As eleições que acontecerão em outubro deste ano são as primeiras em que os brasileiros vão escolher prefeitos e vereadores depois do fim da pandemia de Covid-19, um dos maiores desafios enfrentados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ao longo da sua história. E as demandas que esperam os gestores que assumirão as secretarias municipais de saúde em 2025 não são poucas: às tarefas de sempre, somaram-se carências específicas que a chegada do novo coronavírus evidenciou e novas necessidades de saúde. E tudo isso diante de um quadro de subfinanciamento do SUS que, na avaliação do presidente do Conasems, o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde, tem piorado tanto nos últimos anos que já pode ser considerado um processo de “desfinanciamento”, que sobrecarrega, principalmente, os municípios. “A meu ver, o que o gestor vai viver em 2025 não vai ser muito diferente de quem assumiu agora ou de quem vai assumir daqui a um ano. Porque a gente precisa de um enfrentamento [da falta de recursos] enquanto política de Estado e suprapartidária, independente de governo, que tenha uma ação do Congresso reconhecendo de fato a Saúde como prioridade do povo brasileiro”, diz Hisham Hamida.
O rastro que a pandemia deixou
É verdade que a necessidade de mais financiamento para o SUS é histórica, assim como não tem nada de novo na queixa de que na divisão de responsabilidades entre os entes federados, o município acaba sendo o mais prejudicado. Segundo os dados mais recentes, de 2021, o gasto público com Saúde no Brasil está em torno de 4% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o IBGE. “É necessário que se coloque mais dinheiro público, especialmente federal e estadual, no financiamento público da saúde e da Atenção Primária à Saúde”, opina Luiz Facchini, professor e pesquisador do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFpel).
Mas a experiência recente (e traumática) de uma pandemia que matou mais de 700 mil pessoas traz também novidades sobre as prioridades que se espera da gestão municipal. Pesquisas realizadas durante a crise sanitária com foco na Atenção Básica mapearam, por exemplo, os gargalos que se tornaram mais evidentes naquele momento. E se alguns desses aspectos – como a falta de equipamento de proteção individual e de testes diagnósticos, que resultavam do desabastecimento e da pouca capacidade produtiva nacional – dependiam da iniciativa direta de outros entes federados, não faltam também aqueles que podem ser incluídos no pacote de responsabilidades das gestões locais – e, portanto, cobrados como parte do programa de Saúde a ser debatido nas campanhas eleitorais e executados pelas novas gestões.
"Mais de 75% dos celulares usados nas comunicações das equipes no transcurso da pandemia eram pessoais, eram recursos privados dos profissionais”
Luiz Facchini
Um exemplo concreto, que talvez chamasse pouca atenção antes da pandemia de Covid-19, é a conectividade dos serviços de saúde. Segundo um painel desenvolvido pelo Conasems, e disponível no site da entidade, 71,5% das unidades básicas de saúde do Brasil têm conexão com a internet, mas a pesquisa ‘Desafios da Atenção Básica no Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no SUS’, desenvolvida por iniciativa da Rede de Pesquisa em Atenção Primária em Saúde, mostrou que a maior parte dos contatos à distância – fundamentais para garantir o acompanhamento dos usuários diante da necessidade de isolamento social – foi feita por equipamentos e pacotes de internet dos próprios profissionais de saúde e não com a estrutura oferecida pelos serviços. “Mais de 75% dos celulares usados nas comunicações das equipes no transcurso da pandemia eram pessoais, eram recursos privados dos profissionais”, resume Facchini, que é um dos autores do estudo. Justificando a carência em função do subfinanciamento, o presidente do Conasems reconhece que, de fato, a conectividade que a maioria das unidades básicas de saúde têm é suficiente para “transmitir dados” mas não para realizar chamadas de vídeo com qualidade de modo a viabilizar teleconsultas. “Muitas dessas questões se ampliaram de modo importante e mostram hoje carências que precisam ser supridas. Todas as unidades básicas precisam ter internet de alta velocidade. Então, isso já é uma questão que precisa ser assumida como compromisso pelos prefeitos e secretários”, diz Facchini.
A ideia é resolver a maior parte dos problemas na Atenção Básica. Mas como isso nem sempre é possível, o desenho do SUS prevê um processo de regionalização, em que municípios-polo, maiores, concentram os equipamentos de saúde de alta e mesmo de média complexidade de modo a atender às cidades menores que ficam no entorno. Facchini, no entanto, alerta que a existência desses acordos não significa que eles funcionem bem em todos os locais. “A regionalização é outra questão que prefeitos e secretários devem enfrentar”, diz, destacando principalmente a situação dos municípios de médio porte que têm “muita carência de especialistas”, que vão desde a assistência a questões cardiovasculares, casos de diabetes e obesidade até tratamento de câncer. “Às vezes você precisa viajar muitos quilômetros para ter acesso ao serviço de saúde”, diz, defendendo que as regiões de saúde – que reúnem vários municípios – precisam investir em atenção especializada. “Nós não vamos conseguir colocar em 5.570 municípios todos os níveis de atenção. E nem esse é o papel. Por isso a importância da regionalização. Eu acho que esse é o grande desafio, que só se consegue enfrentar com os três [entes federados juntos]”, diz o presidente do Conasems.
Além de tornar mais visíveis problemas que vinham de antes, a pandemia de Covid-19 também trouxe outros que os gestores municipais já têm enfrentado e deixarão de herança para os próximos. A restrição ou mesmo suspensão de procedimentos que fazem parte da rotina regular da Atenção Básica à Saúde, a exemplo do pré-natal e do acompanhamento de grupos de risco, como portadores de doenças crônicas, foi uma constante durante a pandemia. Com a duração da crise sanitária e a reorganização dos serviços, é de se supor que esses atendimentos tenham sido normalizados na maior parte do país, mas Facchini acredita que, em algumas regiões, ainda se sofra com o “rescaldo” daquele momento. “A Saúde Bucal foi uma das mais afetadas, com praticamente todos os atendimentos, com exceção de situações de urgência, suspensos”, exemplifica. De uma forma mais generalizada, a tudo isso se somam os problemas de saúde que resultam da pandemia, seja em função de complicações da própria Covid-19, seja como desdobramento da falta de assistência a outras doenças naquele período. “Eu já tinha um estrangulamento. Alguns [pacientes] crônicos se agudizaram [porque] deixaram de ter aquele cuidado. E eu ainda tenho o pós-Covid”, resume o presidente do Conasems, que conclui: “A pandemia aumentou ainda mais a necessidade de saúde e de cuidado da população”.
Antes, durante e depois da pandemia
A gravidade da crise sanitária e a polarização política em torno das estratégias para o seu enfrentamento acabaram ampliando o debate público sobre um problema que se agravou durante a pandemia, mas que vinha de antes e permanece como um dos principais desafios da Saúde Pública no Brasil hoje: a queda da cobertura vacinal de praticamente todas as doenças para as quais existem imunizantes. E, embora se trate de um desafio nacional, também aqui existem iniciativas a serem desenvolvidas pela esfera municipal. Entre as muitas razões que os especialistas apontam para a redução da vacinação – negacionismo científico, desinformação, desconhecimento sobre as doenças que já foram controladas ou mesmo erradicadas no país, entre outros –, a dificuldade de acesso aos serviços – que, nesse caso, são principalmente municipais – também é considerada um fator relevante. “O que a gente quer é uma rotina forte, em que não se tenha oportunidade [de vacinação] perdida”, diz a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações (PNI) entre 2011 e 2019.
Boa parte dos municípios não apenas não estende o horário de atendimento para garantir a vacinação como estabelece dias e, às vezes, até horários para que a vacinação contra determinada doença aconteça
Assim, é responsabilidade dos gestores municipais criarem estratégias que facilitem e ampliem o acesso da população à vacinação, sempre atentos à realidade local. E uma das iniciativas que se costuma apontar como mais simples e imediata para isso, sobretudo nos grandes centros urbanos, é a ampliação do horário de funcionamento das unidades de saúde até a noite ou nos fins de semana, de modo a permitir que os responsáveis que trabalham consigam vacinar seus filhos no seu tempo ‘livre’. “Hoje, se você olha o censo, quase 40% das mulheres são arrimo de família. Elas estão no mercado de trabalho, formal ou informal. Para você ter ideia, uma criança, para ser vacinada do nascimento aos 15 meses, precisa comparecer ao posto de saúde nove vezes. Se eu crio dificuldade, provavelmente essa mãe não vai voltar, seja porque o patrão não vai liberá-la outro dia, seja porque ela está no mercado informal e um dia levando a criança para tomar vacina significa um dia sem levar o sustento para dentro de casa”, explica Domingues, que conclui: “Então, se não criar facilidades de acesso, a gente dificilmente vai recuperar essa cobertura vacinal”.
Hoje, no entanto, boa parte dos municípios não apenas não estende o horário de atendimento para garantir a vacinação como estabelece dias e, às vezes, até horários para que a vacinação contra determinada doença aconteça. O presidente do Conasems reconhece a perda de alcance da vacinação que essas medidas podem produzir, mas justifica essas decisões apontando obstáculos que estão além do alcance da gestão municipal. “Vou dar um exemplo. Eu vou abrir [a unidade de saúde] até as 19h. Aí chega uma pessoa para vacinar às 18h30 e eu vou abrir um frasco que tem dez doses para vacinar uma pessoa. Antes isso não era visto como desperdício mas hoje os órgãos de controle me cobram que eu desperdicei nove [doses]. Por isso eu estou colocando dia e hora para vacinar. Estou restringindo para não ser responsabilizado administrativamente por um desperdício de imunizante”, explica. Além disso, diz, a depender da disponibilidade daquela vacina em cada momento, as doses descartadas podem fazer falta para a demanda do restante da população daquele município.
Domingues reconhece o problema e defende que, para que os municípios possam desenvolver estratégias que facilitem o acesso da população às vacinas, é urgente um empenho que envolva os três níveis de governo, além do setor produtivo e das instâncias de fiscalização e controle. Ela explica que a ampliação da caderneta de vacinação dos brasileiros significou a incorporação de imunizantes muito mais caros sem as mudanças necessárias para se reduzir as perdas. “O Brasil é um dos países que têm um dos maiores calendários gratuitos do mundo e isso exige que essa logística seja repensada”, defende Domingues. “Não é possível ter vacinas com alto preço e o frasco multidose. Porque vai ter perda. É inerente ao processo de vacinação”, diz, exemplificando: “A vacina tríplice viral vem em frasco de dez doses, que eu tenho que usar em pouco prazo de tempo. Nos cerca de 2,4 mil municípios brasileiros que só têm um ou dois nascimentos por mês, necessariamente vai ter que se vacinar só uma criança. Não tem outra maneira. A não ser que eu junte três, quatro, cinco, mas aí vou atrasar enormemente o calendário dessa criança”.
A solução, segundo ela, depende de uma mudança no processo de compra dos imunizantes, que cabe ao governo federal – Domingues defende que é preciso discutir com o Ministério Público a necessidade de se variar as formas de aquisição de vacinas, podendo-se, sempre que estiverem disponíveis, optar por frascos com apenas uma dose, que custam proporcionalmente mais caro mas reduzem o desperdício na ponta, sem dificultar o acesso da população. Além disso, por parte da União, é necessário também, segundo ela, investimento na ampliação e desenvolvimento tecnológico das plantas industriais dos laboratórios públicos, para que eles tenham capacidade de produzir frascos de vacina monodoses. Mas Domingues alerta que uma mudança como essa traz também responsabilidades para os outros entes federados: os estados teriam que investir na logística de distribuição da vacina entre os postos municipais, encurtando o tempo de entrega, e os municípios, principalmente os menores, teriam que se equipar com uma cadeia de frio melhor para conservação dos imunizantes.
Tanto o presidente do Conasems quanto a ex-coordenadora do PNI ressaltam que as estratégias para facilitar o acesso das pessoas aos imunizantes podem (e devem) ser variadas, sempre com um olhar específico sobre a realidade local. E algumas não dependem diretamente da ação de nenhum outro ente federado: Carla Domingues considera, por exemplo, que se poderia ampliar em muito a atuação das equipes da Estratégia Saúde da Família no acompanhamento da cobertura vacinal da população local. “A Saúde da Família tem que acompanhar, identificar quais são as dificuldades dessa família e pensar estratégias”, diz, referindo-se a uma dimensão da assistência que é responsabilidade direta das gestões municipais.
Problemas extras
“O que eu tinha antes da pandemia não deixou de existir, pelo contrário”. A frase é do presidente do Conasems, que destaca o somatório de demandas que se acumularam nos serviços de saúde municipais com o fim da crise sanitária. E isso vai desde a rotina muitas vezes invisível das equipes da Atenção Básica até desafios extras, como a epidemia de dengue, que bateu recordes de casos e mortes em 2024 – no momento em que esta reportagem foi encerrada, o Painel de Monitoramento de Arboviroses do Ministério da Saúde registrava 5 milhões de casos confirmados e mais de 4,9 mil óbitos – e se espalhou para regiões em que a doença não era tão comum, como o Rio Grande do Sul.
“Cabe aos municípios fortalecer as políticas de saneamento e moradia e garantir que os serviços de saúde tenham cobertura suficiente. Esses serviços devem atuar na assistência, no controle e prevenção dessas doenças e na promoção da saúde, além de capacitar os profissionais que trabalham na área”
Barbara Valente
Também nesse caso, as soluções de enfrentamento dependem da realidade de cada município, mas algumas medidas que cabem à gestão municipal são consideradas estruturantes para se reduzir os surtos. “Cabe aos municípios fortalecer as políticas de saneamento e moradia e garantir que os serviços de saúde tenham cobertura suficiente. Esses serviços devem atuar na assistência, no controle e prevenção dessas doenças e na promoção da saúde, além de capacitar os profissionais que trabalham na área”, diz Barbara Valente, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), ressaltando também a importância da coleta de lixo, das ações de comunicação e educação em saúde com vistas a orientar a população e o investimento na contratação e na formação dos agentes de combate a endemias (ACE) – todas iniciativas que envolvem os municípios.
Claro que nas ‘caixinhas’ que formam a estrutura das prefeituras Brasil afora, algumas dessas atribuições – como a política de moradia – podem ser responsabilidade de outras pastas. Mas nada disso exclui as secretarias municipais de saúde. Primeiro porque a articulação com outras áreas é um pressuposto do conceito ampliado de saúde que deve orientar a gestão do SUS. Segundo, porque, como explica Facchini, a vigilância em saúde “também é uma atribuição da Atenção Primária”. E isso significa, de acordo com o pesquisador, que todos os municípios precisam ter “capacidade de notificação das informações” e de “acompanhamento das questões epidemiológicas”. Ele dá um exemplo: “A equipe vai atendendo as pessoas e identificando que se começa a ter, na demanda, um conjunto de sintomas que são muito parecidos com o surto de dengue: febre, dor no corpo, mal-estar, dor atrás do olho... Isso deve acender o alerta da equipe para o problema da dengue naquela unidade de saúde e naquela comunidade. Se isso for bem feito, se o município, se o secretário de saúde, se a política local estiverem investindo nessa integração da vigilância com a Atenção Primária, esse processo de sintomas, que ainda nem são diagnósticos, já começa a acender o alerta de que alguma coisa diferente está acontecendo”. E conclui: “Esse trabalho articulado pode fortalecer muito a capacidade de resposta das unidades básicas e, com isso, inclusive, interromper ciclos de surtos e epidemias”.