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Constituição mutante

Conheça as PECs que ameaçam os direitos sociais em várias áreas
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Com apenas 25 anos, podemos dizer que a Constituição ainda é jovem. Mas, nesse tempo, já passou por várias mudanças e muitas outras ainda estão em andamento. Atualmente, a Constituição Brasileira abarca 72 emendas e cerca de 3 mil Propostas de Emenda Constitucional, as chamadas PECs, que estão em tramitação ou arquivadas. Mas o que esses números grandiosos representam? “Certa vez o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Veloso fez uma observação muito interessante: a Constituição está sendo mudada não por seus defeitos, mas por suas virtudes”, lembra o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, que completa: “O neoliberalismo responde por boa parte das mudanças da Constituição, e vemos muitas propostas tentando flexibilizar certos direitos sociais, como os da ordem trabalhista e da ordem econômica. Exemplos disso são as agências reguladoras criadas e o monopólio do petróleo sofrendo relativização”. Emblemático nesse sentido foi o ano de 2000, momento que mais teve emendas constitucionais aprovadas, seguido pelo ano de 1996, ambos sob o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

O professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Dalmo Dallari acredita que ainda não é tempo de ver a Constituição sob olhos pessimistas, e que é preciso lutar pelo que ainda não foi legislado. “Do ponto de vista jurídico, existe a inconstitucionalidade por ação, mas também por omissão. Demos atribuições ao Ministério Público para que penalize aqueles que deixam de cumprir deveres constitucionais, mas isso não tem acontecido. As ações contra as omissões estão fazendo muita falta”, analisa.

Para o professor, o problema do desmonte da Constituição se origina na representatividade. “A experiência tem confirmado que o nosso sistema eleitoral é precário e está longe de ser efetivamente representativo. É preciso repensar que na origem já havia este tipo de problema, porque quando defendíamos uma Assembleia Constituinte, a proposta era que o povo elegesse o que se chamou de Constituinte exclusiva, que nada mais é o povo eleger aqueles que fariam a Constituição, e depois, acabada a tarefa, encerraria-se o mandato desta comissão. Mas houve uma resistência muito grande das oligarquias, que defenderam a eleição de um Congresso Nacional com poderes constituintes, e, então, o povo elegeu deputados e senadores que fizeram a Constituição e depois continuariam os seus mandatos”, lembra.

PECs das ruas

Algumas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) ganharam grande evidência durante as manifestações de junho, mas, entre as mais populares estava a PEC 37/2011 , do deputado Lourival Mendes (PTdoB/MA), que  determinava de forma exclusiva o poder de investigação criminal para as polícias federal e civis, retirando esta atribuição do Ministério Público (MP). Como resposta às manifestações, esta proposta foi votada e arquivada em tempo recorde. “A PEC 37 não deveria nem ser proposta, porque ela quer tirar do MP o que a Constituição autoriza por definição, que é o setor investigatório em matéria criminal. É preciso fazer distinção disso com abrir inquérito policial. Naquele momento foi uma interpretação técnica equivocada. O inquérito policial, que é particular da polícia, é uma investigação criminal, mas nem toda investigação criminal é um inquérito. Essas diferenças mais sutis, os parlamentares nem sempre alcançam”, explica Ayres Brito. 

Como parte das pautas conservadoras, a defesa da redução da maioridade penal também ganhou força neste período, e o Senado, mais uma vez de maneira ágil para responder às ruas, determinou que diferentes propostas que tratavam sobre o mesmo assunto tramitassem conjuntamente, acelerando assim o processo. No total, foram seis PECs sobre a redução da maioridade penal que voltaram a tramitar: 20/1999 , 90/2003 , 21/2013 , 74/2011 , 83/2011 e 33/2012 . Em entrevista à Poli nº 29 , o professor de Direito Penal e presidente do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Nilo Batista, classificou esse movimento  como sinal de enfraquecimento da democracia: “Quando fizemos a Constituição, em 1988, em um dos primeiros dispositivos falávamos sobre uma sociedade livre, justa e igualitária. Neste momento, nós tínhamos 100 mil presos. Hoje nós estamos caminhando para 600 mil presos e, além disso, estamos com uma sociedade vigiada. Muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático, sinaliza autoritarismo”, analisou.

Não é de agora que a penalização é uma dos assuntos que são temas de propostas de Emendas Constitucionais. A PEC nº 1, apresentada um dia após a promulgação da Constituição, queria instituir a pena de morte no país. A proposta, de autoria do então deputado Amaral Netto (PDS/RJ), foi arquivada dez anos depois, mas outras relativas ao mesmo assunto já estiveram em tramitação, como a 231/2000 , do deputado Coronel Garcia (PSDB/RJ) e 113/1999 de Luciano Bivar (PSL/PE). Ambas estão arquivadas neste momento.

PECs das bancadas

A PEC 99/2011 , de autoria de João Campos (PSDB/GO), é reconhecida por aumentar o poder das igrejas, pois confere às organizações religiosas poderes restritos a determinados representantes do Estado, como o de declarar Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADECON). Atualmente, só é conferido este poder ao Presidente da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e  confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Para os seus críticos, a PEC 99/2011 além de conferir maior poder a instituições religiosas, fere a laicidade do Estado.

A discussão sobre o Estado laico também tem aparecido em propostas de emenda à constituição que tratam de temas como o aborto. Atualmente, duas propostas estão arquivadas e uma em tramitação, a PEC 25/1995 , de Severino Cavalcanti (PFL/PE), que propõe a inclusão do termo ‘desde a sua concepção’ na redação do trecho ‘Direito à Vida’, na parte em que se encontram os Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição. O que preocupa pesquisadores e militantes da área é que a discussão do aborto tem se pautado no campo da religião e não da saúde pública. A coordenadora do grupo Católicas Pelo Direito de Decidir, Rosângela Talib, em entrevista à EPSJV/Fiocruz na matéria ‘Em nome do pai, em nome do filho’ destacou o perigo de se legislar levando em consideração as crenças religiosas. “Sua crença e as decisões tomadas devido a esta crença são de foro íntimo, não devem pautar a nação. Se eu acho errado o aborto, não vou fazer isso para a minha vida, mas não posso fazer com que outras pessoas coloquem em risco a própria vida, transformando o abortamento em problema de saúde pública”, analisou Rosângela, que acrescenta: “É através do respeito à laicidade que teremos o respeito a todas as religiões”.

Outras PECs são defendidas pela bancada religiosa, como a 387/2005 , de autoria do Pastor Pedro Ribeiro (PMFB/CE), que inclui orientação religiosa como dever da família, da sociedade e do Estado.Uma das Propostas de Emenda Constitucional em maior evidência nas últimas semanas é a 215/2000 , de autoria do deputado federal Almir Sá (PPB/RR), que propõe que seja competência exclusiva do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas. “A bancada ruralista, a serviço de interesses privados, quer a qualquer custo suprimir os nossos direitos, rasgando a Constituição Cidadã, por meio de dezenas de Projetos de Lei e Emendas à Constituição, em especial a PEC 215/00, PEC 237/13 , PEC 038/99 , PL 1610/96 e PLP 227/12 e outras tantas iniciativas legislativas nocivas, destinadas a legalizar a exploração e destruição, disfarçada de progresso, dos nossos territórios e da mãe natureza, em detrimento da integridade física e cultural das atuais e futuras gerações dos nossos povos e culturas”, diz a nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) publicada em repúdio à Proposta. Outra PEC, de número 49/2006, do senador Sérgio Zambiasi (PTB/RS), propõe a redução da faixa de fronteira nacional em 100 quilômetros, para permitir que empresas estrangeiras adquiram terras brasileiras nessas regiões. “A Constituição é suficientemente boa para proteger os direitos dos indígenas. Por isso, é um perigo que se mexa nestes capítulos. Há uma falta de cultura antropológica para entender que os indígenas merecem do ordenamento jurídico brasileiro um tratamento prestigiador e favorecedor da sua cultura, das suas singularidades”, opina Ayres Britto.

Também atribuída à bancada ruralista, tramita ainda no Congresso a PEC 191/2000, de Alceu Collares (PDT/RS), e outras apensadas a ela, como a PEC 268/2008, do deputado Celso Russomano, que  tratam da redução da idade mínima para o trabalho, de 16 para 14 anos, e consequentemente, de 14 para 12 anos para a aprendizagem.

Nem tudo são espinhos

Em julho de 2013 foi instaurada uma comissão especial responsável por analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 90/11), que inclui o transporte entre os direitos sociais. A autora da PEC,  deputada Luiza Erundina (PSB-SP), ressaltou que a iniciativa demonstra atenção à demanda das ruas. “Vetor de desenvolvimento relacionado à produtividade e à qualidade de vida da população, sobretudo do contingente urbano, o transporte destaca-se na sociedade moderna pela relação com a mobilidade das pessoas, a oferta e o acesso aos bens e serviços. Como é de amplo conhecimento, a economia de qualquer país fundamenta-se na produção e no consumo de bens e serviços, como também no deslocamento das pessoas, ações que são mediadas pelo transporte”, diz a justificativa.

Tornada urgente devido a tantos registros recentes de violência policial, sobretudo no contexto das manifestações populares que tomaram as ruas do Brasil, entrou em tramitação a PEC que trata da desmilitarização da polícia, prevendo que as polícias Militar e Civil constituam um único grupo policial, e que todo ele tenha uma formação civil. A PEC 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT/RJ), busca corrigir duas distorções: a partição do ciclo de policiamento e a inexistência de carreiras únicas em cada instituição. Atualmente, outros dois projetos de Emenda à Constituição circulam no Congresso Nacional nesta defesa. A PEC 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT) e a PEC 430/2009, do deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), ambas com o objetivo de desmilitarizar também o Corpo de Bombeiros e dar outras funções para as guardas municipais. Ainda sobre a Polícia Militar, encontra-se em tramitação a PEC 300/2008, de Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP) que estabelece que a remuneração dos policiais dos estados não poderá ser inferior à da Polícia Militar do Distrito Federal, aplicando-se também aos integrantes do Corpo de Bombeiros Militar e aos inativos.

Está em tramitação ainda a PEC do Trabalho Escravo (57A/1999) de Ademir Andrade (PSB/PA), que permite a expropriação de terras com destino à reforma agrária naquelas regiões em que se constate a existência de trabalhadores em regime de escravidão ou o cultivo de psicotrópicos. A PEC foi recentemente aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, mas continua sem data de votação no Plenário.
 

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