Tudo indica que o bolo da educação profissional no Brasil está começando a ser dividido. Se os números mostram que a expansão promovida pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) até agora se deu prioritariamente pelas mãos do Sistema S, composto por instituições vinculadas às confederações do empresariado de áreas como indústria, comércio e agricultura, desde o ano passado esse ‘mercado’ passou a ser disputado diretamente por grandes fundos de investimento que controlam hoje as principais instituições privadas de ensino superior (IES). E o que deve entrar em jogo nessa redistribuição, segundo avaliação de Gabriel Grabowski, professor da Universidade Feevale, é a fatia – já pequena – da oferta feita pelas instituições públicas. “O Sistema S é forte, sólido e também tem controle empresarial. Não será tão simples assim a competição com eles. Eu acho que essas empresas farão uma ameaça à esfera pública, estadual principalmente, porque os estados ainda estão com pouca oferta de educação profissional. A rede federal está num processo de discussão porque há uma certa resistência à concepção do Programa. Esse setor vai acabar disputando esse mercado, privatizando ainda mais o Pronatec”, analisa.
E os números parecem confirmar essa tendência. No cômputo geral, a maioria dos cursos realizados no âmbito do Pronatec são de responsabilidade do Sistema S — 70% do total, com ampla abrangência do Serviço Nacional da Indústria (Senai) e do Serviço Nacional do Comércio (Senac). Aqui, as instituições de ensino superior aparecem com apenas 2% do total de matrículas. Mas o Sistema S tem destaque principalmente nos cursos de formação inicial e continuada, que têm no mínimo 160 horas e geram muito mais matrículas no mesmo intervalo de tempo. Nessa modalidade, só o Senai e o Senac, juntos, são responsáveis por 86% de todas as matrículas realizadas até hoje. Já as instituições privadas de ensino superior estão avançando sobre os cursos técnicos que, embora sejam minoritários no Pronatec – correspondem a apenas 30% do total das matrículas -, têm sido o foco principal da rede pública federal. “Acreditamos que as instituições de ensino superior têm um papel importante como parceiras do governo no Pronatec, pois existe uma forte demanda reprimida por formação técnica e grande capilaridade das instituições de ensino privado no país. Todos ganham nessa relação: o país, os alunos, que passam a ter mais opções de formação qualificada, a indústria e mercado em geral e, também, as instituições de ensino participantes do programa”, opina o diretor de pós-graduação e cursos técnicos da Anhanguera-Kroton, Paulo de Tarso Moraes. E completa: “O programa ainda é muito novo e as regras do governo ainda estão em desenvolvimento. Essas mudanças fazem com sejamos mais cautelosos em nossas projeções futuras, mas acreditamos que é um segmento com bastante potencial”.
Os tais nichos de mercado hoje estão, principalmente, no subsídio público dos programas de educação do governo federal
A Revista Poli solicitou ao Ministério da Educação, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados sobre volume de matrículas e de recursos públicos gastos com o Pronatec, em cada tipo de instituição, discriminados por ano. Nas três respostas que recebeu — referentes ao pedido original e a dois recursos impetrados por informação incompleta —, só foram fornecidos números gerais, referentes ao total de matrículas do Programa desde a sua origem, o que impede que se analise a evolução da participação de cada instituição ofertante ao longo dos anos. De acordo com os dados fornecidos, o Sistema S (Senai e Senac) foi responsável por 35% das matrículas de cursos técnicos realizados até agora, seguido da rede federal, com 31%. Em seguida, já à frente da rede pública estadual (15%), vêm as instituições privadas, com 19% das matrículas nessa modalidade. Mas é preciso atentar para o fato de que, diferente do Sistema S e da rede pública, que ofertam cursos desde a criação do Pronatec, em 2011, as instituições privadas – tanto as de ensino superior quanto as que atuam especificamente na educação profissional e tecnológica – só começaram a participar do Programa no segundo semestre do ano passado.
Fundo público e mercado
Este ano, a Anhanguera-Kroton, que é a maior empresa educacional do mundo, tem, segundo Paulo de Tarso, 35 mil alunos em cursos técnicos por meio do Pronatec. Num ‘Comunicado ao Mercado’ feito no dia 4 de julho, a empresa anunciou aos acionistas e investidores a conquista de mais 28.104 vagas para o segundo semestre de 2014. “Cabe lembrar, também, que essas vagas são referentes à modalidade Bolsa Formação, a qual oferece bolsas de estudos totalmente subsidiadas pelo Governo Federal”, diz o texto. O grupo Estácio, que vem logo abaixo no ranking interno de instituições de ensino superior, já tem este ano quase 25 mil matrículas – e, neste caso, todas no Rio de Janeiro, estado em que as IES privadas vão oferecer 4,5 vezes mais vagas de cursos técnicos do que o Senai. Também num ‘Comunicado ao Mercado’ feito no dia 3 de julho, o grupo anunciou a “autorização para ofertar aproximadamente mais 15 mil vagas, das quais mais de 7 mil nas regiões Norte e Nordeste”. Entre os cursos mais procurados nas instituições do grupo Estácio estão três da área de saúde: radiologia, enfermagem e estética. A Anhanguera-Kroton não torna público o ranking dos cursos. Técnico em Agente Comunitário de Saúde, Gerência de Saúde, Cuidado de Idosos, Enfermagem, Farmácia e Vigilância em Saúde, além de Meio Ambiente e Controle Ambiental são alguns dos cursos técnicos listados no site da instituição.
Para Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), esse cenário é representativo do novo papel que alguns segmentos da educação desempenham hoje para o grande capital. “O Sistema S é expressão de um momento em que o empresariado disputa com o Estado a primazia da formação dos trabalhadores, principalmente para a indústria. O que estava em disputa era quem ditava as regras de uma formação que, mais do que o aspecto puramente técnico, visava também à sociabilidade do trabalhador. Hoje o empresariado não precisa mais fazer isso diretamente porque outras instituições, que são seus aparelhos privados de hegemonia, fazem por ele. O que está em jogo agora é o lucro e a disputa é pelo nicho de mercado”, explica. Ela lembra que a International Finance Corporation (IFC), organização do Banco Mundial que se propõe a promover o “desenvolvimento econômico” dos países através do setor privado, tem a América Latina e o Brasil especificamente como alvos prioritários do investimento em educação privada. O grande foco ainda é o ensino superior, mas, segundo Marcela, os dados já mostram também uma tendência de crescimento em relação à educação profissional. Entre as empresas educacionais mais financiadas pelo IFC no Brasil, encontram-se a Estácio Participações, com metade dos empréstimos concedidos a esse setor no país, e o grupo Anhanguera.
“Até a década de 1970, havia um imaginário social de que o fundo público existia para atender aos direitos públicos universais. Mas ele passa a ser disputado como um lócus para se ganhar dinheiro fácil, a tal ponto que, em 2000, a Organização Mundial do Comércio sinalizou que um dos filões de retorno mais rápido e com as mais altas taxas de retorno era o setor educacional”
Gaudêncio Frigotto
O fato é que os tais nichos de mercado hoje estão, principalmente, no subsídio público dos programas de educação do governo federal. De acordo com o diretor de pós-graduação e cursos técnicos do Anhaguera-Kroton, os alunos de cursos técnicos, pelo Pronatec, representam hoje cerca de 3% do total de matrículas de todas as instituições do grupo e o Programa Universidade para Todos (Prouni), em que o governo financia bolsas para curso superior nessas instituições, responde por outros 10%. Perguntado apenas pelos programas de bolsas, na entrevista que concedeu por escrito para a Poli o executivo não fez referência ao Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), mas, de acordo com informações fornecidas pela assessoria de imprensa do grupo em maio de 2014, 63,2% dos alunos da Kroton e 46,9% dos da Anhanguera na modalidade presencial estudam via Fies. De acordo com informações do Portal da Transparência do Governo Federal, só pelo Fies, a Anhanguera Educacional LTDA recebeu, em 2013, mais de R$ 536 milhões de recursos públicos. Os dados referentes à Kroton estão desmembrados entre as muitas instituições que compõem o grupo. Somadas as referências que a reportagem conseguiu localizar, chega-se a pouco mais de R$ 412 milhões.
Como referem-se à isenção fiscal, os dados do Prouni não estão disponíveis para consulta. Através da Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Educação repassou dados de 2012, justificando que, por tratar-se de um cálculo feito pela Secretaria da Receita Federal e não pelo MEC, esses eram os únicos números disponíveis. No geral, segundo essas informações, foram concedidas em 2012, 176.746 bolsas de ensino superior, a um custo total de R$ 503,9 milhões. Entre as dez IES que receberam o maior número de bolsas de ensino superior nesse ano, o primeiro e o terceiro lugar pertencem ao grupo Anhanguera-Kroton, totalizando mais de 17 mil alunos, e a quarta posição é do grupo Estácio, com mais de 4 mil matrículas — o segundo lugar fica com a Universidade Paulista. Em 2013, três instituições do Anhanguera-Kroton e duas da Estácio aparecem nesse ranking, com 27 mil e 8,8 mil alunos, respectivamente. Em relação ao Pronatec, mesmo com a demanda via Lei de Acesso à Informação, o MEC não forneceu os dados referentes ao total de recursos empregados – limitando-se a informar um link do site do Fórum Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em que a pesquisa só pode ser feita por município. Também não informou o total de recursos públicos que os principais grupos empresariais de ensino superior que agora atuam também no Pronatec recebem, alegando que os repasses são feitos pelo CNPJ de cada mantenedora. O diretor de pós-graduação e cursos técnicos da Anhanguera-Kroton também não respondeu sobre o volume total de recursos repassados pelo MEC no âmbito do Pronatec, mas informou que “o valor da bolsa mensal por aluno é por volta de R$ 450”. Multiplicado pelos 35 mil alunos que já estão matriculados – sem contar os mais de 28 mil que entrarão no segundo semestre deste ano –, chega-se a um valor aproximado de R$ 15,7 milhões por mês ou R$ 189 milhões por ano.
Para explicar esse processo, Gaudêncio Frigotto, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), se remete a um artigo do sociólogo Francisco de Oliveira do final da década de 1980 chamado ‘O surgimento do antivalor’. O argumento central do texto é de que se chegou a um novo “padrão de financiamento público da economia capitalista”, que pode ser resumido num processo em que, como diz o autor, “o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da acumulação do capital, de um lado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio dos gastos sociais”. Gaudêncio analisa: “Até a década de 1970, havia um imaginário social de que o fundo público existia para atender aos direitos públicos universais. Mas ele passa a ser disputado como um lócus para se ganhar dinheiro fácil, a tal ponto que, em 2000, a Organização Mundial do Comércio sinalizou que um dos filões de retorno mais rápido e com as mais altas taxas de retorno era o setor educacional”.
Democratização: fim da dualidade educacional?
De acordo com Marcela, parte do sucesso desse novo mercado passa por um processo em que o governo, ao mesmo tempo em que incentiva a expansão do ensino superior, por meio do Prouni e do Fies, promove, pela propaganda, a ideia de que o jovem não precisa mais ir à universidade porque pode conseguir um bom emprego apenas com a formação técnica. Segundo ela, isso significa uma mudança na forma como se apresenta hoje a “dualidade educacional”, ou seja, a naturalização de que a educação se adequa à divisão de classes da sociedade: para as camadas ‘superiores’, uma formação ampla que vai além do instrumental e, para os ‘de baixo’, treinamentos voltados especificamente para uma inserção – subalterna – no mercado de trabalho. A pesquisadora explica que, historicamente, essa dualidade se expressa no acesso ao ensino superior e outras fases de formação para uns e ao ensino técnico, concebido de forma instrumental, como teto para a formação de outros. “Agora, a linha que separa os dois caminhos, o superior e o técnico, é diluída”, diz. Ela explica que uma grande jogada dessas instituições privadas foi a criação recente de cursos curtos, os chamados tecnólogos, que são o meio do caminho entre o técnico – que chega agora com o Pronatec - e o superior. “E tudo é apresentado como continuidade. A ilusão é que se chegou lá. É uma ilusão vendável e bem lucrativa. Mas a dualidade permanece, só que agora de forma disfarçada, expressa na diferença de qualidade dos cursos oferecidos por essas instituições, que são os que a classe trabalhadora tem acesso”, conclui. Referindo-se às “instituições mercantis”, que ele diferencia das instituições privadas de caráter comunitário, Gabriel Grabowski concorda: “Nenhuma dessas instituições desponta pela qualidade nem no ensino superior. Elas maximizam os lucros diminuindo a qualidade. É um prejuízo para o estudante e para a sociedade”.
Marcela ressalta que, embora de fato um volume maior de pessoas esteja tendo acesso tanto aos cursos técnicos quanto ao ensino superior, isso não representa uma democratização. “Democratizar não significa dar acesso a uma educação que, de outro lado, está totalmente pautada pelas necessidades dos grandes donos do capital. Isso para mim não é democratizar, muito pelo contrário, é subordinar, é garantir que essa força de trabalho seja entregue pronta e subordinada para que eles continuem a ganhar os seus milhões. Democratizar significa que todos possam ter acesso ao conjunto do que foi produzido pela humanidade até os dias de hoje ou às ferramentas necessárias para poderem se apropriar disso da maneira como melhor entendam. Se democratizar significa simplesmente dar acesso a esse tipo de educação, não me interessa que o fundo público seja usado para isso”, conclui.