a ideia do direito e do dever ao trabalho", pontua. 

Na relação entre trabalho e educação, Gaudêncio explica que é preciso ter cuidado ao definir o trabalho como princípio educativo. Ele comenta que muitas vezes o trabalho como princípio educativo foi tomado como metodologia no sentido do "aprender fazendo", o que, segundo o pesquisador, embora não seja desprezível, reduz muito o sentido do princípio educativo do trabalho. O professor faz ainda outro alerta sobre a necessidade de distinguir emprego e trabalho, que na atualidade são tomados como sinônimos, - o que dificulta ainda mais a compreensão do atual modelo de produção centrada na mais-valia. Gaudêncio escreve uma pequena história de uma charge para explicar esse processo. "Um trabalhador ganhava R$ 20 reais por dia para produzir um conjunto de mercadorias. Ele pergunta ao patrão: ‘de onde você tira o dinheiro pra me pagar?' O patrão responde: ‘da venda das mercadorias que você produz'. O rapaz pergunta: ‘E quanto você ganha das mercadorias que eu produzo?' Aí o patrão responde: 400 e poucos reais'.  O trabalhador, esperto, diz: ‘mas então não é você que me paga, sou eu que te pago, porque você me dá R$ 20 reais e eu te produzo tudo isso'. Então, eles vão debatendo e no fim o patrão diz: ‘psiu, podem ouvir!'. O que o Lênin nos diz é isso, no momento em que a classe trabalhadora entender a lei da mais-valia, ela não vai naturalizar essa relação de expropriação, mas vai entender que este contrato de venda de sua força de histórico e daquela sociedade", diz.

Duas escolas

O professor observa que a escola, na compreensão clássica burguesa, é uma instituição criada para que a infância e a adolescência tenham um tempo de ócio para incorporar conhecimentos, valores e atitudes para depois governarem a sociedade.  Entretanto, esse ponto de vista sobre a escola muda no século XXI.  "Aí a compreensão é de que devem existir dois sistemas de educação, um para aqueles que têm muito tempo para estudar e são destinados a governar a sociedade e outro, curto, para aqueles que têm que aprender o ofício duro do trabalho. Isso se reproduz hoje em sociedades como a brasileira de forma bastante forte", detalha.  De acordo com o professor, a relação da educação como um capital que potencia o trabalho é criada para tentar resolver os problemas e crises que a burguesia cria e é incapaz de solucionar. "É como coloca muito bem o [David] Harvey, o capitalismo cria as crises, mas é incapaz de resolvê-las, apenas as desloca. Aí existe a ideia de que os países pobres vão se resolver se as nações e indivíduos investirem em educação. Só esqueceram uma coisa: analisar a relação social onde se dá a educação. E essa relação social é perguntar: os pobres são pobres porque têm pouca escolaridade ou têm pouca escolaridade porque são pobres? E a história mostra que a verdadeira é a segunda opção", analisa.

A relação predominante entre trabalho e educação hoje, segundo Gaudêncio, desconstrói o que a própria burguesia construiu, com a ideia das competências. "Hoje não se trabalha mais qualificação, se trabalha competência, porque qualificação está vinculada a um tempo histórico, a direitos e a sindicatos que zelam por esses direitos.  Uma vez trabalhando naquela ocupação, o trabalhador não tinha obrigação de ser flexível, nem polivalente, ele tinha um direito, e como desconstruir isso? Agora não é mais a empresa, nem o sindicato, nem a nação que são importantes, é o indivíduo, a competência está nele. Ele tem que ser um trabalhador com qualidade total, que produza em menor tempo, na especificidade possível de qualidade, no menor custo, e não pense que compete a ele discutir nem o processo, nem a política, apenas fazer bem feito o que se manda", define. 

Para o professor, nessa contradição, os trabalhadores podem encontrar outras formas de produzirem a sua existência.  Segundo ele, o principal desafio é aliar teoria e prática." Nós temos então uma batalha no campo das ideias, eu diria que esta não é a mais difícil, a batalha mais difícil é transitar do campo das ideias ao campo da práxis, da ação. Quem se dispõe a pensar a superar as relações capitalistas tem que enfrentar o duro terreno da contradição e o duro terreno do erro, inclusive, e da revisão, porque se não vai ter atitude da bela alma que sabe de cor o que deve fazer mas não enfrentou um milímetro do movimento concreto para enfraquecer as relações dominantes e implantar agora o socialismo naquilo que é possível. E esse possível, como aprendemos, está muito além daquilo que vemos, e daí a importância do trabalho coletivo, da crítica, e da análise para avançar", reforça. 

Politecnia e a Educação do Campo 

Para Roseli Caldart, se a relação entre trabalho e educação deve ser uma base para toda a educação, sobretudo na educação do campo essa relação é extremamente importante. A professora mencionou a realização recente de um seminário sobre educação politécnica e agricultura camponesa no qual refletiu-se sobre as potencialidades de interação entre os dois temas. Segundo Roseli, a educação do campo tem muita similitude com o conceito de educação politécnica criado por Marx.  Ela explica:  "Marx não construiu esse conceito como se o ideal de educação fosse a educação politécnica. Esse conceito nasce em Marx justamente fazendo a leitura da realidade, da produção da sua época, das contradições, de forma a colocar o conceito da politecnia como forma de superação dessas contradições do ponto de vista do polo do trabalho". Da mesma, de acordo com a professora, a educação do campo não pode ser compreendida como a educação ideal. "A educação do campo defende e demarca concepções, mas o seu surgimento não pode ser entendido no plano de ideais educativos, assim seria um falseamento da própria história. A educação do campo justamente é a expressão de um determinado período histórico e de como a contradição principal entre capital   trabalho se desenvolve em determinado período no plano específico dos processos produtivos do campo e em especial na questão da agricultura. E, além disso, justamente como é que os movimentos sociais camponeses se movem nesse cenário. A educação do campo é o enfrentamento, o confronto das contradições", define. 

De acordo com Roseli, a referência básica da educação do campo é o trabalho como princípio educativo. A pesquisadora pontua que dessa maneira são analisadas as formas históricas do trabalho trazendo para o debate as contradições específicas que ocorrem no plano da agricultura. "A dialética é muito importante, se é verdade hoje que não há como entender o que está acontecendo no campo sem entender o que está acontecendo no plano geral do confronto capital e trabalho, a recíproca é verdadeira. O entendimento dessa contradição específica no plano da agricultura traz elementos importantes para entender o contexto geral da  contradição capital- trabalho. É nessa perspectiva que nós estamos discutindo", diz.

A professora lembra que a educação do campo virou um conceito em disputa. Ela menciona que inclusive setores conservadores, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), representada pela Senadora Kátia Abreu (PSD-TO), tem se colocado como defensores da educação do campo, o que, para ela, revela que de fato os movimentos sociais estão mexendo nas contradições que fazem diferença na correlação de forças políticas da sociedade. "Na busca da superação das contradições que estão postas pelo modo de produção capitalista no plano da agricultura, a agricultura camponesa se coloca hoje, simplificadamente falando, como forma de superação dessas contradições. Nós, enquanto MST, vivemos na pele o desafio justamente de enfrentar as contradições que estão postas no modelo capitalista, à medida que nós temos os duramente conquistados assentamentos da reforma agrária e é lá que se coloca qual é o modelo de produção. Assim, vivemos na pele o desafio de formação dos camponeses", observa. Roseli complementa que o projeto assumido pelo MST tem a exigência da resistência e, ao mesmo tempo, do que ela chama de projeção de futuro. "A avalanche da expansão do capital no campo tem trazido como consequência a degradação cada vez  vaior dos trabalhadores do campo. Então, precisamos sobreviver a esse momento de acirramento da presença das empresas. E essa resistência precisa ser feita não simplesmente de qualquer modo evitando morrer. Quem está desse lado, no pólo do trabalho hoje no campo, se enxergar a realidade tal como ela está colocada não tem muita escolha, precisa buscar uma resistência que significa uma projeção de futuro: a superação das relações sociais capitalistas", fala. 

Roseli comenta que, nesse sentido, o debate da educação politécnica contribui para pensar esses dilemas da formação dos trabalhadores dentro desse contexto de necessidade de resistência e construção de outro futuro no campo e, da mesma forma, o campo também pode servir como objeto no debate da educação politécnica. "No conceito de politecnia de Marx, quando ele coloca a vinculação entre trabalho e educação ele dizia: ‘vamos morder a contradição. O modo de produção capitalista colocou as crianças na fábrica, isso é terrível, é desumano, é explorador, mas, ao mesmo tempo, nós podemos perceber nessa coisa terrível um fio que projeta futuro'. Pensando no campo, hoje existe o desafio de fazer a análise de quais são as contradições que estão postas no campo para ver qual é a pontencialidade e onde está o gérmen de futuro", observa.

Superação da contradição entre campo e cidade 

Roseli Caldart lembra que Marx já previu em O Capital, o processo de degradação e crise do sistema capitalista também no campo, dizendo que a expansão do capitalismo para a agricultura teria como consequência, entre outros aspectos, o prejuízo à fecundidade do solo.  "No século XIX ele enxergou o que hoje é a
realidade. Hoje nós vivemos sob uma suposta contradição entre cidade e campo que é uma construção do capitalismo. Como o capitalismo prevê a superação dessa contradição que em algum momento explode? Eliminando o campo, mas não como espaço, elimina-se o campo como especificidade. Ou seja, as relações capitalistas de produção precisam chegar ao campo. Marx já previa o sonho de consumo do capital: a agricultura se transformar em um ramo da indústria, onde se pensa o processo da agricultura não pelo seu objetivo, de produção de alimentos, mas do que ele pode representar para o desenvolvimento do capital", detalha.  Roseli ressalta que, entretanto, essa solução do capitalismo tem como preço a destruição da vida humana e da natureza, assim, não há como esperar a chegada das empresas capitalistas no campo para que haja uma revolução liderada pelos assalariados camponeses. "Pode-se pensar que todos os trabalhadores  deixarão de ter camponeses e serão assalariados e aí teremos depois a revolução pela revolta dos assalariados, mas não haverá mais mundo para que essa contradição se resolva dessa forma. A explosão dessa contradição está forçando hoje uma proposta dos movimentos sociais que afirmam que existe outra forma de  superação dessa contradição entre campo e cidade, que ao contrário, não elimina a cidade, mas elimina o antagonismo, mantendo especificidades, aproximando a indústria da  agricultura, mas não industrializando a agricultura", reforça.

Roseli acrescenta que do ponto de vista da educação politécnica, é importante lembrar que a industria, como disse Marx, contraditoriamente liga ciência e produção, embora nem todos tenham acesso à ciência. A professora afirma que ocorre o mesmo, por exemplo, na  prática agroecológica, defendida pelo MST. "Necessariamente, o avanço da matriz tecnológica da agroecologia supõe a junção entre ciência e trabalho. Não se faz agroecologia com um técnico dizendo para o camponês o que ele tem que fazer. A agroecologia supõe a apropriação, a compreensão científica da realidade, por exemplo, do solo, justamente para ir construindo outra alternativa tecnológica no processo de pesquisa". Para a professora, é justamente aí que está o desafio, fazer a leitura das contradições na atual crise do capitalismo e captar qual é a melhor estratégia para construir outro futuro. "Às vezes trabalhamos cada um na sua esfera, como se as coisas do campo interessassem somente a quem é do campo, mas, na verdade, estamos falando de onde vamos chegar nessa lógica perversa de tratar a produção daquilo que é a base de sustentação da vida humana, os alimentos, prioritariamente como mercadoria. Essa discussão que envolve o contraponto de  odos de fazer agricultura e que tem uma projeção de futuro e de humanidade diferentes, interessa a todos porque é da vida humana e da relação com a natureza que estamos tratando", ressalta.

 

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