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Depois da lama, a luta

O que se descobre conversando com as populações e comunidades atingidas seis meses depois do maior desastre socioambiental do país
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 04/05/2016 16h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Microfone aberto em Regência Augusta, no ato organizado pela rota que percorreu a foz do rio Doce a Valadares Foto: Rafael Segatto

A ideia é colocar o pé na estrada. Enxergar por outros olhos, se reconhecer em histórias que são ou poderiam ser a sua. Denunciar o que se sofre e - tão importante quanto - anunciar o que se quer. Esse é um resumo do que aconteceu entre os dias 11 e 16 de abril com as cerca de mil pessoas que participaram da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce. Organizada por mais de 40 entidades e fruto do movimento da agroecologia, que lança mão dessas ‘andanças’ para estabelecer intercâmbios entre comunidades e populações que sofrem violações e buscam alternativas de resistência, a caravana enfrentou desta vez o maior desastre socioambiental da história do país: a “tragédia-crime” do rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro da Samarco (controlada pelas empresas Vale e BHP), que em 5 de maio completa seis meses.

“A contaminação de um dos maiores rios do Sudeste brasileiro traz o desafio de qual agenda de lutas é possível diante de uma amplitude tão grande de impactos e riscos sobre os povos da bacia”, afirma Eduardo Barcelos, um dos organizadores da caravana. Abrangendo desde Mariana à foz do rio, passando por afluentes na parte alta e incorporando as experiências do médio rio Doce, quatro rotas se encontraram em Governador Valadares, onde aconteceu a “culminância” da caravana. Ao todo, 150 camponeses, ribeirinhos, pescadores, indígenas, quilombolas, moradores das cidades, estudantes, pesquisadores se transformaram também em “caravaneiros”. “A caravana passa para dar um sentido comum das lutas. Não se recupera o rio Doce sem os povos do rio Doce”, defende Eduardo. A seguir, você confere um pouco do que descobrimos acompanhando a rota que percorreu as cidades capixabas até Minas.

Regência Augusta (Linhares), 12 de abril

Rafael Segatto

“No início deu aquela primeira preocupação, veio um monte de gente, estudando, mas agora não se vê mais”, constata Diego Roldão, surfista e morador da vila de Regência Augusta. Ele leva a caravana no exato ponto onde o rio Doce encontra o mar. A água, naquela manhã marrom, há algumas semanas estava laranja, sob efeito das chuvas revirando os rejeitos de minério depositados no leito do rio. O lugar, conhecido por ter algumas das melhores ondas do Brasil, está desolado.

“A primeira aparição do estado em Regência já começou problemática. Eles chamaram uma reunião direto com a associação de pescadores, ao invés de uma reunião aberta. O objetivo era explicar o que iria acontecer, mas sem maiores detalhes, eles só avisaram que a pesca estava suspensa”, lembra Flávia Amboss. Ela eJoão Paulo Izoton viviam em Regência há algum tempo quando aconteceu o rompimento da barragem. Membros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo (Geppedes/UFES), os cientistas sociais viram em primeira mão as consequências da falta que a mediação do poder público fez na vila.

Em seguida, chegou a Samarco. A empresa instalou um ponto de atendimento ao público na praça principal. “As pessoas contratadas anotavam as perguntas e diziam que iam responder por e-mail. Mas muita gente em Regência nem e-mail tem”. Além disso, a Samarco montou uma espécie de QG na vila. Os funcionários da empresa começaram a procurar pessoas que eles identificavam como lideranças, como presidentes de associações de pescadores, moradores, comerciantes, surfistas, sempre em reuniões fechadas. Em seu site, a mineradora caracteriza isso como “ação humanitária”. “Essas reuniões criaram um burburinho grande na vila, a fragmentação fomentou um ruído entre associações, decidindo não se sabia o quê, inclusive, à revelia do conjunto da comunidade que não necessariamente estava ou se sentia representado por essas lideranças. Não teve uma informação oficial. Só boato: ‘fechou acordo, não fechou’. A questão que fica é até que ponto essa desinformação não foi proposital”, questiona João Paulo.

Os moradores não sabiam, por exemplo, que o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado entre vários ramos do Ministério Público e a Samarco previa a contratação de mão de obra local para a mitigação dos danos, que, no caso de Regência, se concentrou no manejo das boias colocadas pela empresa no rio. “O boato que estava circulando na comunidade era de que os pescadores estavam ‘comprados’ pela Samarco porque estavam trabalhando para a empresa, mas foi o MP que determinou isso”. Nesse ínterim, os pescadores começaram a agir de forma reativa. Os pesquisadores contam que na audiência com o MP, no fim de dezembro, todos eles chegaram juntos, com o uniforme da Samarco, uma pessoa só falou, afirmou que estava tudo certo, terminou de falar, e todos foram embora. “A Samarco otimizou muito bem o gasto dela. Embora estivesse cumprindo uma obrigação do TAC, se comportava como patrão e falava o que o pescador podia ou não fazer. Recomendavam que não participassem de reuniões, não conversassem com jornalista. Eles se aproveitaram da fragilidade da população, souberam jogar muito bem com os conflitos dentro da comunidade e passaram a instrumentalizar esses conflitos”.

Outro elo essencial da narrativa em Regência - que se repetiria ao longo de outras comunidades visitadas pela caravana - é o "cartão Samarco", o auxílio-subsistência no valor de um salário mínimo (R$880), acrescido de 20% por dependente e do valor da cesta básica calculada mensalmente pelo DIEESE (R$401,08 em Vitória em fevereiro) que o TAC obrigou a mineradora a pagar. O pagamento do auxílio, retroativo a 5 de novembro, durante seis meses faz parte do que o MP caracteriza como “plano provisório”.

O que quase ninguém sabia, contudo, era que a empresa deveria apresentar um “plano definitivo” após os seis meses e, de acordo com o TAC, nesse período deveria ter completado o cadastro de todos os atingidos que exerciam atividades de trabalho vinculadas às águas contaminadas pelos rejeitos de minério – o que não aconteceu. Esse cadastro, lembra Flávia Amboss, deveria incluir não só pescadores e ribeirinhos, mas agricultores, gente que vivia do turismo, do comércio. “Mas, pelo menos em Regência, a Samarco determou quem pode e quem não pode receber. Isso não estava estipulado no TAC, que falava em autodeclaração: você se declara dependente do rio ou não. E eles estão relacionando, o recebimento à carteira de pesca, por exemplo. E as marisqueiras? E quem trabalhava limpando o pescado? Quem vivia do turismo proporcionado pelo rio e pelo mar, do surf?”, questiona. Outro problema foi o pagamento do auxílio para a família e não para o trabalhador ou trabalhadora que dependia do rio ou do mar para viver. "O auxílio é por pessoa, por trabalhador ou trabalhadora. Mas tem dado confusão, em uma casa onde a mulher e o marido têm carteira de pescador, sai para um e não para outro. Ou em uma casa em que o pai e os filhos são pescadores, sai só para o pai", explica Flávia.

Nesse sentido, a empresa jogou a pressão pelo cadastro nas costas das associações, causando mais fragmentação nas comunidades. Seu Simeão Barbosa é presidente da associação de pescadores artesanais de Povoação, distrito de Linhares vizinho à Regência. Ele afirma que a empresa pediu a lista dos associados, pois só os membros receberiam o auxílio. A partir daí, compreensivelmente, choveu gente querendo se associar, “mesmo pessoas que não pescavam ou que sempre foram contra a associação, diziam que era perda de tempo”, conta o pescador. A associação decidiu não servir de atravessadora para o cartão da Samarco e seu Simeão passou a ser hostilizado pelos vizinhos. A ligação direta e sem qualquer mediação por parte dos órgãos públicos faz com que empresa e atingidos estabeleçam uma relação assimétrica de poder.  “Uma vizinha pescadora, só porque usou o dinheiro do cartão para comprar umas roupinhas e vender na janela de casa foi desligada pela Samarco, que disse que sendo comerciante, ela não poderia receber”, denuncia.

O casuísmo leva os moradores a temerem o corte do cartão como retaliação a qualquer crítica pública ou ação que contrarie os interesses da empresa. “A Defensoria Pública veio aqui, fez umas reuniões, mas muita gente acha que se processar a empresa pode perder o cartão”, conta Simeão. Não é à toa que, ao longo do Rio Doce, o auxílio-subsistência recebeu o apelido de "cala boca". “As pessoas têm pouca instrução, pouquíssima informação, e acabam se sentindo em uma posição amarrada. Se recebem o cartão, não querem 'problemas' com a Samarco. Até hoje o pessoal não está esclarecido que o cartão é um direito, não um favor”, diz João. Segundo o último levantamento divulgado pela Samarco, 5.113 cartões tinham sido distribuídos ao longo do rio Doce.

Rafael Segatto

Assentamento Rural Sezínio (Linhares), 13 de abril

“A mineração destrói. O Estado faz a guerra. O sangue dos atingidos também é sangue sem terra”. As palavras de ordem entoadas no Assentamento Rural Sezínio Fernandes expressavam a realidade que os trabalhadores enfrentaram logo que a lama chegou a Linhares. Das dezenas de lagoas do município capixaba, duas estão no assentamento. "Nossa primeira preocupação foi com a contaminação das lagoas. Entramos em contato com o Incra, com a prefeitura, e nenhuma providência foi tomada. Era preciso construir um dique para que a lama do rio não viesse para cá", lembra Jorge Gramelich, um dos líderes do assentamento.

Como forma de chamar atenção do poder público, os sem terra ocuparam a BR 101. A ação foi preparada com cuidado. As crianças e jovens das duas escolas que funcionam no assentamento acompanharam o ato como atividade extraclasse, já que os professores vinham discutindo há meses a crise hídrica e, com o rompimento da barragem da Samarco, incorporaram o debate sobre a contaminação do rio. Um vídeo gravado por Jonathan Gramelich, filho de Jorge, mostra o exato momento em que a PM lança uma bomba de gás lacrimogêneo na área da rodovia em que estavam as crianças. A violência aconteceu justamente quando todos se preparavam para desocupar a BR, depois de uma negociação em que os secretários municipais de Segurança Pública e de Agricultura, presentes no local, se comprometeram por escrito a resolver o problema do dique.

"Depois dessa bomba, eles vieram para dentro do assentamento atirando com balas de borracha. Quando viram que eu estava filmando, miraram em mim. Pegou no rosto", conta Jonathan. As imagens mostram os policiais disparando contra os assentados, a correria, o momento em que Jonathan caiu no chão. Depois da violência bárbara, o vídeo também mostra o prefeito de Linhares, Nozinho Correa (PDT), junto de seus secretários, tentando contornar a situação. Mesmo assim, nada foi feito e uma das lagoas foi contaminada. "Os peixes todos morreram. Só aí que a Samarco veio no assentamento. Chegou de madrugada com uma retroescavadeira, abriu um buraco e, com a pressão, a água coalhada de peixes recuou até um ponto já fora do assentamento. Retirar os peixes mortos para proteger a própria imagem, essa era a preocupação da Samarco", conta Jorge, apontando para o local onde a empresa escavou.

Com a contaminação, a escola e as casas mais próximas a BR precisam contar com o abastecimento de água solidário. Todo domingo, o pai de um aluno enche um tambor de plástico com capacidade de mil litros e com essa água 15 crianças entre quatro e cinco anos e a professora se viram durante a semana. O secretário municipal de Educação já desmarcou sucessivas audiências públicas para debater a situação das escolas do assentamento. "O medo agora é que, com as cheias, com o funcionamento normal das hidrelétricas, a água volte a subir e contamine a outra lagoa.", diz Jorge.

Maíra Mathias

Maria Ortiz (Colatina), 13 de abril

Maria Ortiz é hoje uma comunidade sitiada. Depois do rompimento de Fundão, as cerca de 180 casas ficaram espremidas entre o rio contaminado pela lama da Samarco e os trilhos da Vale. Dez passos separam a rua principal do lugarejo, de terra batida, da estrada de ferro da empresa multinacional. A cada 10 minutos, o trem passa apitando. Naquele fim de tarde de abril, uma composição levou longos cinco minutos e 57 segundos para passar.

“Maria Ortiz tem uma briga histórica com a Vale. Desde quando a empresa duplicou a estrada de ferro, em 1975, demolindo casas sem a devida indenização, levando vantagem porque era uma estatal em plena ditadura militar. Ao invés de duplicar para o outro lado, mais longe da gente, eles passaram por cima. Ficamos aqui embolados: três, quatro casas em um quintal só porque o dinheiro da indenização não dava para comprar um terreno e construir uma casa, era ou um ou outro”, conta Seu Fatinho, que desde 1964 mora no distrito de Colatina, onde fundou a Associação de Pescadores Profissionais Nova Vida. Com cerca de 350 habitantes, Maria Ortiz é uma comunidade com vocação pesqueira: são 80 pescadores registrados.

Nesse cenário, o Doce, mais do que fonte de renda e lazer, era consolo. As frentes das casas se protegem da ferrovia atrás de um declive acentuado no terreno que lembra um bunker. Os quintais, ao contrário, são completamente abertos para o rio. Aquelas margens se confundiam com o que a comunidade entendia por dignidade. “No final de semana, a gente juntava a família, ia pescar, fazia uma moqueca, um pirão e ficava ali, conversando, tomando banho de rio. Hoje acabou. Meu quintal só tem folha. Isso é humilhante para nós”, desabafa o pescador.

O vácuo do poder público encontrou em Maria Ortiz uma expressão violenta. A colônia de pescadores da região passou por lá e convenceu 80 deles a assinar um contrato em que se comprometiam a destinar 10% do valor do auxílio-subsistência pago pela Samarco para ingressar em uma ação coletiva contra a empresa. “Além dos 10%, o contrato dizia que os pescadores precisavam dar outros 13% para despesas e, no final da ação, 30% do valor conseguido, num total de 53%. Tenho as cópias em casa. Em Maria Ortiz conseguimos recolher todos os contratos assinados. Nos outros lugares, não sei como ficou”. A Defensoria Pública não passou por lá. Tampouco assistentes sociais ou qualquer profissional que pudesse esclarecer a comunidade sobre seus direitos.

A presença da Samarco, contudo, se faz sentir. Segundo Seu Fatinho e outros moradores que conversaram com a Caravana, um pescador da comunidade volta e meia aparece andando no carro da empresa, se gaba de ter contato direto com o escritório em Colatina e intimida os moradores que reclamam da Samarco.  “O camarada anda armado e se exalta se a gente critica a empresa”.

Maíra Mathias

Colatina, 13 de abril

Com uma população de 120 mil habitantes, Colatina (ES) capta água exclusivamente do Rio Doce. Os moradores da cidade capixaba até hoje não perdoam o prefeito Leonardo Deptulski (PT) que pousou para um jornal bebendo um copo de água da torneira para convencer a população de que o consumo era seguro. O episódio aconteceu no dia 25 de novembro, apenas uma semana depois da enxurrada de rejeitos de minério chegar à cidade. “Quando o prefeito bebeu a água, todo mundo sentiu que não era [um gesto] verdadeiro. A água tem um gosto terrível, como se tivessem colocado madeira nela, um cheiro forte, e deixa a gente como que empanzinado”, descreve Odília Gomes, moradora do bairro de Santa Maria. Com a neta de um ano, Alice, a tiracolo, ela continuou: “Minha maior preocupação é com ela, um bebê. Eu penso que tomar essa água deve ter algum efeito cumulativo. E nós não temos mais condições financeiras de arcar com a compra de água mineral, então estamos usando essa água para tudo: tomar banho, cozinhar e beber”. Com seis membros, a família vinha gastando cerca de R$ 300 por mês com água. Assim como o consumo de água, em Colatina a pesca foi liberada. No município vizinho, Linhares, foi proibida. O que Eduardo Barcelos chama de "guerra de laudos" causa um nó na cabeça das pessoas.

Rafael Segatto

Mascarenhas (Baixo Guandu), 14 de abril

Ivo Delis e Paulo Renato Maciel dividiam um barco. De dia, seu Ivo pescava, enquanto Paulo trabalhava como treinador de futebol de crianças. De noite, era Paulo quem pescava, e seu Ivo trabalhava como vigilante. Pegavam principalmente dourado, robalo e camarão, mas também pacamã e, em alguns períodos, lagosta - que chegava a ser vendida por R$ 70 o quilo. Já Delcimar Teixeira estava "dia e noite" no rio. A pesca era sua única fonte de renda. Os três moram em Mascarenhas, bairro com jeitão de vila localizado no município de Baixo Guandu. O lugar é conhecido por abrigar a Usina Hidrelétrica de Mascarenhas e foi atingido pela lama no dia 18 de novembro.

No auge da contaminação, quando os pescadores tentavam salvar os peixes vivos, Delcimar não esquece uma fêmea de dourado que foi puxada para fora d'água mas, de tão podre que estava, se rompeu. "A empresa pegou esse peixe, os órgãos, as partes com as manchas e levou para análise. Mas quem fica sabendo o resultado que deu? Ninguém". Segundo ele, os peixes que sobreviveram estão apodrecendo lentamente. "A boca deles, parece que a água vai comendo a carne. E têm essas manchas de todos os tamanhos, vermelhas. É horrível". Delcimar, que não parou de navegar pelo rio, também mostrou as próprias manchas nos braços e nas mãos, parecidas com queimaduras químicas. "E a empresa vem aqui dizer para nós que o peixe está bom, que a partir do mês que vem não vamos receber o cartão e vamos voltar a pescar. Eu sempre ofereço pegar um e fritar para eles comerem. Mas nem da nossa água mineral eles bebem aqui".

Em Mascarenhas, assim como em outras comunidades de pescadores, é nítida a tensão em torno do auxílio-subsistência. Isso porque, como seu Ivo define, nesses lugares "todo mundo tem rede, todo mundo tem vara". Ou seja, com ou sem carteirinha de pescador, seja como fonte de renda, seja como fonte de alimentos, o rio fazia a diferença no orçamento familiar. Logo, todos deveriam ter o direito ao auxílio. Contudo, a falta de informação sobre os termos do TAC e a agonia crescente em ter suas demandas ouvidas fazem com que muita gente pense que se o vizinho não recebesse, o valor do auxílio poderia ser maior para quem só vivia da pesca. Os pescadores em tempo integral afirmam que o valor representa apenas 30% do que faturavam no mês. "Mas eu não queria o dinheiro, eu queria o rio", conclui Ivo.

Enquanto os participantes da caravana agradeciam os moradores pela acolhida, já se preparando para cair novamente da estrada, uma patrulha da Polícia Militar chegou à praça. Os policiais perguntaram pelo "líder" do grupo e afirmaram que foram chamados para averiguar se a reunião era um preparativo para a ocupação da ferrovia da Vale. A história piora: os PMs dão o nome de uma moradora que articulou a vinda da caravana a Mascarenhas como sendo o da pessoa que denunciou a ação fictícia. Quase ao mesmo tempo, chega um carro da Vale. O motorista e único ocupante do veículo demora a se aproximar, informando alguém por rádio da situação na praça. Os policiais são cercados por uma dezena de máquinas fotográficas e os membros da caravana explicam que o propósito da visita é outro. A reação em bloco faz com que os militares deem a 'batida' por encerrada. Com um gosto amargo na boca, a caravana se despediu dos moradores. A saída de Mascarenhas está bloqueada: é de novo o trem da Vale que passa, desta vez com vagões abertos carregados de minério de ferro que reluz ao sol.

Maíra Mathias

Terra Indígena Krenak (Resplendor), 14 de abril

Muito perto dali, a ação política em cima dos trilhos deu algum resultado. Nas semanas seguintes ao rompimento da barragem, talvez os protestos mais contundentes tenham vindo dos índios Krenak, que acamparam por dias na estrada de ferro da Vale. Descendentes dos índios botocudos – que habitavam toda a extensão do Doce antes de serem dizimados pelos colonizadores portugueses –, os Krenak têm uma relação ancestral com o ‘Watu’, como chamam o rio.  “Nosso povo foi massacrado e sobrou pouco. Agora, com a morte do rio, morreu uma parte nossa. O meu filho estava aprendendo a nadar... A minha menina vai crescer com poucas lembranças do Watu. Passou, matou e nada se faz. O Brasil é complicado”, relata Andrea, filha de Dejanira Krenak, uma das matriarcas de seu povo.

A história de violência contra os Krenak em seu próprio território é extensa. Nos anos de chumbo do regime militar, o lugar recebeu um reformatório para castigar índios com “mau comportamento”. Entre as imposições, estava não falar a própria língua. Em 1972, os Krenak foram expulsos do território e encaminhados para a Aldeia Guarani, longe do rio Doce. Só em 1993, a Terra Indígena Krenak foi declarada. E, mesmo assim, sem uma parcela que os indígenas consideram fundamental: o que é hoje o Parque Estadual dos Sete Salões, criado em 1998. “É nosso território sagrado. Quando estamos precisando de força, nós vai lá buscar”, explica Aparecida Krenak, que emenda: “E ninguém protege, as pinturas feitas pelos ancestrais estão sendo destruídas. Vai qualquer um lá, fica ‘escavacando’, joga lixo”. Os índios denunciam ainda que uma empresa privada capta água mineral dentro dos limites do Sete Salões. O nome da empresa? "Krenak".

Foi nesse contexto que a lama da Samarco encontrou os 700 indígenas espalhados ao longo do território, somando mais violações de direitos à história do povo Krenak. Os rejeitos chegaram em Resplendor, cidade onde se localiza a Terra Indígena, no dia 9 de novembro, portanto, quatro dias depois do rompimento. “Ninguém avisou a gente não. Funai e Funasa vieram só no dia que estava acontecendo. Ficamos na beira do rio esses dias todos. Para atravessar, tínhamos que ir tirando os peixes para passar. Depois que eles [Vale] mataram os peixes, o rio, nos deram um barco com motor, como se fosse adiantar. Eles pensam no recurso. Nós pensamos no rio”.

Procurada pela Poli, a Funai respondeu que está ciente da reivindicação do povo Krenak, e que a retomada dos trabalhos para produzir o relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Sete Salões deve acontecer em maio. O órgão federal corroborou parte das denúncias dos Krenak sobre o Parque Estadual: “o Parque não possui plano de controle e administração adequado, sendo atualmente ocupado por fazendeiros e alvo de turismo sem o devido acompanhamento. A equipe da Funai local já localizou registros de vandalismo no interior do Parque como a pichação de cavernas, por exemplo”.

Maíra Mathias

Governador Valadares, de 14 a 16 de abril

A luta compensa: o Assentamento Rural Oziel Alves Pereira é um oásis verde em meio à desordenada periferia urbana. Governador Valadares abriga a maior população atingida pelo rompimento da barragem da Samarco, com 265 mil habitantes. Assim como Colatina, a única fonte de captação de água do município mineiro é o rio Doce contaminado pelos rejeitos da mineração. Mas no assentamento tem água do poço, produção de alimentos e potência pedagógica. É no Centro de Formação Francisca Veras que todas as rotas da Caravana se encontram, no contexto de uma data simbólica: dali a dois dias se completariam 20 anos do massacre de Eldorado dos Carajás.

“O abril já se tornou abril vermelho. Esse abril tem um significado muito grande e de muita indignação. Tanto para os sem terra, quanto para as trabalhadoras e os trabalhadores que compreendem a importância da luta pela terra. O 17 de abril foi marcado por sangue. E onde corre sangue, nasce semente. Com o massacre de Carajás, essa força ficou muito impregnada em nós. E também aqui em Minas Gerais, naquele mesmo 17 de abril de 1996, quando chegamos em Belo Horizonte para a Primeira Marcha pela Reforma Agrária, fomos presos, apanhamos da Polícia Militar do Eduardo Azeredo, do PSDB. Foi com tiro de guerra e banho de sangue que arrancamos da burguesia esse projeto da classe trabalhadora”, conta Therezinha Sabino de Sousa, da direção estadual do MST ao receber os caravaneiros na noite do dia 14.

No dia seguinte, a luta esteve presente. Articulados na jornada de lutas com outros diversos assentamentos e acampamentos do MST país afora, os trabalhadores do Oziel fecharam a BR 116 por quase três horas. Ao mesmo tempo, a Caravana seguiu para o centro de Valadares, para organizar as oficinas pedagógicas com contribuições de cada uma das quatro rotas. Experiências dos caravaneiros que partiram do marco zero da tragédia, na cidade de Mariana, e percorreram comunidades arrasadas como Bento Rodrigues e Paracatu de baixo puderam ser compartilhadas com a rota que foi subindo desde a foz, onde a lama da Samarco adentrou o mar. Outras perspectivas do desastre socioambiental partiram dos afluentes Piranga e Casca, que embora não tenham sido contaminados, estão sofrendo duros impactos na população de peixes que chegava do Doce na época da piracema e da região no entorno de Governador Valadares, onde outra rota circulou observando outros megaempreendimentos que impactam as populações e a natureza, como barragens para geração hidrelétrica, mineroduto em construção e monocultura do eucalipto. Na parte da tarde, aconteceu o debate político sobre mineração, desenvolvimento e água. A Caravana terminou com um ato político que passou pelas ruas de Governador Valadares para dar o recado: Somos Todos Rio Doce!

Rafael Zagatto