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Conhecimento, ética e política

Palestra de João Arriscado Nunes abre seminário de Direito e Saúde na ENSP
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 07/07/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

“Embora isso muitas vezes não seja óbvio, há sempre uma dimensão política que é constitutiva do conhecimento”. Foi partindo desse princípio que João Arriscado Nunes, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, estruturou sua palestra sobre ‘A política e a ética da construção do conhecimento’, feita na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) nesta semana. O professor abriu o VI Seminário Internacional de Direito e Saúde, realizado na ENSP entre os dias 5 e 6 de julho com o tema ‘Construção do conhecimento e agir político’.

O professor explicou que há diversos modos de conhecimento – entre os quais o técnico e o científico são apenas duas das possibilidades –, mas conhecimentos adquiridos de outras formas, como por experimentação ou tradição, não são sempre validados. “Para poder ser validado, um tipo de conhecimento tende a ser produzido dentro de certos espaços que são tradicionalmente reconhecidos para tal, e por pessoas que precisam ter um certo conjunto de atributos e qualificações”, criticou, completando: “A validação desse conhecimento tem sido feita tradicionalmente a partir da chamada avaliação de pares, pois quem valida o conhecimento são justamente os pares dos cientistas”.

Construindo conhecimento

Arriscado explicou: o conhecimento é resultado da atuação de pessoas que trabalham muitas vezes coletivamente por meio de ações, instrumentos e recursos distintos. Dessa forma, construir é inaugurar algo que não havia antes a partir de elementos heterogêneos – e esse ‘algo’ é mais que a simples soma desses elementos. A analogia é simples: construir conhecimento é mais ou menos como construir um edifício ou uma casa. “Um edifício é feito a partir de materiais, e só conseguimos fazê-lo se organizarmos ações capazes de relacionar esses elementos – pedras, cimento, madeira – de modo que dali saia um prédio”, disse o pesquisador.

De acordo com ele, as semelhanças não param por aí. Uma casa pode ser mais sólida ou mais frágil, e pode ter partes mais frágeis que outras. “Podemos derrubar certas paredes sem que a casa caia. É possível ter um telhado que deixe passar água sem que a casa seja toda destruída. Isso também acontece com o conhecimento. Há sempre determinados aspectos mais sólidos, e há pesquisadores que defendem que as partes mais frágeis das teorias devem ser reforçadas por teorias auxiliares”, disse Arriscado.

O professor salientou que as implicações da construção de um conhecimento nem sempre podem ser avaliadas com precisão antes dos resultados, mas que é preciso estar atento a todas as possibilidades. Ele disse que um discurso presente na fala de muitos cientistas é: “Não estou interessado nas implicações políticas da minha pesquisa: estou apenas construindo, e o que será feito depois não é da minha conta”. Segundo Arriscado, todo conhecimento interfere no mundo. “Cada vez que produzo um enunciado novo, introduzo uma diferença no mundo. Ela pode ser limitada a um grupo pequeno de pessoas, mas muitas vezes vai mais longe”, observou. E deu um exemplo: “Muitos físicos que trabalharam com física nuclear não tinham, de fato, a intenção de desenvolver armas nucleares. Muitos pesquisadores de microbiologia não pretendiam desenvolver armas biológicas. Mas foi o que aconteceu”.

Monoculturas do saber

Outra questão, segundo Arriscado, é se a forma como se faz ciência não gera o que Boaventura de Sousa Santos chama ‘monocultura do saber’ naquela área. É o seguinte: certos programas de pesquisa destinam recursos e atenção apenas a uma determinada área, de modo que inviabilizam outras pesquisas. O professor estudou durante muito tempo o caso das pesquisas sobre câncer, e relatou: “Os pesquisadores me diziam que o câncer é um processo complexo e que envolve vários elementos, mas que, quando iam fazer propostas para obterem financiamento, só podiam pedir recursos para o estudo da biologia molecular do câncer.

Então eles tinham a dimensão de que era igualmente importante estudar as causas ambientais da doença – já que mais de 80% dos casos de câncer têm origem no ambiente –, mas só se financiava pesquisa sobre biologia molecular. Quando 90% dos recursos vão para estudar apenas isso e os fatores sobre os quais efetivamente se pode agir – os ambientais – ficam de fora, temos que nos interrogar sobre como alguns campos de pesquisa de fato se transformam em monoculturas”, disse.

Política ou ética?

De acordo com Arriscado, não há maneira de construir conhecimento com neutralidade, já que sempre há um ponto de vista, e toda perspectiva é parcial. Para ele, é sempre importante olhar atentamente para como se produz o conhecimento, para que a sua dimensão política se torne explícita. E, para isso, devem ser feitas algumas perguntas sobre qualquer forma de conhecimento: Quem o produziu? Como ele foi produzido? Para quem foi produzido? E para quê?

Ele apontou ainda outra questão: quando um projeto de pesquisa é iniciado e precisa de financiamento, em geral, duas perguntas são feitas: qual a sua utilidade? E como se valoriza economicamente essa pesquisa? Para Arriscado, a pergunta sobre a utilidade não é necessariamente má, já que, quando se usa recurso público para fazer uma pesquisa, pode-se considerar que há uma obrigação de fato de justificar o uso desse recurso perante a sociedade, de modo que o resultado do estudo seja útil a ela. “O grande problema é saber quem define o que é útil, e para quem”, ressaltou.

Ele deu exemplos: uma coisa é fazer uma pesquisa que vai ter como resultado a produção de um certo medicamento caro, para uma doença rara, dirigido a pessoas que vão poder pagar por ele. Outra coisa é uma pesquisa que trate de doenças infectocontagiosas mais comuns em populações mais pobres, de tratamentos acessíveis a conjuntos mais vulneráveis da população. Qual delas é mais útil, e para quem? “A noção de utilidade também pode dizer muito sobre a dimensão política de uma pesquisa”, disse.

O segundo elemento – o da importância econômica – também é importante nesse sentido, segundo Arriscado. “Valorizar uma pesquisa dirigida a aumentar a capacidade produtiva de empresas multinacionais é diferente de tornar viáveis e economicamente acessíveis atividades como a agricultura familiar”, exemplificou.

Na saúde

Arriscado observou que o que caracteriza o conhecimento em saúde é ser ele baseado em pesquisa sobre sujeitos humanos, sobre sujeitos humanos e dirigida a sujeitos humanos. Em seguida, discorreu sobre a pesquisa relacionada ao sofrimento humano. “Ela exige um envolvimento nem sempre compatível com as formas tradicionais de produção de conhecimento”, disse. “Isso tem se tornado difícil. Muitas vezes, o financiamento exige uma descrição prévia mais detalhada da pesquisa, com um roteiro pronto, o nome das pessoas que vão ser contatadas. Isso acaba inviabilizando muitos trabalhos – e muitas vezes é feto em nome da ‘ética’, para  proteção dos sujeitos”, disse, demonstrando que o conceito de ética deve ser avaliado a cada caso.

Ele apontou a antropologia médica como um campo interessante, que vem desenvolvendo uma forma diferente de ver o conhecimento na área da saúde. “O conhecimento passa a ser visto como escuta e registro de experiências de vulnerabilidade e de sofrimento. Há casos em que as pessoas com quem os pesquisadores trabalham consideram aquela pesquisa uma ocasião para falar do seu sofrimento, do seu modo de vida, da destruição, das guerras. Com isso, muitos cientistas sociais têm o papel de ajudar a construir o registro da memória -  o que é muito importante para as populações”, afirmou Arriscado. De acordo com ele, isso acaba levando a conclusões diferentes daqueles pressupostos que orientam as pesquisas tradicionais – como o de proteger a identidade dos pesquisados. “Um antropólogo brasileiro chamado João Biehl trabalhou com pessoas em condições extremas de abandono, e o que ouviu foi o pedido explícito de que fosse dada visibilidade a elas e que ele expusesse seus nomes”, lembrou.

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