Foi lançada na Câmara dos Deputados, no dia 9 de abril, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Ensino Técnico e Profissionalizante. Formada por 218 deputados e 14 senadores, a Frente pretende atuar pela “modernização” e pela “valorização” do ensino técnico no Brasil. Quem afirma é o seu coordenador, o deputado federal Giovani Cherini (PR-RS). Mas o que se entende como “modernização” e “valorização”? Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, Cherini responde: “Nós estamos vivendo um momento de muito desemprego, então a pessoa se forma em uma faculdade e muitas vezes não tem trabalho. Se nós tivéssemos um investimento grande em escolas técnicas, as pessoas poderiam sair já no segundo grau com o ensino profissionalizante, e poderiam ganhar um salário de ensino médio, para depois fazer uma faculdade". E emenda uma crítica: "Mas no Brasil o ensino técnico perde espaço a cada dia”.
Segundo ele, um dos principais problemas nessa área hoje é que "falta interesse" dos jovens pelo ensino técnico. “Nós precisamos modernizar essas escolas técnicas, que hoje estão quase todas abandonadas, porque seu objetivo foi formar o jovem para fazer vestibular. Nós queremos que os jovens sejam formados para sair trabalhando já no segundo grau, mas que tenham capacidade de competição no mercado”, afirma o deputado, que é técnico agrícola. Ele dá um exemplo: “O jovem que se forma na escola técnica agrícola tem que sair sabendo dirigir um trator, uma colheitadeira, entender de GPS, entender como se usam drones”, aponta.
O apoio à criação de cursos nas áreas de agropecuária e indústria foi anunciado como um dos objetivos da Frente, durante cerimônia de lançamento na Câmara. “É que são as duas áreas que nós temos trabalhado para implantar conselhos federais: o dos técnicos agrícolas e o dos técnicos industriais”, diz Cherini. Em março de 2018 o Congresso aprovou uma lei criando os dois conselhos, mas apenas o dos técnicos industriais foi implementado. “Mas a Frente vai ser pluralista, não vamos privilegiar essa ou aquela área, e sim o ensino técnico profissionalizante como um todo”, garante o deputado.
Cherini afirma ainda que a Frente planeja fazer, até o final de abril, um levantamento dos projetos em tramitação na Câmara e no Senado que digam respeito ao ensino técnico e avaliar os que são ou não de interesse dos parlamentares. “Temos pouquíssimos projetos que trabalham o perfil do ensino técnico e profissionalizante. O corporativismo das categorias com formação universitária é muito forte dentro do Congresso, e o ensino superior é o foco da maioria dos projetos”, ressalta Cherini. Segundo o deputado, a Frente também pretende organizar audiências para discutir com representantes de escolas técnicas as necessidades e os problemas da área.
Boa notícia?
Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marise Ramos considera que a criação de uma frente parlamentar voltada ao ensino técnico no Congresso é positiva tendo em vista uma conjuntura adversa para as políticas sociais como um todo. “É importante que o Legislativo tome para si a defesa de uma área da educação estratégica para um projeto de país, em um momento em que já vínhamos vivendo um processo regressivo de conquistas sociais de um lado, e de outro há uma indefinição absoluta sobre a política educacional nesses cem dias de governo Bolsonaro”, assinala.
O Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), afirmou em nota enviada ao Portal EPSJV pela assessoria de imprensa, que tem a expectativa de que a Frente possa dar “importantes contribuições” às discussões sobre a educação profissional e tecnológica e sobre a Rede Federal, “que necessita se expandir, especialmente em um momento de escassez de recursos”. Segundo o órgão, a recomposição orçamentária é hoje a principal pauta da Rede. “É por meio de investimentos que conseguimos manter e aperfeiçoar as atividades de ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para o desenvolvimento dos arranjos produtivos locais e, principalmente, gerando oportunidades de melhoria de condição social à população das localidades em que as instituições atuam”, diz a nota.
O Conif foi uma das entidades que participou da mobilização para a retirada de tramitação do projeto de lei 11.279/2019, iniciativa do governo Michel Temer, que promovia um conjunto de mudanças na Rede de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (EPCT), formada principalmente pelos Institutos Federais. “Os diálogos estabelecidos com a Casa Civil, com o Ministério da Educação (MEC) e com parlamentares, certamente, cooperaram para a retirada de tramitação da matéria que, sem uma fundamentação técnica plausível, previa alterações à Lei de criação dos institutos federais, propondo mudanças que trariam impactos negativos para as instituições e para a educação profissional”, informa nota do Conif.
Atualmente, o PL 1.711/2019, que tramita na Câmara dos Deputados, é o que causa maior preocupação ao Conif. O projeto propõe a reorganização ou extinção dos cursos de graduação que durante dois anos consecutivos tenham menos de 50% de formandos em relação ao número de vagas ofertadas. “Essa medida seria um retrocesso e, até mesmo, ameaçaria a existência de diversos cursos, inclusive aqueles voltados para a formação de professores. Diante de tal situação, o Conif já se mobiliza para que o projeto seja revisto e retirado de pauta e, para isso, contamos com o apoio das frentes parlamentares que atuam no âmbito da educação profissional e tecnológica”.
Que formação?
Marise Ramos faz algumas ressalvas, no entanto, a respeito das afirmações do deputado que coordena a frente sobre uma suposta “falta de interesse” dos jovens pelo ensino técnico e da necessidade de “modernizar” as escolas técnicas. A pesquisadora da EPSJV/Fiocruz afirma não discordar da necessidade de se modernizarem as escolas, do ensino técnico incorporar tecnologias de ponta e dos jovens se formarem sendo capazes de operá-las, como afirma Cherini. Mas defende uma concepção de educação tecnológica que vá “além da formação para execução”. Por isso enfatiza o ensino médio integrado, que segundo ela é reforçado nas metas do Plano Nacional de Educação – que tem vigência até 2024 – e que aponta para a valorização da educação profissional e tecnológica, a ampliação do acesso, com a expansão de matrículas, particularmente nas redes públicas. “Despertar o interesse do jovem pela tecnologia é importante, mas não para ingressarem imediatamente no mercado. Entendo que a concepção de ensino médio integrado, ao integrar conhecimentos de formação geral com os de formação profissional, pode cultivar o interesse dos jovens pela Ciência e Tecnologia”, avalia Marise.
Ela cita justamente a experiência dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia como exemplo, e defende que sua ampliação precisa integrar a pauta do Legislativo. “O interesse e a possibilidade de continuarem os estudos no ensino superior não é incompatível com o interesse no ensino técnico, nem com a possibilidade de iniciarem uma vida economicamente ativa após a conclusão do ensino técnico. A experiência dos Institutos Federais mostra isso”, pontua.
Foco na saúde
Marise considera que uma frente parlamentar desta natureza precisa expandir seu olhar para além das áreas agrícola e industrial, que segundo ela são historicamente mais bem consolidadas do ponto de vista da educação profissional no país. E reivindica a educação profissional em saúde como uma das áreas que merecem mais atenção dentro do Legislativo. “O contexto do Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego] incentivou que a rede federal ofertasse cursos técnicos em saúde, mas o final do programa tem mostrado que, embora algumas instituições tenham hoje a educação profissional em saúde no âmbito de seus projetos políticos-institucionais, isso não se deu com a abrangência que parecia ter um impacto importante entre 2010 e 2016”, situa Marise. E completa: “Essa é uma perspectiva que essa Frente precisa assumir, de pautar também o quanto seria estratégico a Rede Federal assumir a educação profissional em saúde, para que ela, juntamente com a rede já existente nos estados, a RET-SUS, sejam espaços importantes de construção de um projeto transformador para o trabalho em saúde coerente com os princípios da saúde pública e do próprio SUS”, avalia.
Nesse sentido, ela reivindica também que as instituições e movimentos da Reforma Sanitária contribuam para pautar essa discussão junto aos parlamentares. “Fortalecer a formação técnica em saúde na perspectiva do SUS ajuda a fortalecer o próprio SUS. E hoje o pouco que se conquistou de educação profissional em saúde pública que é a RET-SUS está ameaçada. Os parlamentares precisam se sensibilizar para esta questão”, conclui Marise.