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De volta ao passado

Política pública sobre drogas poderá ser orientada pela abstinência, com foco na internação em clínicas de reabilitação
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 09/03/2018 11h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Com 16 votos dos 22 membros presentes, Conad aprova resolução que poderá alterar a política sobre drogas Foto: Isaac Amorim/Ministério da Justiça

A política pública sobre entorpecentes pode sofrer uma mudança profunda. É que, com 16 votos dos 22 membros presentes, no último dia 28 de fevereiro o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) aprovou (28/2) a resolução apresentada pelo ministro do Desenvolvimento Social e conselheiro do Conad, Osmar Terra, segundo a qual a “orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”. Em termos práticos, o conceito de abstinência se sobreporá ao de redução de danos no cuidado dos usuários de drogas. A resolução privilegia as comunidades terapêuticas e grupos de mútua ajuda — a maioria vinculada a igrejas —, em detrimento dos Centros de Atenção Psicossocial para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas (CAPS-AD), dispositivo que foi considerado o marco da Reforma Psiquiátrica brasileira. “Trata-se, neste caso, de um retrocesso, que tem por trás interesses empresariais e econômicos de conservadores com muita influência na política”, sentencia o psiquiatra Marco Aurélio Soares Jorge, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A proposta de redução de danos propõe minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas. No Brasil, a primeira experiência nesse sentido ocorreu em 1989, na cidade de Santos, com a distribuição de seringas estéreis entre usuários de drogas injetáveis, com o objetivo de conter a disseminação do HIV/Aids.

Para o pesquisador, além de colocar como única via de tratamento as comunidades terapêuticas, a proposta de Osmar Terra focaliza a droga e não o usuário, tratando a questão como um problema de segurança pública e não de saúde pública.  “A abstinência, ao seguir o caminho do combate veemente às drogas, não considera o indivíduo. Já a redução de danos, que não é contra a abstinência, mas a tem como último recurso, desponta como uma estratégia que defende o protagonismo da pessoa no cuidado, dando-lhe autonomia para alcançar melhores níveis de saúde”, explica.
Marco Aurélio também critica o fato de Osmar Terra usar como argumento para sua proposta o “senso comum” que a sociedade tem sobre as drogas. “Isso foi uma estratégia de tentar pautar mudanças na política, porque, na verdade, pesquisas científicas dizem o contrário: a abstinência não resolve o problema do consumo. Se fossemos usar o senso comum em relação à pena de morte, por exemplo, já teríamos posto a proposta em prática para resolver o problema da criminalidade. Hoje, muitas pessoas defendem a pena de morte, inclusive indivíduos que têm pretensão de ser presidente da república”, compara. 

Avanço?

A nova resolução, ainda que não tenha força de lei, deve orientar as políticas públicas do governo federal a respeito de drogas, pois o Conad — vinculado ao Ministério da Justiça — tem poder deliberativo. Segundo Terra, o novo texto reflete uma posição do governo e implica “avanço" para enfrentar a violência. “Eu acho que é um avanço importante, num momento em que a gente está se preparando para enfrentar a violência no Brasil", discursou, destacando também que “não existe exemplo no mundo de países que tenham liberado o uso de drogas e que tenha tido bons resultados”.

Marco Aurélio discorda dessa avaliação, lembrando que muitas vezes usa-se do medo para impor certas políticas, que têm sempre como foco o combate. Foi isso que aconteceu com o crack, lembra o pesquisador. “Diziam que havia dois milhões de usuários de crack. A Fiocruz então faz uma pesquisa, baseada em modelos científicos, e comprova que são 370 mil usuários da droga”, revela, observando ainda que a proibição não impede o acesso às drogas. “Ela apenas cria uma desregulamentação da droga. Controlar o consumo implica regulamentar, impor restrições e regras, além de estabelecer taxas e impostos”, detalha. Ele lembrou que na história dos Estados Unidos, a Lei Seca, também conhecida como O Nobre Experimento ou Proibição (Prohibition), proibindo entre 1920 e 1933 a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, não coibiu o consumo. “Pelo contrário, foi o período em que mais se bebeu nos EUA”, garante.

O novo documento do Conad, segundo Marco Aurélio, vem na esteira de mudanças aprovadas em dezembro do ano passado pelos gestores da saúde, entre as quais a suspensão do fechamento gradual de leitos em hospitais psiquiátricos, como previa a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, e o aumento dos repasses públicos para leitos nesses locais (veja aqui entrevista com Pedro Gabriel Delgado, militante da luta antimanicomial). Segundo anunciou o ministro da Saúde, Ricardo Barros, na ocasião, a ideia é quadruplicar o número de vagas financiadas com dinheiro público em comunidades terapêuticas (veja aqui matéria sobre os interesses privados na saúde mental) ainda em 2018, chegando a 20 mil.
 

Ausência de debate

Ainda durante a votação da resolução, alguns conselheiros questionaram a falta de debate da proposta com a sociedade. “Não teve debate nenhum, as pessoas que pensam diferente não foram ouvidas, foi uma proposta apresentada meio que no apagar das luzes”, afirma o pesquisador da EPSJV/Fiocruz, que acompanha o debate sobre o tema por sua atuação na formação em saúde mental, especialmente no cuidado a usuários de álcool e outras drogas.

Em 1º de fevereiro, a votação do texto também foi incluída na pauta da reunião do Conad em cima da hora. Lançando mão do regimento, a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Federal de Serviço Social pediram vistas e conseguiram adiar a decisão. Na ocasião, o médico e pesquisador da Fiocruz, Francisco Inácio Bastos, representando a SBPC no colegiado, pediu vistas por não concordar com a resolução e por considerar que tratados internacionais tratam o tema de maneira mais apropriada e sintonizada com um mundo em permanente transformação. Ele lembrou, em entrevista ao Jornal da Ciência à época, que o Brasil é signatário de diversos tratados das Organizações das Nações Unidas (ONU) e, portanto, mantém estreita relação com as agendas de suas agências sobre o tema das drogas, buscando desarticular uma estrutura de associação quase automática entre abuso de substâncias e crime e entre as drogas e o terrorismo.

Em seu pedido de vista, o representante da SBPC no Conad defendeu que o Brasil aguardasse a votação, em Viena, na Áustria, de uma proposta sobre o tema. Neste encontro, realizado de 5 a 9 de fevereiro, a ONU aprovou um padrão internacional para o tratamento do uso de drogas que, entre outras coisas, diz que o uso abusivo de substâncias é um problema mundial que afeta significativamente as pessoas e suas famílias, com um custo muito alto para a sociedade, estimado em 1,7% do PIB em alguns países.

De maneira geral, o texto da ONU critica o que chama de uma “visão ultrapassada de alguns países”, que discrimina e estigmatiza o usuário e aborda o problema nas instâncias criminais, quando deviam tratar como questão de saúde pública mundial.

Leia mais

Uma proposta de reformulação da Política Nacional de Saúde Mental foi redigida pelo Ministério da Saúde e vem provocando uma onda de manifestações de instituições ligadas ao Movimento de Luta Antimanicomial. Entre as alterações, está a manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, a ampliação de recursos para comunidades terapêuticas e a limitação na oferta de serviços extra-hospitalares. “É um pacote de medidas que desconstrói a Reforma Psiquiátrica, a proposta de desinstitucionalização e a atenção comunitária”, garante Pedro Gabriel Delgado, militante da luta antimanicomial, à frente do processo de desinstitucionalização psiquiátrica prevista pela Lei 10.216/2001, e professor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em entrevista ao Portal da EPSJV, concedida ontem (13), às vésperas de a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) votar a reformulação da Política, o ex-coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2000- 2010) explica que se trata da desconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) na medida em que as alterações privilegiam o atendimento hospitalar, aumentam os recursos para os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas. Reunida hoje (14), a CIT vetou a ampliação da capacidade já instalada de leitos psiquiátricos em hospitais especializados, reafirmando o modelo assistencial de base comunitária. Por outro lado, autorizou a ampliação da oferta de leitos hospitalares qualificados para a internação de pacientes com quadros mentais agudos. “Há um jogo de palavras entre ‘capacidade instalada’ e ‘ampliação de leitos’. Na prática, isso significa que autoriza a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos, o que vai contra a Lei 10.216”, alerta. Uma das novidades da resolução da CIT é a criação da modalidade de Centro de Atenção Psicossocial com funcionamento 24 horas, para o atendimento de usuários de drogas em cena de uso. “Conversei com outros colegas do campo de Álcool e Drogas e eles entendem que esse serviço servirá como porta de entrada para tratamento em regime fechado”, realça.
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Em um cenário de antagonismos e disputas, gestores atropelam as discussões da saúde e esvaziam o conteúdo da política de atenção aos usuários de drogas
O movimento da luta antimanicomial completa 30 anos de existência em 2017. Foi durante o 2º Congresso Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido na cidade de Bauru em 1987 que aconteceu a primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, aos quais até então era destinada a maior parte dos recursos públicos destinados para a saúde mental. O evento, segundo a vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Pitta, foi um momento decisivo para que o movimento ganhasse capacidade de articulação e projeção nacional, sendo, por isso, considerado o marco inicial do movimento que teve sua maior vitória com a aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica em 2001. Nesta entrevista, ela resgata a história do movimento antimanicomial, fala sobre seus avanços e conquistas ao longo desses 30 anos e alerta que o modelo manicomial, longe de ter sido extinto, se encontra em ascensão em meio aos retrocessos que marcam o atual cenário político brasileiro.