Não foi um domingo qualquer. No último 21 de maio, a Cracolândia paulistana amanheceu cercada. O fim da mais conhecida cena de uso de drogas do país foi mais uma vez decretado. Em 2008, após uma operação policial, o ex-prefeito Gilberto Kassab garantiu: “Não existe mais a Cracolândia”. Em 2012, o mesmo Kassab, em uma dobradinha com o governador Geraldo Alckmin, deflagraria a Operação Centro Legal, que ficou conhecida como ‘Sufoco’, e levaria a então secretária estadual de Justiça, Eloisa Arruda, a repetir que “aquela Cracolândia, que chegava a reunir 800 pessoas, não existe mais”. Em 2017, o prefeito recém-eleito João Doria seguiu o mesmo script: ocupação policial, dispersão dos usuários e repressão ao tráfico. A megaoperação orquestrada pelas gestões estadual e municipal mobilizou 900 policiais, helicóptero, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para expulsar usuários de drogas da região. Comércios foram lacrados, moradores foram obrigados a desocupar seus imóveis. Uma retroescavadeira derrubou parte de um prédio, ferindo três pessoas. E, mais uma vez, uma autoridade foi taxativa: “Não vai ter mais Cracolândia”, disse o secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará.
Desta vez, contudo, também foi decretado outro fim: o do programa ‘De Braços Abertos’. Criado em 2013 pela gestão Fernando Haddad, a iniciativa oferecia acomodações em quartos de hotéis, três refeições ao dia em um restaurante público local e pagamento proporcional a algumas horas semanais de trabalho em serviços de zeladoria municipal aos beneficiários, grande parte, usuários de drogas. O programa não exigia abstinência do consumo de substância psicoativas. Apontado por especialistas como uma iniciativa pioneira no país, por tentar prover uma melhora mínima no bem-estar dessa população, o ‘De Braços Abertos’ se chocava com a lógica da ‘Guerra às Drogas’ – que prega que, com repressão, é possível acabar tanto com o tráfico quanto com o uso dessas substâncias.
“A falta da droga e a dificuldade de fixação vão fazer com que as pessoas busquem o tratamento. Como é que você consegue levar o usuário a se tratar? Não é pela razão, é pelo sofrimento. Quem busca ajuda não suporta mais aquela situação. Dor e o sofrimento fazem a pessoa pedir ajuda”, sentenciou Luiz Alberto de Oliveira, psiquiatra que há seis anos está à frente da política de drogas na secretaria estadual de Justiça de São Paulo. A declaração, feita em 2012, exemplifica a lógica que orienta o programa de Alckmin, batizado de ‘Recomeço’, e, agora, o programa de Doria, que recebeu o sugestivo nome de ‘Redenção’. “A ‘Operação Sufoco’ usou a repressão policial como instrumento de dispersão dos usuários da região e, na verdade, gerou minicracolândias pela cidade. Foi um fracasso – que se repete agora”, afirma Gabriel Medina, da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP), referindo-se ao deslocamento dos usuários, primeiro para a praça Princesa Isabel, a poucos metros da Cracolândia e, depois de nova ação de expulsão, de volta à antiga cena de uso. “O ‘Redenção’ é o sufoco permanente. Não deixam os usuários permanecerem num mesmo local. Para tirá-los da praça Princesa Isabel, ficavam jogando água na terra para tornar insuportável a permanência ali, já que está fazendo muito frio. Até que tiraram as barracas; tudo. É a produção de uma situação de desespero”, sintetiza.
Sob o argumento de que vai se combater as drogas, essas ações redundam no combate aos usuários de drogas. Mas isso não parece ser problema para uma parcela significativa da sociedade. Tanto antes quanto agora, os moradores de São Paulo declararam apoiar operações policiais na Cracolândia. Em 2012, em levantamento feito pelo Estadão, 84% concordavam com a ação policial; hoje, 59% são favoráveis, segundo pesquisa do Instituto Datafolha. O apoio à internação à força cresceu: 80% defendem que usuários de crack sejam internados contra sua vontade. Em 2012, a população estava mais dividida: 49,8% eram a favor e 49,4%, contra. “Eu tenho evitado fazer comentários sobre a Cracolândia, mas sobre a pesquisa eu comento sim. Não governamos para aqueles que são do grito, governamos para a maioria silenciosa”, sublinhou Doria durante uma agenda pública no início de junho.
“Como, diante de uma questão social e sanitária, uma resposta bélica encontra apoio popular? Você tem pessoas miseráveis, fazendo uso severo de crack, detonadas na sua saúde, enfim, seres humanos que deveriam despertar total solidariedade; mas não: vem uma operação com balas de borracha e bombas de gás e a população aplaude. Este sentimento me parece produzido – e acho que isso passou pela mídia e pelas campanhas de prevenção”, analisa Denis Petuco, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). De acordo com ele, a imprensa e o discurso preventivo enveredaram para a construção da imagem do usuário de crack como um zumbi. “As campanhas e os noticiários usam os mesmos recursos visuais dos filmes de terror. Nessa narrativa do pânico, o usuário é alguém perigoso para si, para seus familiares, para a sociedade. E como lidamos com uma pessoa perigosa? Desse modo mesmo: com tiro, porrada, bomba e aprisionamento, seja na forma de cadeia, seja na forma de internações compulsórias em manicômios ou comunidades terapêuticas. Em suma, a gente reprime e tira de circulação”, critica.
Uma “massa amorfa” cujo “único objetivo é a droga”. Seres humanos que “não conseguem mais se conduzir pela própria vontade” e foram “abduzidos” pelo “fluxo”. As frases não fazem parte da sinopse de uma obra de ficção, mas da descrição feita pela Procuradoria Geral do Município de São Paulo na ação em que pediu à Justiça em caráter de urgência autorização para buscar e apreender “pessoas em estado de drogadição que estão vagando pelas ruas da cidade”. Anexando como provas filmagens de programas de televisão sensacionalistas como o ‘Brasil Urgente’, comandado por José Luiz Datena, a prefeitura argumentou que os usuários vinham sendo “cooptados” por novos “fluxos” de consumo e venda de drogas nas ruas laterais da Cracolândia. Para “tentar dar chance aos dependentes químicos”, a Prefeitura solicitava a prerrogativa de interná-los contra sua vontade.
O pedido, feito três dias depois da megaoperação policial, foi tão ou mais polêmico que ela. “A impressão que eu tenho é que eles tentaram fazer um teste jurídico usando São Paulo como balão de ensaio para uma legislação de internação compulsória de abrangência nacional”, diz Francisco Inácio Bastos, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz). Segundo o pesquisador, que coordenou o maior estudo sobre crack já feito no mundo e mostra o perfil do usuário no Brasil, os interesses por trás disso são muitos e vão desde a especulação imobiliária na região até o marketing político que mira a polarização da sociedade. “Isso está indo ao encontro de uma fração da população que parece expressiva. As pessoas acham que programas como o ‘De Braços Abertos’ são de esquerda. Não é verdade. É um modelo que existe nos Estados Unidos, na Noruega, na Austrália, no Canadá, em suma, em vários países que atravessaram vários governos, alguns à esquerda, outros à direita, e não acabaram com os programas”.
Gabriel informa que, em pouco tempo, a ação repercutiu em outras cidades. “Em Santo André [SP], fizeram megabatidas policiais em pontos de concentração, expulsando usuários. No Conselho tivemos um informe de que está acontecendo também no Piauí. E vai reverberar. Quando São Paulo adota esse tipo de postura e ganha visibilidade, a tendência é que outros municípios façam adesão ao modelo – que não funciona, é importante dizer. Estamos tentando fazer esse debate com a sociedade, mas o apelo da higiene social é forte. A ideia de que você consegue resolver um problema complexo num piscar de olhos é muito tentadora”, lamenta. “O que o Doria está defendendo em São Paulo não é internação compulsória. É recolhimento compulsório. A internação compulsória, por mais que sejamos contra, tem os seus procedimentos e, sobretudo, é individualizada, dirigida a pessoas específicas”, complementa Denis.
Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), se une ao coro que critica a internação em massa, que considera “extremamente desajustada”. “Cada paciente tem que ter um diagnóstico. Para indicar uma internação involuntária, eu preciso do médico e da família. Para internar compulsoriamente, eu preciso do juiz e do médico”, explica. Mas o consenso no campo da saúde para por aí.
Curto-circuito
O choque de concepções entre entidades médicas e o movimento que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica diz respeito a quase tudo mas, principalmente, à forma como ambos veem a pessoa que abusa de substâncias psicoativas. Ana Cecília continua: “Nem todos são dependentes de droga, nem todos moram lá há anos; tem uns que acabaram de chegar. Tem criança, que tem que ser tirada de qualquer forma. Tem grávida expondo o feto à droga – e aí tem que ter internação compulsória sim, porque vão gerar indivíduos com doença, seres humanos que nascem deficitários. Boa parte dos indivíduos ali já está no fim da linha. De tão adoecidos, perderam todos os vínculos, não têm a quem recorrer. Aí o Estado tem que assumir mesmo esse paciente. Mas, do meu ponto de vista, teria que ter um mapeamento bem feito para preparar a retaguarda. Não adianta sair soltando bomba na Cracolândia sem ter o que fazer com as pessoas porque ali tem seres humanos altamente deteriorados”.
A psiquiatra, que é ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), defende o fim da Cracolândia. “Ô se tem que acabar. Para mim, ali é situação de guerra, destruição total. As pessoas não têm vínculo, não aderem a tratamento. Você pode oferecer o que quiser, elas não querem sair da condição em que estão. A área do cérebro responsável pela motivação – querer uma vida normal, querer comer, tomar um banho – está zerada pela droga. E não é uma droga, são várias”. Ana Cecília é crítica ao programa ‘De Braços Abertos’ que, na sua avaliação, começou pelo fim. “Como vou tratar um dependente dando trabalho se ele escolhe a droga que quer porque vende a céu aberto?”, questiona.
Como linha de ação pública, a referência da médica é a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), de 2004, que segundo ela, nunca saiu da gaveta. “Tem que implementar a política inteira, a diretriz para tratamento é um braço da política. O outro braço é a prevenção e o terceiro é o controle da oferta de drogas – que é repressão, controle de propaganda, de preço, enfim, cada droga tem um tipo de medida”, cita ela, que participou da construção do texto. A PNAD lançou as bases para a lei 11.343 de 2006, conhecida como Lei de Drogas e apontada como responsável pela explosão da população carcerária no Brasil. De acordo com dados do Ministério da Justiça, entre 2006 e 2014, o tráfico de substâncias ilícitas foi responsável por um salto de 31 mil para 174 mil presos. Atualmente, 28% dos encarcerados respondem por crimes relacionados a drogas. Antes da lei, esse percentual era de 15%.
“O pensamento conservador brasileiro tem três olhares a respeito do uso de drogas: ou é doença, ou é delito, ou é pecado”, resume Domiciano Siqueira, presidente da Associação Brasileira de Redução de Danos (Aborda). “Então a saúde, a justiça e as igrejas lançam os três olhares que ainda orientam a questão das drogas no Brasil. São olhares que, inclusive, se misturam dependendo da situação. E, frequentemente, patrocinam ações como essa que aconteceu em São Paulo”, diz ele, acrescentando: “A redução de danos é um quarto olhar que lida com o consumo de drogas como um direito. É aí que começam os nossos problemas. As pessoas vão perguntar: ‘mas vocês acham que é um direito da pessoa usar drogas?’ A resposta, naturalmente, é sim”.
A redução de danos nasce no Brasil em 1988, na cidade de Santos, que detinha o maior índice de portadores do HIV. A ideia era impedir a transmissão do vírus a partir de ações simples, como a entrega de seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, populares na época. “Começaram a surgir vários grupos que assimilaram a redução de danos porque vislumbraram que é possível e necessário que uma sociedade aprenda a conviver com as drogas. Em primeiro lugar, porque estamos inseridos no capitalismo, sistema no qual tudo o que dá dinheiro vai para frente. E droga dá dinheiro”, constata Domiciano. Depois de 15 anos da atuação desses programas, a transmissão da AIDS no país caiu de 65% para 5%. Foi quando aconteceu a conhecida migração do uso injetável de drogas para o crack. “A redução de danos, então, ampliou seu leque de ofertas. Não tinha mais sentido distribuir nem trocar seringas. Mas tinha que fazer alguma coisa. Foi quando a redução de danos, que no Brasil nasce dentro dos programas de AIDS, migra para as coordenações de saúde mental. Nessa segunda fase, enfrentamos vários problemas. Antes, o HIV serviu de anteparo, por ser uma doença grave, que mata. Os técnicos e a política brasileira não comportavam essa ideia de que, não tendo uma doença como a AIDS, se pudesse conviver com o consumo de drogas de uma forma mais democrática e respeitosa”, diz.
Domiciano conta que na redução de danos o foco não é a droga. “É o sujeito que usa drogas. E isso muda tudo”. Segundo ele, embora o paradigma do tratamento como sinônimo de abstinência ainda seja hegemônico, o modo de pensar da redução de danos se tornou cada vez mais abrangente. “A redução de danos é uma diretriz do Ministério da Saúde. O usuário de drogas não pode ser tratado a partir da exigência da abstinência. Isso não quer dizer que sejamos contra a abstinência. Mas em 30 anos nós vimos pessoas que faziam uso abusivo de drogas passarem a fazer uso controlado e tocarem suas vidas”.
“A gente não trabalha com uso de drogas como direito humano”, contrapõe Ana Cecília, para quem a redução de danos tem um peso menor: “A redução de danos não é uma política, não é uma diretriz, ela é uma estratégia de tratamento. Só. Lógico que cabe uma estratégia de redução de danos dentro de um ambulatório, inclusive, está escrito na nossa Lei de Drogas”. A ABP, junto com o Conselho Federal Medicina (CFM), escreveu em fins de abril um ofício dirigido aos ministros da Saúde, Ricardo Barros, e do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, que causou forte reação do movimento da Reforma Psiquiátrica e até do Ministério Público Federal. O texto defende a revisão da Política Nacional de Saúde Mental na direção de documentos elaborados por entidades médicas. Essas diretrizes sustentam que, por mais que seja “caro, longo e trabalhoso”, o tratamento visando à abstinência “ainda é o melhor que a medicina pode oferecer”. “Em todas as diretrizes no mundo, o melhor tratamento para o dependente de droga é a abstinência. Nós temos que chegar nela, se vamos chegar reduzindo o consumo, se vamos chegar substituindo por outra droga menos deletéria é isso que a gente vai fazer”, afirma a psiquiatra, que compara substâncias psicoativas a vetores como o Aedes aegypti. “O agente que desenvolve a doença da dependência é a droga. Que nem dengue: você tem um vetor, o mosquito, que leva o vírus que contamina a pessoa. Se não livrarmos o indivíduo do agente – da droga – ele continua dependente e cronificando”.
Mas isso está longe de ser ponto pacífico entre psiquiatras. Segundo Francisco Inácio, quando o assunto é o uso crônico e repetido de crack, não há uma estratégia consensual – seja medicamentosa ou terapêutica. “Isso não existe mesmo em relação ao uso de estimulantes em geral. Crack então, menos ainda. Então esse é o problema: você vai internar para fazer o quê? Manter o cara sedado? Se for para sedar você não está resolvendo, só está adiando o problema. O que você pode fazer em crack é aliviar os sintomas mais graves, situações emergenciais de depressão, ansiedade que, inclusive, impedem a interação do profissional de saúde com o usuário. Mas como as pessoas acham que nada adianta, nem isso elas fazem. Não existe nenhum remédio que tire a pessoa da fissura de usar crack. O que não quer dizer que você não possa ajudar as pessoas, até mesmo estabelecer uma parceria com o serviço de saúde para que o frequentem com o mínimo de assiduidade. Se você pega um cara muito adoecido na cena e não ajuda do ponto de vista social, não alimenta, não medica, não cuida as feridas que ele tem, só bota essa pessoa em tratamento, em uma, no máximo duas semanas ele vai embora. As taxas de evasão são altíssimas”, garante.
O presidente da Aborda destaca que o papel ativo desempenhado pelos usuários de drogas é o ponto de partida sem o qual não se consegue caminhar para o tratamento. “Não se imaginava que usuários de drogas pudessem se organizar politicamente. E o grande lance da redução de danos é esse momento em que os usuários assumem o controle de suas próprias vidas. Isso, numa sociedade extremamente religiosa, conservadora, violenta, demorou muito para acontecer e está em risco depois do que houve em São Paulo. O ‘De Braços Abertos’ demonstrou que quando se trata as pessoas com dignidade, independentemente do uso que elas façam de drogas, e fornece emprego, casa, comida, registro e respeito, elas melhoram muito”, argumenta. Uma pesquisa da Plataforma Brasileira de Política de Drogas mostrou que 65% dos beneficiários afirmaram ter reduzido o consumo de crack depois de ingressar no extinto programa e mais da metade disse ter reduzido o consumo de tabaco e cocaína aspirada. O estudo revelou que 95% avaliaram que o programa teve um impacto positivo ou muito positivo em suas vidas. A moradia (38%), seguida da possibilidade de ter trabalho e renda (37%) e da atuação das equipes (34%) foram destacados como os pontos altos do programa. Dentre os beneficiários, 76% estavam participando da frente de trabalho, em caráter voluntário.
Crack: divisor de águas
Mas para entender as idas e vindas das iniciativas patrocinadas por prefeituras e governos estaduais, é preciso fazer um retrospecto da política de saúde no campo de álcool e drogas. As fontes ouvidas pela Poli concordam que a questão foi deixada em segundo plano pelo movimento da Reforma Psiquiátrica durante muitos anos. “O foco da Reforma foi resgatar a cidadania de um conjunto enorme de pessoas psicóticas internadas em hospitais psiquiátricos, instituições que existiam no país desde o Império”, começa Francisco Inácio. “Depois que a demora é superada, acho que houve um esforço de tentar transplantar o discurso e os conceitos clássicos da Reforma para o tema álcool e drogas sem perceber que há especificidades. Houve, sim, uma certa dificuldade em produzir uma resposta ao senso comum”, diz Denis Petuco. Essa resposta seria cobrada com a explosão do crack.
O crack emerge em São Paulo no início dos anos 1990, mas ganha relevância nacional a partir dos anos 2000. De acordo com Francisco Inácio, dois fatores explicam o fenômeno: o período coincide com um inegável aumento do consumo de substâncias psicoativas – lícitas e ilícitas – e com o aparecimento de uma cena aberta de uso de drogas que, por aqui, ficou conhecida como cracolândia. “Isso não acontecia desde a década de 1970, com uma diferença: aquela cena era ligada à contracultura, com o consumo de maconha, psicodélicos, enquanto a atual é ligada ao crack e envolve populações pobres. Isso tudo contribuiu para uma combinação explosiva entre um problema que ganhou grande visibilidade e a ausência de tradição por parte do Estado em lidar com a questão”, diz o pesquisador, para quem os serviços existentes, como Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPs-AD) e os consultórios de rua, por exemplo, são insuficientes para lidar com a demanda, além de não estarem devidamente integrados em rede. “O Estado não se equipou para lidar com essa questão e, quando a coisa emergiu aos olhos da sociedade como um problema, o sistema de saúde não conseguiu dar conta e acabou atacando por outras vertentes. A primeira delas é a da segurança pública. A segunda é a religiosa, e isso coincide com a expansão das igrejas evangélicas no Brasil e também com o aumento da força política desse grupo. Eu me refiro, claro, às comunidades terapêuticas”, diz ele.
No Brasil, o Ministério da Justiça concentra os órgãos responsáveis pela política de drogas: a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) e o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Em 2011, a Senad passou a financiar vagas em comunidades terapêuticas através do plano ‘Crack: É Possível Vencer’. Em 2015, o Conad aprovou uma resolução que regulamentou o financiamento federal para essas instituições. “Foi um embate muito forte do Ministério da Saúde com a Casa Civil, que coordenava o plano. De um lado, o Ministério, por toda a linha que nós tínhamos – antimanicomial, em defesa da Reforma Psiquiátrica – e, do outro, a Casa Civil administrando os conflitos políticos do Congresso, todo esse debate da governabilidade”, conta Gabriel Medina que na época do lançamento do programa estava à frente do Conselho Nacional de Juventude. “Essa disputa não se resume a um embate entre a esquerda e a direita. É uma disputa mais complexa. O lobby das comunidades terapêuticas e a força da comunidade evangélica no Congresso Nacional são muito pesados. Então, a verdade é que houve tensionamentos que vão além do debate científico, técnico-político. Houve pressão desse setor sobre o governo. Quando surge o ‘Crack, é possível vencer’, nós sofremos uma derrota muito importante”, diz.
A caixa-preta das comunidades terapêuticas
Esse universo pouco conhecido começou a ser desvendado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os primeiros achados foram publicados em março e traçam o perfil das comunidades terapêuticas brasileiras com ênfase no modelo de cuidado proposto e implementado nessas instituições. A caixa-preta, contudo, ainda está por ser aberta. Isso porque não se sabe uma informação básica: quantas comunidades terapêuticas existem no país. O único cadastro disponível foi feito em 2009 pelo Hospital das Clínicas de Porto Alegre e mapeou a existência de 1.963 comunidades que, juntas, ofertavam 83,6 mil vagas para tratamento. O Ipea destrinchou esse cadastro e ampliou as informações por meio de um questionário aplicado a 500 comunidades terapêuticas. O método, garante Maria Paula Gomes dos Santos, coordenadora da pesquisa, permite expandir os resultados para o conjunto dessas unidades: “Sejam elas 2 mil ou 5 mil”.
O novo estudo mostra que nada menos do que 82% das comunidades terapêuticas têm vínculo com igrejas e organizações religiosas. As unidades com orientação pentecostal representam 40% do total e oferecem 41% das vagas disponíveis. Em segundo lugar, estão as católicas (27% e 26%, respectivamente), seguidas pelas que declararam não ter orientação religiosa específica (18% e 19%). “Um achado surpreendente foi a convergência em torno de algumas coisas. Mesmo as comunidades terapêuticas que não têm vínculos com igrejas estimulam o cultivo da espiritualidade. O método é igual: espiritualidade, laborterapia”, diz ela. O estudo considera que há uma banalização do uso de medicamentos: 55% das comunidades pesquisadas admitiram a prática, proibida pela resolução do Conad.
Segundo o estudo, as comunidades terapêuticas estão em franco processo de organização para a defesa de seus interesses. Foi o que se viu depois de 4 de agosto do ano passado, quando a Justiça Federal suspendeu por liminar os efeitos da resolução do Conad, determinando a paralisação dos repasses federais a essas instituições. Nova reviravolta aconteceu em outubro, quando o Ministério da Saúde editou a portaria 1.482, que inclui as comunidades terapêuticas no CNES, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Se a resolução do Conad as caracterizava como “entidades de acolhimento”, agora elas são consideradas “polos de prevenção de doenças e agravos e promoção da saúde”. O Ipea aponta que 41% das instituições recebem recursos municipais, 27,8% estaduais e 24% federal, enquanto 8% recebem financiamento dos três níveis de governo e 56% de pelo menos duas esferas governamentais. Além de financiamentos diretos, diversas comunidades são portadoras de certificações que garantem subvenções como o não pagamento de impostos. “Eu não sei se a briga por recursos é o principal. A comunidade terapêutica é um dos dispositivos da Guerra às Drogas. Eles têm um discurso que demoniza as drogas, querem livrar as pessoas, livrar o mundo das drogas. Então, a briga é muito mais no campo cultural, moral. É claro que há uma disputa em torno de recursos, mas a disputa maior é a disputa moral – que inclui a classe médica”, avalia Maria Paula.
Ainda assim, a pesquisadora considera que as comunidades terapêuticas são apenas a ponta do iceberg. “Ao começar a estudar a relação entre internação compulsória e comunidades terapêuticas no Distrito Federal, temos indícios para afirmar que a maior parte dessas internações são feitas em clínicas privadas. É muito mais perverso, um ganho econômico que se dá pela via da judicialização do cuidado. Do mesmo jeito que alguém pede um remédio caro, pede a internação compulsória do parente e a vaga é financiada com recursos públicos em clínicas privadas que cobram uma base de R$ 2 mil por mês. Comecei a estudar o assunto achando que a comunidade terapêutica era o problema, mas a verdade é que ninguém fiscaliza essas clínicas. Quanto tempo as pessoas ficam internadas nelas?”, questiona. Ela conta que uma das pesquisadoras do estudo do Ipea visitou no Mato Grosso uma clínica que era do mesmo dono de uma comunidade terapêutica. “Ele tinha a comunidade para internação voluntária e a clínica para internação involuntária. A pesquisadora dormiu nessa clínica. O que acontece? Toda noite os quartos são trancados. E quem está internado na clínica? Jovens menores de 18 anos. É impressionante”, descreve.
Francisco Inácio vai além. Para o pesquisador da Fiocruz, a guinada que gestores públicos têm empreendido na política de saúde mental pode estar ligada a interesses privados. “Eu acho que tem um pacto com setores empresariais que andavam meio desativados. Os grandes proprietários de hospitais de saúde mental privados perderam muito com o enxugamento de leitos. Há todo interesse de que se faça uma expansão com outra clientela”. O médico usa como parâmetro manicômios como a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi (RJ), que chegou a receber 2,5 mil internos e foi fechada em 2012: “Aquela clientela da Dr. Eiras não volta mais. Mas nada impede que você faça a mesma coisa com usuários de drogas. E o capitalismo brasileiro adora uma subvenção estatal. Se você conseguir vender a ideia de que vai resolver o problema das cracolândias através de vagas no setor privado subvencionadas pelo poder público, você encontrou o tipo de arranjo que o capitalismo brasileiro gosta. É uma situação de lucro sem a outra face da moeda, que é o risco. Estamos falando de uma demanda garantida, subsidiada parcial ou totalmente pelo poder público e sem nenhuma regulação. Eu acredito que essas clínicas ofereçam serviço de baixa qualidade e apostem em grandes volumes, que elas vão ter. E se juntar com a filantropia, não pagam nem imposto. Então você tem todos os bônus de uma nova onda de internações e nenhum ônus”.