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Anos 2000: continuidade ou ruptura do desmonte neoliberal?

Mudanças na Constituição no período aprofundam perdas de direitos sociais que marcaram a década anterior
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Manifestação em Brasília organizada pelas centrais sindicais em 2010 Foto: CSP-Conlutas

Cinco anos atrás, quando a Constituição Federal de 1988 completava duas décadas de existência, saía a primeira edição da Poli, toda dedicada ao tema. Ali, a revista falou sobre o processo de mobilização popular que marcou a redemocratização do Brasil, e que garantiu, no texto constitucional, o compromisso do Estado brasileiro em garantir direitos sociais como saúde e educação públicas, entre outros, aos seus cidadãos. A revista falou também, no entanto, das dificuldades em fazer com que isso saísse do papel, num contexto de crise econômica em que se difundiram por aqui os dogmas do neoliberalismo, ideário surgido na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1980 que defendia que a saída para a crise era uma diminuição do Estado – que ganhou a pecha de perdulário, ineficiente e corrupto – e a autorresponsabilização dos indivíduos frente a seus direitos, que deveriam não mais ser garantidos por meio de políticas e serviços públicos, mas sim através do mercado.

Foi essa a tônica dos governos que se seguiram à promulgação da Constituição, ao longo dos anos 1990, e o resultado foi uma crescente liberalização da economia, com as privatizações de empresas e serviços públicos, uma política econômica que dava prioridade à formação de superávit primário para pagamento da dívida interna e externa, aumento dos juros para garantir investimentos externos, entre outras medidas. Com isso houve um contingenciamento dos recursos para as políticas sociais, que, de universais, como previa a Constituição, tornaram-se cada vez mais focalizadas e assistencialistas. Isso se traduziu em diversas alterações no texto constitucional no sentido de esvaziar o papel do Estado e diminuir os direitos sociais conquistados ali, como, por exemplo, a Reforma da Previdência que, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, criou o polêmico fator previdenciário; e a criação, também no governo FHC, da Desvinculação dos Recursos da União (DRU), que legitimou a retirada de recursos que deveriam para as áreas sociais para serem canalizados para o pagamento da dívida pública, entre outras.

Continuidade ou ruptura?

A partir do governo Luis Inácio Lula da Silva, no entanto, a retórica neoliberal, pelo menos oficialmente, perdeu força, e entrou em cena o chamado neodesenvolvimentismo, que postula que o Estado deve adotar medidas de política econômica para conjugar crescimento e distribuição de renda. Mas será que essa mudança significou avanços para a garantia dos direitos sociais previstos na Constituição ao longo dos últimos anos?

Não para Rodrigo Castelo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), para quem o neodesenvolvimentismo manteve os pilares básicos do neoliberalismo em termos de política econômica. Ele exemplifica: “O governo mantém o superávit primário para pagamento da dívida; continua fazendo privatizações, agora sob o modelo de concessões e PPPs [parcerias público-privadas], mantém a meta inflacionária, e quando tem algum problema nas contas externas aumenta os juros”, enumera, e conclui: “Há mudanças pontuais, mas o essencial da política ainda é neoliberal”. A principal mudança, diz ele, se deu na atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que passou a atuar sob um “projeto de formação de conglomerados do capital financeiro brasileiro”. “Essa é a novidade; vão formar essas grandes multinacionais brasileiras nos setores de mineração, siderurgia, construção civil, energia, agronegócio, aeronáutica, papel e celulose e também na área de infraestrutura, para atuar internamente e na América Latina e África”, diz o professor da Unirio.

A continuidade se dá também nas políticas sociais, continua Castelo: “Os projetos do governo nessa área são claramente identificáveis com o projeto neoliberal: conceitos como equidade social, que hoje é defendido pelo Banco Mundial, empoderamento, voluntariado, parcerias com o terceiro setor: tudo absolutamente defendido nos textos do novo desenvolvimentismo e do governo”, aponta. Já as políticas de transferência de renda, carro-chefe do neodesenvolvimentismo na área social, segundo Rodrigo, têm como princípio monetarizar os indivíduos para que eles possam adquirir, no mercado, os insumos de que necessitam para garantir sua subsistência, o que vai na direção contrária da defesa de direitos, como educação e saúde, que pautou a luta dos movimentos sociais organizados para a Constituição de 1988. “A lógica da transferência de renda é: vamos dar dinheiro para a pessoa acessar o mercado para comprar mercadorias, cultura, educação, saúde, previdência, esporte, que são todos direitos sociais mas que estão num processo contínuo de mercantilização”, afirma, concluindo: “Em relação aos direitos sociais podemos constatar inclusive retiradas de direitos de trabalhadores”.

Desmonte da Previdência: parte 2

Uma das formas pelas quais se deu essa retirada de direitos sociais foi justamente por meio de alterações na Constituição de 1988, seja na forma de emendas ao texto, seja na aprovação de leis complementares que deveriam regulamentar artigos da Carta Magna, mas que acabaram por flexibilizá-la. Como lembra Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos últimos anos foram aprovadas mais de 30 Emendas à Constituição . “Não existe isso em nenhuma sociedade que se queira estável e desenvolvida. Mudar a Constituição nos Estados Unidos e na França, por exemplo, é mobilizar a sociedade inteira, e aqui emendas são feitas toda hora. É impactante”, analisa. Segundo ela, a maioria delas trouxe retrocesso para a classe trabalhadora. “De um ponto de vista geral, foram emendas que beneficiaram o capital, ou seja, aumentaram o Estado para o capital e diminuíram para os trabalhadores”, diz. Exemplo disso apontado por ela foi a Emenda Constitucional 41, aprovada em 2003, que deu continuidade à reforma da Previdência iniciada no governo FHC cinco anos antes, e que retirou direitos previdenciários dos servidores públicos. Com sua aprovação, os servidores públicos perderam o direito anteriormente previsto na Constituição de se aposentarem recebendo o valor de seu último salário. A EC 41 estabeleceu que o valor das aposentadorias não poderia ultrapassar o teto do INSS, hoje em pouco mais de R$ 4 mil. Ou seja, se quiserem manter na aposentadoria o mesmo padrão de vida que tinham antes de se aposentar, os servidores públicos passaram a ter que recorrer aos planos de previdência complementar. Sara Granemann destaca ainda que a Emenda alterou o texto constitucional de modo a permitir a cobrança de contribuições previdenciárias dos servidores aposentados e acabou com a paridade de salário entre ativos e aposentados, que deixam de ter seus salários reajustados como uma forma de economizar na conta previdenciária. “Não se faz contrarreforma na seguridade por escassez de recursos, e sim porque há muitos recursos nessas políticas sociais, mas não se quer deixar que eles fiquem nas políticas sociais [...] Essas gigantescas somas de dinheiro têm que ser carreadas para o mercado financeiro e para a reprodução do lucro, e não para trazer melhorias nas condições de vidas dos trabalhadores”, denuncia.

A professora destaca como consequência da Emenda 41 o crescimento da previdência complementar fechada, os chamados fundos de pensão, constituídos por contribuições de trabalhadores de empresas privadas e também estatais. Esse mercado, diz ela, passou de pouco mais de R$ 100 bilhões para R$ 600 bilhões nos últimos anos. Segundo Sara, os fundos fazem aplicações, por exemplo, comprando ações de empresas lucrativas. “Ao comprar títulos públicos, essa previdência privada de categorias de trabalhadores pressiona para que, por exemplo, a taxa de juros do Estado brasileiro não caia para que os títulos gozem de importante remuneração de juros, que são pagos com o dinheiro da seguridade social, da educação, de tudo o que faz superávit”, explica. Isso se deu, em parte, também por meio de outras Emendas Constitucionais promulgadas na última década com vistas a prorrogar a vigência da DRU: as Emendas 42, 56 e 68, de 2003, 2007 e 2011, respectivamente. Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), a DRU retirou da seguridade social mais de R$ 300 bilhões entre 2006 e 2012.  Segundo Rodrigo Castelo, a DRU é importante para refutar o argumento, usado para legitimar a Reforma Previdenciária, de que a Previdência é deficitária. “No orçamento público brasileiro, a Previdência estaria dentro da Seguridade Social, e se pegarmos esse sistema percebemos que ele é superavitário. Só que o governo desvia essas verbas para fazer fundo do superávit primário. Tem estudos que apontam que o superávit primário é feito em torno de 50% das receitas das áreas sociais. Então não é que eles sejam escassos para as áreas sociais; essa escassez é produzida politicamente, socialmente e economicamente”, analisa.

Saúde: nada de novo no financiamento

O argumento da escassez de recursos – muito embora em 2012 tenham sido destinados 44% do Orçamento Geral da União para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, o que equivale a mais de R$ 850 bilhões – impôs derrotas também para a Saúde, que junto com a Previdência e Assistência Social, forma o tripé da Seguridade Social prevista na Constituição. Depois de 11 anos da aprovação da Emenda Constitucional 29 - que procura estabelecer os recursos mínimos que a União, os estados e os municípios devem aplicar em saúde – o Congresso aprovou, em 2012, a Lei Complementar 141, para regulamentá-la. A esperança era de que a regulamentação trouxesse mais recursos para o SUS, segundo Áquilas Mendes, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). “Na emenda 29 a União ficou com uma base de cálculo esdrúxula: ela não tem a base vinculada em cima de impostos, mas sim na variação nominal do PIB. Como o crescimento brasileiro tem tido uma tendência bastante oscilante, há momentos em que se tem uma variação mais baixa. Então a grande expectativa com relação à Lei Complementar 141 era de que ela mudasse a base de cálculo da União, para pelo menos ter um maior compromisso. Mas dada a correlação de forças, era muito difícil que o governo se comprometesse mais com o investimento em saúde, dada a lógica da política econômica, com o favorecimento do capital financeiro”, avalia complementando que a aprovação da lei, de fato, não mudou essa situação. “O grande pleito era que 10% da receita corrente bruta da União fosse aplicado em saúde. Isso não aconteceu porque se manteve a mesma base de cálculo e então ela não trouxe nenhum dinheiro novo, foi um engodo do ponto de vista do financiamento”, critica Áquilas. Segundo o professor da USP, mesmo a aprovação da destinação de 10% da receita corrente bruta da União na saúde, como reivindica um Projeto de Lei de Iniciativa Popular atualmente em tramitação no Congresso, não seria suficiente para garantir a universalidade da atenção à saúde, como prevê a Constituição. “Com isso, a saúde teria R$ 45 bilhões a mais por ano, mas ainda assim estaríamos longe de garantir a universalidade no país. Esse projeto é uma bandeira, mas não resolve o subfinanciamento. Para isso precisaríamos dobrar a aplicação via PIB, que hoje é de 3,8%; precisaríamos de R$ 150 bilhões para chegar a um patamar de países com sistemas públicos universais, que aplicam em média 8,3% do PIB”, calcula.

Mais alunos com os mesmos recursos

A questão do financiamento também foi central para as alterações constitucionais que versaram sobre a educação no período, que muitos analistas consideram que trouxe avanços para a área, mas que ainda não foram capazes de garantir o que a Constituição apregoa devido a limitações impostas pela ordem política e econômica. É o caso da EC 53, aprovada em 2006, que criou o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Segundo José Marcelino Rezende Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP), houve um avanço com relação à complementação da União no Fundo, mas muito tímido. “Ficou estabelecido que a União deveria colocar 10% do que é colocado no fundo pelos estados e municípios, mas se considerarmos que ela é o ente mais rico da federação, ficando com mais da metade da carga tributária líquida, isso fica muito aquém de qualquer perspectiva de uma educação de qualidade. O valor mínimo do Fundeb hoje representa algo em torno de R$ 120 por mês, é pouco”, diz.

Dermeval Saviani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também avalia que o Fundeb trouxe avanços do ponto de vista da gestão e do financiamento da educação, mas pondera que o Fundo também protela o cumprimento de um artigo presente nas disposições transitórias da Constituição de 1988. Ele explica que ali ficou estabelecido que, até 1998, União, estados e municípios deveriam destinar 50% do orçamento da educação para garantir a universalização do ensino fundamental e a erradicação do analfabetismo. Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), antecessor do Fundeb, por meio da EC 14, de 1996, isso foi alterado de modo que a Constituição passou a exigir 60% dos recursos de estados e municípios e 30% da União. “Como a Constituição não foi cumprida, a meta foi prorrogada por mais dez anos. Em 2006 venceu o Fundef, veio o Fundeb e prorrogou a meta por mais 14 anos. Assim, um dispositivo constitucional não foi cumprido e foi jogado para dados futuros”, analisa Saviani, complementando que isso implica um certo desmonte, “porque o que a Constituição deixou claro que tinha que ser resolvido em dez anos foi sendo adiado e, no caso do Fundef, ainda com a diminuição do comprometimento de recursos da União”.

A Emenda Constitucional 59, de 2009, foi outra alteração que, embora tenha trazido mudanças consideradas como avanços ao texto constitucional, na prática pode representar também retrocesso na qualidade do ensino público devido às limitações impostas pelo subfinanciamento. Essa Emenda acrescentou ao texto constitucional a obrigatoriedade de o Estado garantir educação gratuita de 4 a 17 anos e acabou com a incidência da DRU sobre a educação. “Na verdade, quem teve uma folga de recursos orçamentários foi o governo federal e quem vai arcar com essa ampliação da obrigatoriedade são os estados e municípios, que são responsáveis pela educação básica. É uma conta simples: se não aumentei os recursos e coloquei mais pessoas no sistema educacional, a parte de cada um será menor. A consequência vai ser uma diminuição dos recursos por aluno, que vai afetar a qualidade de um sistema cujo gasto por aluno já é muito baixo”, esclarece José Marcelino. Aqui, diz ele, a discussão remete ao Plano Nacional de Educação (PNE), outro dispositivo previsto na Constituição e alterado pela EC 59, que estabeleceu uma meta de aplicação de recursos públicos na educação atrelada ao PIB. Hoje o PNE, elaborado pela 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae), em 2010, e que deveria já estar em vigência desde 2011, se encontra em tramitação no Congresso. “Essa discussão está travada e não é pela oposição, mas sim pelo próprio governo, que tem sistematicamente piorado a proposta que veio da Conae”, opina José Marcelino.

"Desde 1930 estamos criando um Estado moderno, e 1988 foi outra tentativa de abrir e democratizar inclusive a forma de gestão pública, não só os benefícios. Mas está difícil, porque os conservadores continuam onde sempre estiveram e não querem abrir mão de seus privilégios”

Sonia Fleury

Flexibilização da legislação trabalhista

As disposições constitucionais que se referem aos direitos trabalhistas também sofreram alterações no período, sinalizando uma continuidade da flexibilização da legislação trabalhista que marcou os governos Collor, Itamar Franco e FHC. Em sua tese de doutorado, intitulada ‘Cerco aos direitos trabalhistas e crise do movimento sindical no Brasil contemporâneo’, de 2009, a professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Cleier Marconsin localiza em um documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2006, a defesa, no âmbito do governo, dos interesses do empresariado em detrimento dos trabalhadores. Nele, escreve Cleier, “as legislações trabalhista e previdenciária, a negociação coletiva e a Justiça do Trabalho, nomeadas de ‘instituições do mercado de trabalho’, são consideradas como elementos que interferem negativamente na competitividade das empresas. Limitam as empresas em decorrência da nova realidade mundial, entravando o desempenho do mercado de trabalho e da economia”. O documento do Ipea, afirma Cleier, aponta que a Constituição foi uma das causadoras dessa situação, reforçando o papel de proteção da Justiça do Trabalho, tornando a organização sindical “mais livre, reduzindo as restrições quanto às bases de categorias e territoriais, além de tornar mais fácil o seu registro junto aos órgãos do governo”, adicionando novos direitos e ampliando os que já existiam.

Amparado nesse ideário, segundo Cleier, o governo da época deu continuidade a um projeto de flexibilização da legislação trabalhista, que inclusive é um dos itens da Carta Compromisso enviada em 2003 pelo governo Lula ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso se concretizou em alterações constitucionais como a Emenda 45, aprovada em 2004, que, segundo a professora da UERJ, flexibilizou a ação da Justiça do Trabalho no que se refere à arbitragem de negociações entre trabalhadores e empregadores, inserindo a expressão “de comum acordo” no trecho da Constituição que dispõe sobre os critérios que devem ser obedecidos antes que a Justiça do Trabalho possa ser acionada para mediar conflitos. “Nos impasses na negociação no período da data-base, ou se não acordar-se a contratação de árbitro privado, os trabalhadores, através de seu sindicato, poderão buscar a Justiça do Trabalho apenas de comum acordo com os patrões. Esse dispositivo flexibiliza o poder normativo da Justiça do Trabalho, impossibilitando aos Tribunais do Trabalho – no julgamento de dissídio coletivo – a fixação de normas, condições de trabalho, índice para reajuste salarial, etc., caso os patrões discordem de seu acionamento”, escreve Cleier. Embora tenha sido defendida como avanço, ao impedir que, por exemplo, os empregadores acionem a Justiça do Trabalho antes de esgotar todas as possibilidades de negociação, a professora considera que ela prejudica o elo mais fraco da relação capital e trabalho, ou seja, os trabalhadores, ao desconsiderar que “a grande maioria das categorias, no Brasil, não possui força política nas negociações livres com os patrões, diferentemente de metalúrgicos, bancários, petroleiros e outras poucas, que alcançaram relação de forças para negociar condições acima do que estipula a lei”, escreve.

O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), em nota, também se posicionou sobre a Emenda, argumentando que, com sua aprovação “só restará aos sindicatos, em caso de recusa da empresa ou da entidade sindical patronal à negociação, o recurso à greve para forçar o entendimento, sem a qual é impossível o atendimento da pauta de reivindicação. Entretanto, a Justiça do Trabalho, ao julgar a greve, não poderá examinar as reivindicações que a motivaram, restringindo-se apenas a ela, pois só terá condições de utilizar-se do Poder Normativo se o dissídio for ‘de comum acordo’ entre patrão e entidade sindical de trabalhadores”, aponta o texto. Segundo Cleier, a questão do direito de greve é tratada em outra modificação trazida pela EC 45, que expressa de maneira mais clara quais os interesses que ela buscou garantir, ao incluir um terceiro parágrafo ao artigo que trata das atribuições da Justiça do Trabalho, estabelecendo critérios para a realização de greves “em atividade essencial”. Diz o parágrafo: “Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito”. Em sua tese, ela critica a inclusão do parágrafo, que significaria “uma total interferência do Ministério Público do Trabalho – sem comum acordo de parte alguma, pois ele pode pedir o julgamento da greve à Justiça do Trabalho, caso entenda que ela lesa o interesse público e a Justiça do Trabalho pode julgar a greve, sua legalidade ou ilegalidade, inclusive, multando o sindicato que venha a descumprir sua decisão”. Ou seja, a Justiça do Trabalho não pode interferir para julgar conflitos com relação a reajustes salariais, por exemplo, se não houver acordo entre empregadores e trabalhadores, mas pode julgar, nas atividades “essenciais”, as greves iniciadas pelos trabalhadores quando a negociação com os empregadores não avança. “E ainda não foi regulamentado o que é atividade essencial, ficando a critério do juiz decidir”, aponta Cleier.

Direitos sociais e privilégios de classe

Como aponta Rodrigo Castelo, a efetivação do que prega a Constituição no que se refere aos direitos sociais passa pela organização e autonomia dos trabalhadores: “Conquistar direitos sociais mesmo dentro da ordem capitalista é possível, mas só se mostra quando a classe trabalhadora tem uma organização própria sem estar atrelada às classes proprietárias, e uma consciência de classe desenvolvida a partir das lutas, que foi o que aconteceu no final dos 1970 e nos anos 1980. Isso só vai acontecer quando a classe trabalhadora perceber que um dos principais problemas que não vão permitir a conquista de novos direitos sociais é justamente essa economia política rentista que foi implementada pelo neoliberalismo”, diz.

Para a professora Sônia Fleury, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), não importa o nome que se dê ao projeto político e econômico em curso, neoliberalismo ou neodesenvolvimentismo, o que importa são os interesses de classe que eles atendem. “Acho que a ideologia do neoliberalismo deu uma justificativa técnica e ideológica para o conservadorismo, mas ele não nasceu nem terminou com o neoliberalismo. Com quem esse governo se alia? Essa é uma questão muito mais estrutural, de classes sociais, de ideologias, privilégios e dominação de classes”, opina, para em seguida concluir: “Acho que a grande questão é a incapacidade das classes dominantes de verem que Brasil não pode seguir mais sendo oligárquico, sejam oligarquias modernas como o agronegócio, sejam as tradicionais. Desde 1930 estamos criando um Estado moderno, e 1988 foi outra tentativa de abrir e democratizar inclusive a forma de gestão pública, não só os benefícios. Mas está difícil, porque os conservadores continuam onde sempre estiveram e não querem abrir mão de seus privilégios”.

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