Representantes do Ministério da Educação (MEC), do Banco Mundial, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), do Ministério da Economia e da Controladoria-Geral da União (CGU) realizaram entre 1º e 5 de março um ciclo de reuniões virtuais para discutir a reestruturação de metas e prazos de um acordo firmado entre o governo federal e a instituição financeira em 2018. Com vigência até 2023, o acordo prevê um empréstimo de 250 milhões de dólares para apoiar a implementação da reforma do ensino médio, que, por lei, precisa ser feita até 2022.
Para receber o dinheiro, o governo brasileiro precisa cumprir uma série de metas previstas no acordo e relacionadas à implementação da reforma. De acordo com o próprio MEC, dentre as metas já alcançadas estão a identificação de 27 especialistas para auxiliar os estados na implementação da reforma, a realização de formações sobre a elaboração dos novos currículos e prestação de assistência técnica aos estados para melhorar a execução dos recursos do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), criado no final de 2016 pela pasta – e que também conta com recursos do Banco Mundial para ser implementado.
Procuramos o MEC para obter mais detalhes, mas o ministério não respondeu à solicitação de entrevista feita pelo Portal EPSJV.
O ciclo de reuniões entre MEC e Banco Mundial foi realizado em um contexto em que o cumprimento das metas do acordo estavam paralisadas praticamente desde o início de 2019, daí a necessidade de readequação do cronograma firmado em 2018. O plano original previa um desembolso de 174,5 milhões de dólares entre 2018 e 2020, mas até o momento foram liberados apenas 52 milhões – a maior parte ainda em 2018.
“Os primeiros aportes financeiros do Banco foram enviados logo no início do projeto, porque estavam relacionados precisamente à aprovação dos instrumentos legais que permitissem a implementação da reforma do ensino médio, ainda no governo [Michel] Temer. De lá para cá, sobretudo no governo Bolsonaro, o Ministério da Educação tinha paralisado o programa”, resgata Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Segundo ela, a liberação dos recursos está condicionada, por exemplo, a um processo de readequação curricular. “Isso implica que cada um dos estados tem que construir a sua nova base curricular para o ensino médio. Espera-se que essa nova adaptação curricular possa ser realizada com assessoramento do Banco Mundial. Então, parte dos recursos tem a ver com contratação de assessores, de consultores que possam ajudar os estados a redefinir, de um lado, os seus currículos, adaptando-os às normativas do novo ensino médio. De outro lado, espera-se que esses mesmos consultores possam contribuir na formulação do treinamento dos diretores de escola, daqueles que vão aplicar essa reforma na ponta”, explica
Alinhamento
De acordo com a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, o apoio técnico e financeiro do Banco Mundial denota o alinhamento da reforma do ensino médio, iniciada em 2017 no Brasil, com as concepções sobre educação que o Banco tem formulado a partir do início da década de 2010 para os países do que ela chama de “capitalismo periférico”,.
“No ano de 2011, o Banco elaborou um documento que é marco para essa estratégia, que se chama precisamente ‘Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem Para Todos’. O documento fixa quais são os horizontes educacionais que o Banco Mundial propõe para os países, sobretudo da periferia do capitalismo, ligados principalmente à noção de aprendizagem”, explica Marcela.
E complementa, chamando atenção para um termo usado pelo BM: “Qual é a diferença entre escolarização e aprendizagem? Escolarização pressupõe uma educação institucionalizada, sistemática, com uma concepção ampla de ensino e aprendizagem, na qual o professor e a autonomia do professor são fundamentais, na qual se pensa uma formação integral das crianças e dos jovens. Tudo isso passa a ser substituído na estratégia do Banco Mundial pela noção de aprendizagem, na qual a escola deixa de ser o lugar principal da educação e passa ser mais um lugar onde essa aprendizagem é possível”, aponta Marcela.
Não à toa, o Banco defendeu em outro documento, intitulado ‘Um Ajuste Justo – Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil’, de 2017, que o país deveria reduzir seu investimento em educação – e também o número de professores.
“Uma análise de eficiência intermunicipal demonstra que o desempenho atual dos serviços de educação poderia ser mantido com 37% menos recursos no ensino fundamental e 47% menos recursos no ensino médio. Isso corresponde a uma economia de aproximadamente 1% do PIB. [...] O aumento do número de alunos por professor em 33% no ensino fundamental e 41% no ensino médio economizaria R$ 22 bilhões (0,3% do PIB) por ano. Isso poderia ser realizado simplesmente ao permitir o declínio natural do número de professores, sem substituir todos os profissionais que se aposentarem no futuro”, diz o documento.
Para a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, essas concepções estão totalmente alinhadas à lógica da reforma do ensino médio. “A redução do horizonte de conteúdo proposta pela reforma já aponta claramente nessa direção. Há uma ênfase em determinados conteúdos numa perspectiva instrumental, enquanto disciplinas que historicamente fizeram parte do ensino médio, que tendiam a apresentar para a juventude um olhar sobre o mundo mais amplo, mais integral, mais completo, tendem progressivamente a desaparecer. Não é à toa que filosofia, história e sociologia são disciplinas que vão sendo reduzidas, retiradas do caráter obrigatório que elas tinham. Isso empobrece a compreensão de mundo que o jovem passa a ter sobre a sociedade”, alerta.
Ainda de acordo com Marcela Pronko, essas transformações no campo educacional se alinham com o que se espera do Brasil e dos países periféricos do capitalismo na divisão internacional do trabalho.
“O Brasil tem uma inserção muito específica no âmbito internacional, como fornecedor de determinadas matérias-primaspara um tipo de produção que é realizada por outros países. Esse tipo de inserção implica a necessidade de uma força de trabalho que não precisa conhecer, por exemplo, os fundamentos científico-tecnológicos necessários a uma indústria de transformação. O que é preciso é que a juventude brasileira, principalmente aquela que depende da escola pública, seja capaz de se inserir em tarefas que, cada vez mais, respondem a uma concepção de trabalhos simples, atividades que exigem força física e um mínimo de operacionalização de determinadas tecnologias, mas não a compreensão dessas tecnologias”, aponta ela, completando em seguida: “Então a educação que o Brasil precisa, na perspectiva do Banco Mundial, não é a mesma que os países do capitalismo central precisam, porque eles vão desenvolver os processos complexos, indústrias de ponta, de altíssima tecnologia, e o Brasil, tendencialmente, cada vez menos”.
O papel do Banco Mundial
A pesquisadora do Observatório do Ensino Médio da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Camila Grassi também alerta para a disseminação da noção de aprendizagem defendida pelo Banco Mundial por meio da reforma do ensino médio.
"A reforma desconsidera o conceito de direito à educação no sentido de qualidade educacional, e eles utilizam pura e simplesmente o conceito de direito à aprendizagem. Falar que o jovem tem direito à aprendizagem implica que ele não tem direito ao conjunto de outros direitos que compõem a qualidade educacional”, destaca ela.
E completa: “Em um país como o nosso, em que as crianças vão para a escola para se alimentar, a alimentação escolar é um item de qualidade educacional; a estrutura escolar é outro item importantíssimo de qualidade educacional, o transporte escolar, a valorização dos profissionais da educação, o material didático, as condições de trabalho: tudo isso é qualidade educacional”.
Segundo Camila, é difícil subestimar a influência do Banco Mundial sobre a formulação da política educacional, papel que a instituição exerce por meio da sua inserção no que ela chama de “redes de governança”.
“São entidades guarda-chuva que atuam na produção, implementação, monitoramento, avaliação e validação da política que essas mesmas redes produzem. A gente diz que é um monopólio do poder político da educação. No campo da política educacional, o empresariado tem um projeto claro de indivíduo, de subjetividade humana, de trabalhador e de sociedade. É por meio da organização dessas redes de governança que tem conseguido se organizar de forma mais potente para implementar esse projeto”, explica.
De acordo com a pesquisadora da UFPR, o Banco Mundial está articulado a várias dessas redes, como o Todos pela Educação e o Movimento pela Base Nacional Comum, compostas por entidades como o Consed, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) mas também por institutos e fundações empresariais com atuação expressiva na educação no Brasil, como a Fundação Lemann e o Instituto Ayrton Senna.
“Dentro dessas redes, o Banco Mundial desempenha um papel importante de intelectual orgânico de alguns conceitos que esse conjunto de institutos e fundações utilizam, como o próprio conceito de direito à aprendizagem. O Banco desempenha o papel de aplicar o projeto dessas classes dominantes globais em âmbito local. Para implementar uma reforma do ensino médio pensada globalmente por entes e organismos internacionais empresariais nos centros hegemônicos de poder, especialmente dos Estados Unidos, nos estados e municípios brasileiros, o Banco precisa se organizar nessas redes, que têm sido centrais para o avanço desse projeto neoliberal para a educação”, destaca Camila.