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Entrevista: 
Marise Ramos

‘A relevância da rede de Educação Profissional e Tecnológica no país é imensa’

O que esperar da política de educação profissional no novo governo? Essa é a pergunta que a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise Ramos tenta responder nesta entrevista, a partir da análise de duas iniciativas recentes. De um lado, a decisão do governo de retirar de tramitação o Projeto de Lei n° 11.279, apresentado pelo Executivo no apagar das luzes da gestão Michel Temer, que promovia um grande conjunto de mudanças Rede de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (EPCT), formada principalmente pelos Institutos Federais. Apesar de ter sido retirado de tramitação, não se sabe se o projeto foi definitivamente enterrado. De outro, o documento ‘Visão de Futuro’ sobre a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC), recém-divulgado pelo novo Ministério. “A ideia mais presente é a da revisão”, constata Marise, que fala também sobre a pesquisa que está desenvolvendo neste momento sobre a oferta de educação profissional em saúde pelos IFs.
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 02/04/2019 16h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

O Projeto de Lei 11.279 – que acaba de ser retirado de tramitação pelo governo - trazia, em um único documento, mudanças em diferentes níveis de ensino, como Educação Básica, ensino superior, técnico e profissional e pós-graduação, além de aspectos de gestão. Isso seria um esforço para a remodelação da Rede de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (EPCT)?

A motivação que aglutina diversos aspectos tratados é a lógica econômica, quer dizer, de buscar o princípio da economicidade. Pode-se falar de reordenamento da rede, ainda que de uma forma meio que incipiente. O Projeto de Lei sinaliza parâmetros que podem levar a um reordenamento da rede, como, por exemplo, a proposta de desmembramento dos institutos e a exclusão da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Então, não são medidas de abrangência, quer dizer, elas não mexem com a rede no seu todo, mas são medidas de impacto, do meu ponto de vista, primeiro porque o PL tende a introduzir um critério para a expansão.

Em síntese, o Projeto de Lei sinaliza parâmetros que podem levar a um reordenamento da rede. O impacto da retirada da Universidade Tecnológica Federal do Paraná é uma sinalização para a rede federal de não haver mais universidades tecnológicas. A Lei 11.892, de 2008, lista as instituições pertencentes à Rede Federal, a partir dela foram criadas as instituições, como os Institutos Federais, as Universidades Tecnológicas, como o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) e o Colégio Pedro II. Quando esse PL propõe retirar a UTFPR, inclusive com o argumento de que a sua configuração como Universidade Tecnológica não é coerente com as características da rede federal, é o mercado que diz: olha, a universidade é universidade, põe para cá, instituto é instituto, põe do outro lado. Dessa forma, sinaliza a política de que não haveria mais a perspectiva de outras instituições componentes da rede federal se transformarem em universidade tecnológica. Isso é particularmente um balde de água fria, em especial nos Cefets, que optaram por não se transformarem em institutos aguardando a possibilidade de se transformar em Universidade Tecnológica.

Um dos pontos do PL determinava que os IFs garantissem o mínimo de 70% de suas matrículas equivalentes em curso técnico – e não, por exemplo, cursos mais curtos, de Formação Inicial e Continuada. Isso é uma boa notícia?

O mínimo de 70% das matrículas [de cursos técnicos] poderia parecer uma boa notícia no sentido de reforçar a oferta da educação profissional tecnológica. O PL inclusive alega que atende a Meta 11 do Plano Nacional de Educação (PNE), que diz respeito à expansão das matrículas na educação profissional. O problema é que compromete a Estratégia 7 da Meta 3 do PNE, que dispõe sobre o fomento à expansão das matrículas de ensino médio integrado à educação profissional. Ou seja, o PL não só aumenta para 70%, que aí poderia ser a uma boa notícia, mas retira a prioridade de esta oferta acontecer na formação profissional integrada ao ensino médio. Então, ao elevar os 70%, ela tende a contemplar a Meta 11, de expansão da educação profissional. Mas ao tirar o preferencialmente estratégico ela atinge a Estratégia 7 da Meta 3 que é a expansão da educação profissional integrada ao ensino médio.

A educação profissional pode ser articulada ao ensino médio em três formas: integrada, concomitante e subsequente. Na lei atual, a forma integrada é a preferencial. Esse formato possibilita uma formação de fato integral do trabalhador, que garante o direito à educação básica e à educação profissional, além de uma formação verdadeiramente científica, tecnológica pela articulação entre trabalho, ciência e cultura. Então, pela omissão no PL, desmonta tudo.

Em síntese, no PL existe a retirada do ensino médio integrado e a caracterização da rede federal como uma rede da educação profissional não integrada ao ensino médio. O Projeto de Lei não falava isso com todas as letras, apenas não colocava no texto, não priorizava. Há uma tendência de abandonar uma política estratégica que é a do ensino médio integrado. E isso é grave.

o documento da Setec propõe “fortalecer metodologias que favoreçam a articulação de currículos e a integração entre propedêutico e técnico”. Isso sinaliza na direção da valorização do ensino médio integrado?

A articulação de currículos e a integração propedêutica e técnica é uma sinalização interessante, só que há alguns aspectos a comentar. Essa sinalização se dá no contexto da Lei 13.415 de 2017, da contrarreforma do Ensino Médio que transforma a educação profissional em um itinerário, que pode acontecer de forma não integrada ao currículo. A educação profissional ocorria de forma integrada para que no desenvolvimento do currículo tivesse a integração entre conhecimento de formação geral e conhecimento de formação específica, na base científica dos processos tecnológicos. Só o fato de transformar a educação profissional em um itinerário é uma medida de desintegração. Existe a formação básica e agrega um itinerário na educação profissional.A efetiva integração é não prever educação profissional como itinerário, ela deve integrar de maneira orgânica, para que no desenvolvimento do currículo você tenha a reunião de conhecimento de formação geral e conhecimento de formação específica. O fato de transformar a educação profissional em um itinerário já é uma medida de desintegração.

Sendo assim, o Projeto de Lei e o documento da Setec têm questões em conflito, e não sabemos para onde a política efetivamente vai andar.

O Projeto de Lei determinava a criação de três novos IFs, em São Paulo e Bahia, além de duas novas universidades no Amazonas. Qual sua avaliação sobre isso?

Esses institutos são criados pelo desmembramento dos institutos originais. Tem uma sinalização de critérios para organização de institutos de maneira que eles não tenham um número exorbitante de campi, que dificulta a gestão, e nem institutos com a configuração regional muito dispersa. Essa preocupação é razoável. O problema é que o PL, ao criar esses institutos, estruturava os quadros necessários para a gestão, porque mais uma Reitoria seria criada. Ou seja, a cada novo instituto, existe a criação de vários cargos de gestão. Serão mais reitores, pró-reitores, as funções e cargos comissionados e as funções gratificadas.

Aconteceria também o gasto com a infraestrutura.Como são criados novos institutos, cargos e estrutura de gestão sem aumento de despesa? Se vão criar novos cargos com menos despesa, significa que alguma parte da gestão desses próprios institutos ou do conjunto da rede vai perder recursos, e isso é preocupante.

Além disso, tem que ser questionado se esse desmembramento seria feito com a participação e com a decisão da própria comunidade. Então, qual é a posição do Instituto Federal de São Paulo sobre esse desmembramento? Qual é a posição do Instituto Federal da Bahia sobre esse desmembramento? Isso a gente não sabe. Não podem ser medidas realizadas a despeito, à revelia do posicionamento da comunidade educacional de cada um desses institutos.

Alguns Institutos Federais oferecem mestrado e doutorado acadêmicos. Mas o PL atribuía aos institutos o papel de ofertar os cursos em pós-graduação profissionais. Essa mudança seria positiva para o campo da educação profissional?

Não é positiva. Reconheço a legitimidade dos mestrados profissionais, que são importantes também, valorizando esse projeto superimportante que a rede federal está levando à frente, o chamado ProfEPT.  Contudo, os institutos também têm condições e experiências em atuar na pós-graduação strictu sensu, ou seja, mestrado e doutorado de caráter acadêmico. Essa restrição viola a história, as possibilidades e as capacidades dos institutos federais, que do meu ponto de vista precisam ter autonomia para atuarem na pós-graduação seja na modalidade profissional ou acadêmica. Então, essa é uma medida de restrição, limitação e até mesmo de desvirtuamento dos princípios da rede federal. Aliado à perda do ensino médio integrado, a restrição da pós-graduação promove uma descaracterização da rede federal. É uma ideia de que essa rede seria de formação para ciência aplicada, de formação estritamente técnica.

O projeto alterava as regras de eleição para reitor e diretor geral de campus, propondo que apenas após cinco anos de existência o Instituto pudesse eleger seu dirigente máximo. Nesse intervalo, o governo indicaria um reitor pro tempore. Qual a sua avaliação sobre isso, tendo em vista a tradição democrática da Rede?

O PL pretendia desmembrar e criar novos institutos, que por serem feitos a partir de outros, já contam com os servidores, professores, uma comunidade. Para, dessa forma, colocar o seu dirigente de forma autoritária, sem ter sido eleito democraticamente.

Há outras intenções nisso? Por exemplo, fazer o que é de interesse do Executivo a partir dos seus próprios mecanismos, tendo os seus membros de confiança fazendo a gestão? Esse é mais um elemento que demonstra que essa medida pode estar sendo à revelia dos interesses da rede federal, daqueles que de fato estão implicados na sua realidade, que é a sua comunidade.

Recentemente, o projeto foi retirado de tramitação pelo Executivo. Quais são as suas expectativas? Ele ainda pode ressurgir?

A minha expectativa é que de fato as medidas [que o PL propunha] não sejam implementadas. Pois elas descaracterizam a rede federal científica de educação profissional. Uma hipótese é que a rede e os seus dirigentes busquem se apoderar dessa discussão para encaminhar eventuais mudanças pertinentes a serem feitas na rede federal, a partir dos interesses da própria rede, e sobre os princípios da formação integrada, dos trabalhadores, de instituições que façam a formação em todos os níveis e modalidades, que desenvolvam conhecimento científico-tecnológico. Então, essa é uma hipótese de que eventuais mudanças necessárias não se realizem à revelia da rede federal e contrariamente aos seus princípios que estão presentes na Lei 11.892/2008, de criação da Rede Federal de Educação Científica e Tecnológica. Sendo assim, essa retirada é uma vitória do pensamento mais comprometido com projeto da rede federal.

Outra hipótese que sempre deve ser considerada quando um Projeto de Lei pouco simpático é retirado da pauta é a seguinte: o Executivo, ao identificar que um projeto do seu interesse tem resistência da sociedade pode usar uma manobra para retirá-lo e fazer outro caminho, por medidas, às vezes, autoritárias.

Temos dois exemplos. O primeiro foi o Decreto 2.208, de 1997, que separava a educação profissional da educação básica nas redes e impedia a integração. Esse Decreto foi antecedido pelo Projeto de Lei n° 1603/96, que gerou uma resistência monstruosa da sociedade e dos parlamentares. O Governo de Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato [então ministro da Educação] retirou o PL 1603 do Congresso e baixou o Decreto. Outro exemplo é o Projeto de Lei da contrarreforma do Ensino Médio em 2016. Esse Projeto gerou uma resistência da sociedade e dos parlamentares, e pela mobilização também foi sofrendo emendas. O Governo então retirou esse projeto e fez a reforma via Medida Provisória, um ato coercitivo.

O documento publicado pela Setec/MEC propõe a revisão de diversas normas, leis e outros aspectos relativos à educação profissional e tecnológica. Qual a sua avaliação sobre esse documento?

A palavra que mais aparece neste documento é a palavra ‘revisão’ - dos atos normativos, de princípios e de parâmetros. O que mais se anuncia é a revisão do que existe, o que pode estar sinalizando para um desmonte de todas as conquistas que nós tivemos até agora.

Além disso, o documento trata bastante de inovação, que recoloca a questão do empreendedorismo, da inovação social e da metodologia startup. Ou seja, aparece uma centralidade da vinculação ou da subordinação das instituições de desenvolvimento científico, tecnológico, de formação humana, na lógica do mercado. Dessa forma, acaba se encontrando também com a perspectiva economicista e privatista que está presente na ideologia governamental atual.

No item das formulações de políticas e diretriz, quando traz a questão da ideia dos currículos, o documento mostra desconhecer toda a concepção da formação integrada e do ensino médio integrado. Sendo assim, demonstra um desconhecimento do acúmulo conceitual e científico que a educação, os estudos e as próprias experiências no campo da educação profissional já têm, substituindo por ideias soltas, vazias, algumas até superadas.

Você está desenvolvendo uma pesquisa sobre a oferta de Educação Profissional em Saúde na Rede Federal. Qual é o foco do seu projeto?

A pesquisa foi motivada por um contexto em que o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, ainda no início dos anos 2000, se dispuseram a buscar uma articulação para a formação do trabalhador de saúde, considerando que a Constituição coloca que é do Ministério da Saúde a responsabilidade pelo ordenamento e formação da força trabalho em saúde. E também o processo de expansão da rede federal na oportunidade de ampliação da sua atuação em outras áreas para além daquela que a caracterizou historicamente, que é a área industrial. Então, nós começamos a ver os institutos e a rede federal implementando cursos técnicos na área da saúde, inclusive no sentido de se contrapor a uma hegemonia do ensino privado na saúde. Uma primeira sinalização para a pesquisa é a articulação entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, e outra é a atuação da rede federal, que amplia a oferta pública da formação técnica em saúde. O setor privado é o que mais forma. Além disso, o próprio contexto do Pronatec gerou uma oportunidade de a rede federal ofertar cursos na área da saúde, à medida que essa demanda se colocava em termos logo regionais.

Tendo esse contexto, eu me dispus a investigar essa oferta em dois sentidos. Considerando a Meta 3 do Plano Nacional de Educação, da perspectiva integrada, e a 11, que é a expansão e oferta da educação profissional, eu me dispus a ver o quanto o avanço, o atendimento a essas metas pela rede federal poderia estar acontecendo ampliando-se também a formação na área da saúde.

Atualmente a pesquisa está na fase quantitativa. Foi composta primeiramente por um levantamento da oferta dos cursos educação profissional em saúde a partir do censo escolar até o ano de 2016. Existe uma análise do aumento das ofertas da educação profissional geral e da profissional em saúde pela rede federal. No segundo momento, quantitativo ainda, nós enviamos questionários para todos os Institutos Federais que ofertavam educação profissional em saúde, para nos dar um retrato dessa oferta e também em especial o caráter ligado à estrutura, às motivações políticas e às condições de oferta. O intuito foi procurar entender até que ponto eles tendem a convergir com os princípios do SUS e se tendem a convergir com os princípios da formação integrada.  Identificamos até agora que essa ampliação da oferta da saúde na rede, que nos parecia ser bastante intensa, na verdade pode ter sido sazonal. Houve um boom, digamos uma oferta significativa dos cursos técnicos de saúde fomentada pelo Pronatec, mas com o fim do programa esses cursos estão se extinguindo. Nós também identificamos, por exemplo, uns quatro campi que parecem estar se especializando na oferta da educação profissional em saúde.

A partir da sua pesquisa, como podemos avaliar a importância da Rede Federal para a educação técnica em saúde?

É uma rede pública consolidada, de qualidade, com o acúmulo de conhecimentos na formação integrada. E que pode fazer frente à hegemonia da oferta privada, por outro lado contribuir com as próprias escolas técnicas do SUS. Mas uma questão que também tenho procurado, em minha pesquisa, é analisar até qual ponto esses cursos estão afinados com os princípios do SUS. Na fase quantitativa, estou percebendo que os cursos ofertados pela RET-SUS contam com um acúmulo de reflexão sobre os princípios do SUS. Já os cursos técnicos em saúde com histórico de oferta pela rede privada nem percebem o SUS, pois têm uma herança mais tecnicista. Esses são preliminares. Sendo assim, eu considero que é extremamente importante e estratégica a rede federal atuar nessa área.

E qual a importância da Rede Federal para a educação profissional como um todo no país?

A relevância da rede EPCT no país é imensa, justamente pelo seu histórico, a sua qualidade e suas condições. Trata-se de instituições que têm as bases materiais, condições objetivas, do ponto de vista do acúmulo, do conhecimento, da formação dos seus docentes, que pode nos ajudar na disputa por uma formação humana integral, na perspectiva da politecnica, da formação omnilateral. A rede é estratégica não somente do ponto de vista da sua capacidade, mas porque tem instituições que já carregam essa relação entre trabalho, ciência e cultura.

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