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Disputa de sangue

Proposta de Emenda Constitucional quer voltar a autorizar a comercialização de sangue no Brasil. Debate é oportunidade para conhecer a política do país nessa área e os interesses do setor privado
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/11/2023 13h26 - Atualizado em 30/11/2023 14h16
Arte elaborada a partir de um cartaz de Ziraldo, dos anos 1980, e outro de um ato contra a PEC do Plasma em Congresso da Abrasco

Tire a poeira dos livros de biologia. Junte um bocado de noções de economia e misture com algum debate sobre direito. Se a receita der certo, ao final desta reportagem você terá ingredientes para entender e se posicionar melhor sobre o debate em torno da Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2022, apelidada de PEC do Plasma, que quer autorizar a comercialização de parte do sangue dos brasileiros, alterando um princípio que prevalece desde 1988 de que nenhum órgão ou tecido do corpo humano pode ser objeto de compra e venda.

O objetivo central da PEC é criar condições legais para um mercado que permita vender à indústria de hemoderivados – medicamentos produzidos a partir do sangue humano – a parte do plasma dos brasileiros que não é usada em transfusões. Mas para entender melhor esse imbróglio, talvez seja importante lembrar que a produção desses fármacos, que se destaca como o foco da mudança constitucional que tramita no Congresso neste momento, é apenas a fase final de uma política ampla (e pouco visível), que existe para garantir as condições de saúde de milhões de brasileiros que dependem de componentes e derivados do sangue de outras pessoas para sobreviver – uma política que envolve muitas instituições e estruturas do Estado, mas que só é possível graças à solidariedade de outros milhões de doadores que, voluntariamente, abastecem os hemocentros do país todos os dias. “Eu acho que a população não conhece a preciosidade que é a política de sangue do Brasil”, diz Joice Aragão, coordenadora de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde (MS).

É dando que se recebe

De cada mil brasileiros, 14,7 eram doadores regulares de sangue em 2022. Isso é suficiente para atender à recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que os países devem ter entre 1% e 3% da sua população como doadora, embora por aqui esse número (1,4%) esteja mais próximo da base do que do topo. Além disso, num território com as dimensões do Brasil, não é desprezível a variação entre os estados: para se ter uma ideia, Roraima, que ocupa o primeiro lugar no ranking de doadores, tem uma taxa de 24,6 por mil habitantes, enquanto o Rio de Janeiro, que está na última posição, tem 9,32. Concretamente, segundo os mesmos dados do Ministério da Saúde, extraídos a partir dos sistemas de informação Hospitalar e Ambulatorial (SIH e SAI, respectivamente), o resultado desse cenário é que 3,1 milhões de bolsas de sangue foram coletadas no Sistema Único de Saúde (SUS) no ano passado.

"A necessidade de sangue para tratar, socorrer e até salvar pessoas é uma constante na atenção à saúde"
Joice Aragão

E qual o destino disso? Certamente você conhece ou já ouviu falar de alguém que precisou de transfusão de sangue em função de uma cirurgia, acidente de trânsito ou problemas semelhantes. Mas existe um outro contingente de pessoas para quem essa dependência é estrutural: seja por um período de tempo ou durante toda a vida, elas precisam receber regularmente um ou mais componentes do sangue para sobreviver. A situação provavelmente mais conhecida é a dos hemofílicos, mas a lista dessas necessidades envolve desde patologias raras até doenças mais comuns, como hepatites, câncer e HIV/Aids. “A necessidade de sangue para tratar, socorrer e até salvar pessoas é uma constante na atenção à saúde”, resume a coordenadora do MS.

É nesse cenário que se destaca a importância dos derivados do sangue, produtos que estão no centro da disputa em torno da PEC do Plasma. Afinal, são eles que permitem repor as diferentes substâncias do sangue ausentes ou deficientes em cada uma dessas patologias. Como são várias as doenças cujos pacientes podem precisar de hemoderivados, o controle dessa demanda está distribuído por diferentes áreas do Ministério da Saúde. Sob a responsabilidade direta da coordenação que leva esse nome está a política que assiste as chamadas coagulopatias, doenças que se caracterizam pela dificuldade ou incapacidade do sangue de coagular. É aqui que você resgata o velho livro de biologia pela primeira vez, para lembrar que a capacidade do corpo de formar coágulos é fundamental para evitar sangramentos descontrolados, por exemplo, diante de um corte. O problema é que, por questões genéticas ou em função de alguma doença adquirida, em algumas pessoas a deficiência de um fator sanguíneo impede essa resposta natural do organismo, o que significa que, se não conseguirem repor esses fatores, elas ficam expostas ao risco de hemorragias (externas e internas) e morte.

De acordo com o Ministério da Saúde, pouco mais de 30 mil pessoas estão cadastradas no SUS como portadores de coagulopatias. A hemofilia A é a mais recorrente e mais conhecida dessas doenças, que atinge 11 mil brasileiros; seguida pela Doença de von Willebrand, que afeta outros 10 mil; além de pacientes de hemofilia B e coagulopatias raras, outras de origem hereditária e demais transtornos hemorrágicos. Todos recebem regularmente – e de forma gratuita – o tratamento com hemoderivados oferecido pelo SUS. Através de sistemas de informação que ajudam a gerir essa política, o Ministério tem controle do estoque de sangue e de hemoderivados de cada hemocentro, de modo que, se falta em algum lugar, a Pasta se responsabiliza pela reposição, deslocando esses insumos de outro serviço hemoterápico, mesmo entre estados diferentes. “As pessoas dependem disso para a sua sobrevida e é só no SUS que elas vão encontrar”, explica Joice Aragão, que se orgulha: “É uma política exitosa essa nossa”.

Nada disso começou agora. A obrigatoriedade de o Estado garantir os medicamentos e insumos necessários ao tratamento de pessoas com coagulopatias foi resultado de luta e pressão social, principalmente de usuários organizados em entidades da sociedade civil, numa história que se parece – e, em alguma medida, até se confunde – com a do movimento de portadores de HIV/Aids. “No Brasil temos o único programa no mundo que compra hemoderivados nessa quantidade, para atender a esse número de pacientes”, ressalta Beatriz MacDowell, que foi coordenadora do hemocentro do Distrito Federal e gerente geral de Sangue e Hemoderivados da Anvisa entre 2000 e 2004. E o destaque não é por acaso. “São medicamentos de altíssimo custo”, confirma Aragão, detalhando que, em 2023, o Ministério da Saúde reservou um orçamento de R$ 1,6 bilhão para a compra desses fármacos. “A gente tem uma excelente política de sangue, que é referência no mundo”, completa a coordenadora, contando que recentemente o Brasil chegou a capacitar países como Angola e Honduras nessa área.

A fábrica que ainda não veio

Ascom/Hemobras

Acontece que nem tudo que o Ministério da Saúde compra de hemoderivados vem da Hemobrás., apesar de a empresa ter sido criada em 2004 com essa finalidade principal. Não por acaso, a cifra referente ao orçamento de 2023 voltado à aquisição desses medicamentos vem sendo citada pelos defensores da PEC do Plasma para destacar o gasto público com a compra de medicamentos que deveriam ser produzidos pela empresa. “A Hemobrás foi criada, estrategicamente, para produzir hemoderivados e, até hoje, não produziu uma gota sequer desses medicamentos. A demanda nacional por hemoderivados está sendo atendida por meio da importação, a um custo que, atualmente, atinge R$ 1,5 bilhão, segundo o Ministério da Saúde”, argumenta o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), autor do texto original da PEC. O presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu, que funciona como uma espécie de sindicato patronal das entidades privadas dessa área, vai na mesma direção: “Tenho certeza absoluta do papel importante da Hemobrás para o país, como é o papel do SUS. Agora, a Hemobrás está fazendo já vários aniversários e não está produzindo ainda”.

Isso é fato. Foram muitos os problemas que atrasaram a efetivação do projeto da Hemobrás, desde a insuficiência de normativas legais até o embargo da obra da fábrica por denúncia de corrupção. O atual presidente da empresa, Antonio Edson Lucena, diz que prefere não falar do passado porque desconhece as dificuldades que foram enfrentadas, mas arrisca afirmar que o conjunto dos problemas expressa, de certa forma, o custo que se pagou pelo “pioneirismo” da iniciativa. “Era como se o Brasil não estivesse preparado para ter uma fábrica desse tamanho, com a tecnologia que é necessária. E não tivéssemos também as leis que vieram depois, o incentivo tecnológico nas PPPs [parcerias público-privadas], o desenvolvimento para internalização de transferência de tecnologia...”, analisa.

Ele garante que, neste momento, todos esses obstáculos estão superados. A Hemobrás tem hoje duas fábricas sendo construídas, em processo de finalização. Segundo Lucena, a primeira delas será inaugurada ainda este ano e passará pelos devidos testes ao longo de 2024 visando à autorização de funcionamento da Anvisa, com expectativa de pleno funcionamento em 2025. Essa é uma estrutura exclusiva para produção do fator VIII (oito) recombinante, produto que atende as pessoas com hemofilia A, que representam o maior contingente de portadores de coagulopatias no Brasil. Trata-se, no entanto, de um fármaco produzido por engenharia genética, sem necessidade de sangue humano. “É fantástico. Esse remédio vai ser produzido dentro do Brasil por um custo muito menor. Menor evasão de divisas. Desenvolvimento da indústria no país. Emprego no país. Geração de imposto no país todo. Todo esse ciclo financeiro necessário ao desenvolvimento, mas principalmente, ter remédio de boa qualidade para fornecer para os brasileiros”, comemora o presidente da ABBS alertando, no entanto, que o cenário é menos promissor na parte da indústria que requer sangue humano para se desenvolver. “Quando depende do plasma, vai faltar matéria-prima”, aposta, reforçando o argumento de que é preciso coletar mais plasma para uso industrial dos bancos de sangue e que a saída para isso é aprovar a PEC nº 10.

É aqui que entra a segunda fábrica da Hemobrás, essa sim voltada para o fracionamento – técnica que consiste na separação das proteínas do plasma, parte líquida do sangue, denominadas hemoderivados. “Hoje a gente está montando as salas limpas, que são as áreas de processo fabril, juntamente com os equipamentos. No próximo ano a gente finaliza isso e começam os testes da fábrica. Vai durar mais um ano. Então, no final de 2025 a gente vai estar pronto para iniciar esse fracionamento aqui”, promete Lucena, que garante que, com o recurso que já foi investido e o mais novo aporte de R$ 800 milhões que o governo federal reservou para esse objetivo como parte do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, não existem mais obstáculos para a fábrica começar a produzir e o país atingir a autossuficiência em hemoderivados. “Agora é só deixarem a gente fazer as coisas e não mudarem as regras no meio do jogo”, diz, numa referência contra a aprovação da PEC. O secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, faz coro: “Na hora em que a gente vai dar o grande salto para garantir a estabilidade e a segurança sanitária na área da hemoterapia, e talvez por isso mesmo, [essa Proposta] faz com que o interesse comercial subverta e se sobreponha ao interesse pela vida”, critica.

Se a avaliação sobre o êxito na produção do fator VIII recombinante parece pacífica, quando o assunto são os medicamentos derivados do plasma humano não há consenso sobre o que se deve esperar desse futuro próximo. A maior demanda de derivados do sangue no Brasil não diz respeito aos fatores de coagulação e sim a outras proteínas do sangue, como a albumina e, principalmente, as imunoglobulinas, que desempenham a função de anticorpo, ou seja, defendem o organismo do ataque de agentes externos que causam doenças, como vírus e bactérias. “As imunoglobulinas são indispensáveis para um conjunto de outros pacientes, os com doenças imunológicas congênitas, como as imunodeficiências primárias e adquiridas, como câncer e HIV”, explica Beatriz Mac Dowell.

"A fábrica hoje é uma fábrica de vanguarda. Nós temos todas as novidades contemporâneas da tecnologia farmacêutica"
Edson Lucena

Recentemente, o Ministério da Saúde atualizou os números referentes à necessidade de imunoglobulinas no SUS, praticamente dobrando para 800 mil frascos por ano, de acordo com o presidente da Hemobrás. Também segundo ele, embora a empresa tenha sido pensada para produzir 700 mil frascos, portanto abaixo dessa demanda atualizada, a fábrica que está sendo finalizada e que deverá entrar em funcionamento a partir de final de 2025 terá condições de gerar mais de um milhão de litros, adaptando-se “rapidamente” à necessidade do SUS. “A fábrica hoje é uma fábrica de vanguarda. Nós temos todas as novidades contemporâneas da tecnologia farmacêutica”, comenta.

A urgência dessa produção tem a ver não apenas com a redução de custos e o desenvolvimento da indústria nacional mas também com a própria capacidade de abastecer os serviços de saúde, atendendo à necessidade da população. Isso porque, como o próprio Lucena destaca, mesmo no mercado internacional não existe disponibilidade de oferta de toda essa quantidade de imunoglobulinas. E o problema é que o plasma de uso industrial disponível no Brasil hoje é insuficiente para atender à demanda, o que significa que, mesmo que a produção da Hemobrás estivesse a pleno vapor, faltaria matéria-prima para a autossuficiência do país nos medicamentos derivados do sangue. Por quê?

Como o plasma excedente de onde se obtêm os hemoderivados é aquele que não foi usado nas transfusões, o lugar de extração e armazenamento dessa “matéria-prima” para uso industrial são os mesmos bancos de sangue, públicos e privados, que coletam e fornecem as bolsas de sangue para transfusão. E a legislação estabelece que esse plasma excedente deve ser entregue à empresa pública – a Hemobrás – responsável por qualificar os serviços hemoterápicos para o fornecimento de plasma para uso industrial, gerir todo esse processo e obter os hemoderivados que devem abastecer o SUS. Mas atenção, porque neste ponto as palavras podem fazer toda a diferença: “entregar” não é vender, o que significa que a Hemobrás não paga pelo plasma retirado dos bancos de sangue nem lucra com a distribuição desses medicamentos derivados do sangue no SUS. Por isso ela precisa ser uma empresa pública. E é aqui que está o ‘x’ da questão.

Argumento principal: tem desperdício?

Quem está acompanhando o debate sobre a PEC do Plasma pela imprensa provavelmente observou que uma das palavras mais destacadas entre os defensores da medida foi “desperdício”, em geral acompanhada da denúncia, já tratada acima, de que a Hemobrás ainda não conseguiu cumprir seu papel na produção autônoma de hemoderivados. Como trata-se de dois problemas diferentes, é bom separar (e explicar) os argumentos. Segundo dados fornecidos pela assessoria de imprensa da empresa, de janeiro a outubro deste ano foram recolhidos 120 mil litros de plasma, que significaram 121 mil frascos de imunoglobulina entregues ao SUS até setembro. “Todo o plasma para uso industrial recolhido pela Hemobrás nos serviços de hemoterapia é enviado para fracionamento, com exceção das bolsas que não são consideradas aptas no processo de triagem feito na fábrica da Hemobrás, que equivalem a menos de 3%”, informou a assessoria. “O desperdício é zero”, garante Carlos Gadelha.

Apesar disso, tanto em artigos publicados na imprensa quanto na justificativa do texto original da PEC, de autoria do senador Nelsinho Trad, e no relatório da senadora Daniela Ribeiro (PSD-PB) que foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, é citado um caso concreto de desperdício de cerca de 600 mil litros de plasma. A situação remete a 2017, num período em que o então ministro Ricardo Barros transferiu a responsabilidade pela gestão do plasma da Hemobrás para a Pasta da saúde. O ministério não conseguiu contratar uma empresa para fazer o fracionamento e todo esse sangue foi, de fato, descartado. Foi diante desse cenário, para exigir a solução do problema, que, em 2020, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público junto ao TCU notificaram o Ministério da Saúde. Mas em 2021, já na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello, a responsabilidade sobre o uso do plasma excedente voltou a ser da Hemobrás que, com a experiência e as ferramentas legais de que dispõe, contratou a empresa para fracionamento e encerrou ali aquele problema. Mesmo assim, o caso continuou sendo usado como justificativa para a PEC em 2022 e para o relatório aprovado na CCJ em 2023. Em entrevista realizada por email, a reportagem questionou o senador Nelsinho Trad sobre por que um caso já solucionado tinha sido utilizado na justificação da PEC, perguntando ainda se ele considerava que o problema não estava devidamente superado. A resposta do senador destaca o fato de a Hemobrás ainda não ter produzido os hemoderivados que deveria e cita cifras para informar os recursos investidos na empresa e o gasto do Ministério da Saúde na importação dos fármacos que ela não produz, mas não faz qualquer referência ao uso do argumento datado relativo ao desperdício ocorrido no passado. Já a senadora que relatou o texto aprovado na CCJ foi contactada três vezes pela reportagem, via assessoria de imprensa, mas não respondeu aos pedidos de entrevista. Em meio ao debate atual, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) emitiram nota técnica contrária à PEC 10/2022. 

Na verdade, o desperdício que a PEC denuncia e quer combater se dá em outro lugar: num conjunto, de fato amplo, de bancos de sangue que hoje não entregam o plasma excedente que coletam para a Hemobrás transformar em hemoderivados. Aqui, no entanto, é preciso diferenciar os problemas (e as soluções) que envolvem o público e o privado. De acordo com dados da Anvisa relativos a 2021, o Brasil tem 95 hemocentros (públicos) – pelo menos uma unidade coordenadora em cada estado e, em alguns casos, outros regionais. Todas as unidades públicas que compõem a hemorrede passam por um Programa Nacional de Qualificação, que é de responsabilidade da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, que engloba, por exemplo, a capacitação de profissionais e a avaliação de todas as etapas e ciclos de trabalho desenvolvidos, de modo a garantir a segurança sanitária que esses serviços hoje têm no Brasil – cuja vigilância é responsabilidade da Anvisa. Os estados também, muitas vezes, desenvolvem suas próprias iniciativas para qualificar o serviço. Já os bancos privados são responsáveis pelo seu próprio processo de qualificação. Hoje, de acordo com Paulo Tadeu, todos os serviços hemoterápicos associados à ABBS – 21, de acordo com a lista disponível no site da entidade, que, segundo ele, representam entre 80% e 90% dos bancos de sangue privados no país –, são qualificados por uma entidade chamada Organização Nacional de Acreditação (ONA).

Já quando se trata de garantir a qualidade do plasma excedente como matéria-prima para a produção de hemoderivados, tanto para os hemocentros públicos quanto para os bancos de sangue privados, é necessária ainda uma outra fase, de auditoria e certificação, que, de acordo no a legislação sanitária nacional e internacional, deve ser realizada diretamente pelas indústrias – no caso do Brasil, mais precisamente, pela Hemobrás. A questão é que, de acordo com informações da assessoria de imprensa da empresa, até hoje apenas 60 serviços de hemoterapia brasileiros foram auditados, dos quais 46 foram qualificados e estão aptos a fornecer o plasma de uso industrial. Isso significa que todo o plasma excedente extraído nos demais deixa de ser aproveitado para a produção de medicamentos. “Enquanto isso, você está jogando no lixo essa matéria porque não tem condição de fazer inspeção num hemocentro público”, lamenta Paulo Tadeu, diretor da ABBS. “[Basta] ter uma inspeção por semana em cada hemocentro, em dez meses vai ter tudo validado”, critica. Já de acordo com o presidente da empresa, as coisas não são tão simples assim: “Uma auditoria de qualificação demora três dias, em que a Hemobrás verifica se todos os requisitos de segurança de um banco de sangue ou de um hemocentro estão em conformidade com o que é necessário. Ou seja, eu tenho que buscar rastreabilidade, todos os testes que são feitos, a condição de preparação, de conservação do plasma... Tudo isso a gente vê minuciosamente. Se tudo estiver ok, está qualificado e a gente marca para pegar o plasma. Se não estiver, elabora-se um plano de ação para que o hemocentro ou banco de sangue privado se adapte. E aí a gente faz uma nova visita, constata se foi realizado aquilo e [em caso positivo] ele se torna produtor de plasma para a gente”, detalha Lucena sem, no entanto, deixar de reconhecer que houve atraso nesse processo: “De fato, esse é nosso calcanhar de Aquiles”, diz, embora enfatize que, para efeitos de decisões políticas – como a aprovação ou não da PEC do Plasma –, é mais importante analisar as perspectivas concretas de um futuro próximo do que os problemas do passado.

Para reduzir isso que tem sido apontado como “desperdício” no debate sobre a PEC, essas promessas de futuro breve começaram com um aporte de R$ 100 milhões no orçamento de 2023 da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde que devem ser aplicados na qualificação da hemorrede, tendo como foco principal a ampliação da capacidade de fornecimento de plasma industrial. Em paralelo, o presidente da Hemobrás garante que o prazo de finalização da fábrica de fracionamento de plasma – 2025 – será o tempo suficiente para a empresa finalmente auditar e certificar os bancos de sangue que faltam, aumentando de forma significativa a quantidade disponível de plasma de uso industrial. Mas aqui entra uma particularidade dos bancos de sangue privados, que está no centro dos interesses na PEC do Plasma – e é neste momento da reportagem que você vai tentar lembrar aquelas aulas sobre direito (à saúde e à vida) sem perder de vista algumas noções básicas de economia.

"Não existe almoço ou jantar de graça"
Paulo Tadeu

É que, em coerência com a concepção constitucional de que órgãos do corpo humano não podem ser tratados como mercadoria, hoje a legislação delega ao Ministério da Saúde, como coordenador do Sistema Nacional de Sangue (Sinasan), a tarefa de “definir a forma de utilização do plasma congelado excedente do uso terapêutico dos serviços de hemoterapia públicos e privados, com vistas ao atendimento do interesse nacional”, como explica a portaria 158/2016. Para ficar ainda mais claro, no final desse trecho, o texto afirma se basear no parágrafo segundo da lei 10.205/2001, segundo o qual “periodicamente, os serviços integrantes ou vinculados ao Sinasan deverão transferir para os Centros de Produção de Hemoterápicos governamentais as quantidades excedentes de plasma”. Como você deve ter percebido, esse é novamente um ponto em que a escolha das palavras faz toda a diferença, porque a grande reivindicação do setor que luta pela aprovação da PEC é que, para a rede privada, não se deve falar em “entrega” ou “transferência”. “Não existe almoço ou jantar de graça”, resume Paulo Tadeu.

Para Beatriz MacDowell, o trecho é preciso sobre o “espírito” que a legislação quis dar ao tema: ao usar o termo “governamentais”, afirma que a responsabilidade pela produção de hemoterápicos no Brasil é do setor público estatal e, ao optar pelo verbo “transferir”, deixa claro que isso não envolve qualquer tipo de relação comercial. Apesar disso, a entidade que representa os bancos de sangue privados alega que eles não têm para onde encaminhar a sua parte do plasma excedente porque “não têm como receber por ele”. E, como numa profecia autorrealizada, a consequência desse dilema é exatamente o “desperdício” que agora a PEC promete superar. “A gente joga o plasma excedente no lixão”, admite Paulo Tadeu.

O presidente da ABBS vai além e caracteriza como “confisco” qualquer recolha do sangue de um banco privado que se dê sem remuneração. “Você poria o teu carro na concessionária para vender sem ter um contrato, garantindo que aquele carro é teu, que você será ressarcido por ele?”, questiona, indiferenciando o debate sobre o sangue de qualquer outra mercadoria. Já o presidente da Hemobrás entende que essas instituições estão simplesmente descumprindo a lei. “O plasma que sobra não é deles e isso está sendo apropriado”, critica.  Mac Dowell vai na mesma direção ao lembrar que, desde as primeiras tentativas de construção de uma política nacional nessa área, a compreensão que prevaleceu foi a de que o sangue é do Brasil, não importando seu estado de origem nem se foi armazenado numa instituição pública ou privada e acrescenta que o que o setor privado quer é se apropriar do sangue doado voluntária e altruisticamente para vender no mercado internacional.  “Eu já ouvi um proprietário de banco de sangue dizer: ‘Eu quero o direito de entregar o meu plasma a quem eu quiser’, frisando o ‘meu’. Mas essa é uma matéria-prima que foi doada a ele. Ele não comprou”, relata Antonio Edson Lucena, tocando num dos pontos que ganhou maior destaque em torno da PEC do Plasma: o debate sobre se deve-se autorizar ou não a remuneração do ‘doador’ – cujo status mudaria para ‘vendedor’ de sangue.

Um novo mercado de vampiros?

"Tivemos um histórico de pessoas pobres vendendo o seu sangue para sobreviver. Era uma tragédia humana"
Carlos Gadelha

Sobre esse cenário possível, paira o fantasma da década de 1980, quando a compra e venda de sangue se tornou um negócio – muitas vezes clandestino – que esteve na origem do alto índice de contaminação por doenças como Hepatite, Chagas e HIV/Aids durante os procedimentos de transfusão. Foi esse contexto, principalmente a partir da disseminação do vírus do HIV, que, sob a liderança de uma das vítimas, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, gerou-se a mobilização sobre o tema na Assembleia Nacional Constituinte (ver pág. 11). “Tivemos um histórico de pessoas pobres vendendo o seu sangue para sobreviver e um acúmulo de doenças nesse período. Era uma tragédia humana. Mexer com isso mexe com o princípio humanitário que a nossa Constituição naquele momento traçou”, opina Joice Aragão. “Era um mercado de vampiros, que extraíam o sangue da população mais vulnerável, mais desassistida, para obter ganhos apenas econômicos”, completa Carlos Gadelha.

O presidente da ABBS acusa os críticos da PEC de estarem produzindo “factóides”. “Estão criando terror nos pacientes, [dizendo que] agora [o doador] vai ser remunerado, o SUS não vai mais fornecer [sangue] e o meu filho vai morrer. São mentiras para causar pânico”, diz. Primeiro, ele argumenta que nos países em que existe um mercado de plasma, a remuneração de ‘doadores’ não gerou qualquer impacto na quantidade de sangue coletado – vale dizer que, sobre isso, a reportagem não localizou estudos científicos que estabeleçam essa relação comparativa, embora haja quem defenda exatamente o contrário do representante dos bancos privados: “Na medida em que você torna uma atividade comercial, as pessoas que doam voluntariamente, pensando naquelas pessoas acidentadas que precisam do plasma, pensando nos hemofílicos, pensando nas pessoas que têm queimaduras profundas e que precisam de albumina, vão dizer: ‘Eu não vou mais doar meu sangue porque tem gente ganhando dinheiro com isso’”, argumenta Gadelha. Em segundo lugar, Paulo Tadeu classifica como “uma grande mentira” o argumento de que o sangue remunerado terá menos qualidade do que aquele doado – alegação que normalmente é explicada pelo fato de que, diferente do doador, o ‘vendedor’ pode omitir doenças e problemas de saúde que comprometeriam a segurança sanitária do procedimento. De fato, no auge do debate sobre a não-comercialização do sangue na Constituinte, nos anos 1980, um artigo intitulado ‘A politização do sangue no Primeiro Mundo’, de autoria de Luiz Castro Santos, Claudia Moraes e Vera Coelho, mostrou como os estudos mais atuais daquela época não comprovavam necessariamente essa relação.

Apesar de rebater os argumentos de quem se posiciona contrariamente à remuneração de ‘doadores’, o presidente da ABBS insiste na necessidade de “desmistificar” esse debate neste momento, argumentando que não é essa a proposta da mudança constitucional que tramita no Congresso. “Não existe remuneração para doação de sangue nem de plasma”, garante, embora o relatório da senadora Daniela Ribeiro aprovado na CCJ deixe esse ponto aberto à interpretação quando aponta o plasma como “exceção” no trecho da Constituição que vedava “todo tipo de comercialização”. Mas se de fato em algum momento da tramitação legislativa essa mudança for vetada, da parte dos defensores da PEC terá sido apenas um adiamento, por questões táticas e não de princípios. “Eu tenho certeza que a gente não tem maturidade hoje para discutir outra coisa que não seja doação não remunerada de qualquer órgão ou tecido”, diz Paulo Tadeu, acrescentando que, após a aprovação da PEC, “daqui a cinco ou dez anos”, é possível voltar a conversar sobre o assunto. Perguntado sobre sua posição em relação à remuneração do ‘doador’, o autor do texto original da PEC, senador Nelsinho Trad, respondeu, por email, que “na prática, o Brasil remunera a doação de plasma por meio de suas importações”, e, embora não explique essa afirmação, acrescenta que, “como médico e defensor do SUS, não poderia ser conivente com esse cenário”.

É conversando que a gente se entende?

Para quase todos os entrevistados desta reportagem que se posicionam contrariamente à PEC do Plasma, criticar a postura dos bancos de sangue privados nesse debate não significa deixar de reconhecer que existem custos na manutenção das condições que garantem a viabilidade do plasma de uso industrial e que, sem incentivo, o setor privado lucrativo que existe como complementar ao SUS dificilmente terá interesse em estar apto a participar desse processo. Tanto o presidente da Hemobrás quanto a coordenadora de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, por exemplo, reconhecem como legítima a reivindicação de que o governo federal, cumprindo a sua responsabilidade de abastecer o SUS com hemoderivados, ressarça os bancos de sangue pelos custos de fornecimento do plasma que seguirá para a indústria. Mas compreendem que, diferente da comercialização que a PEC quer viabilizar, isso está previsto e autorizado pela legislação existente.

O artigo 14 da Lei 10.205 – que regulamenta o artigo 199 da Constituição, que agora a PEC do Plasma quer modificar – proíbe a “comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, componentes e hemoderivados”, mas permite a “remuneração dos custos dos insumos, reagentes, materiais descartáveis e da mão-de-obra especializada, inclusive honorários médicos”. Na prática, os hemocentros públicos e os serviços privados conveniados com o Sistema Único de Saúde já são ressarcidos pelos custos dos procedimentos de saúde que envolvem o uso do sangue, de acordo com a tabela do SUS. Da mesma forma, no circuito da saúde complementar de que fazem parte, os bancos de sangue privados com fins lucrativos são remunerados pelos planos de saúde ou hospitais privados a quem fornecem as bolsas de sangue usadas em transfusões, o que inclui uma parcela do plasma. Já a parte excedente, de uso industrial, que só pode ser destinada à empresa pública, fica numa espécie de limbo. Com o entendimento de que o tipo de ressarcimento praticado no âmbito do SUS é completamente diferente de comercialização, o presidente da Hemobrás diz que a empresa estuda junto ao governo uma proposta para remunerar os custos do plasma excedente que for transferido para a empresa transformar em hemoderivado. “Isso não configura comercialização, portanto, um arranjo desse tipo poderia ser feito dentro da pactuação do SUS, sem mudança constitucional”, explica. Joice Aragão concorda: “É justo que se discuta isso”.

"Eles [o setor privado estão querendo ser remunerados por algo que já está pago"
Beatriz MacDowell

Beatriz MacDowell também compreende que se pode discutir formas de ressarcir o “custo operacional” do armazenamento do plasma que será encaminhado à indústria, mas sugere que, para se ater de fato ao ressarcimento previsto no SUS, é preciso fazer as contas descontando toda a parte desse processo pelo qual, na sua avaliação, os bancos de sangue privados já são remunerados pelos clientes privados, entre eles muitos hospitais “top de linha”. Ela explica que de cada bolsa de sangue total, extraem-se os componentes para transfusão – leucócitos, plaquetas, hemácias, de um lado e o próprio plasma, de outro – num processo que é parte da rotina dos serviços hemoterápicos, pelos quais, portanto, os bancos privados já são remunerados. O gasto extra que eles teriam para conservar o plasma excedente a ser entregue para uso industrial seria, segundo ela, apenas o de armazenamento. “E, a depender da frequência da coleta do plasma excedente pela Hemobrás, talvez nem seja necessária a aquisição de equipamentos de congelamento, com temperaturas muito baixas que requerem maior investimento”, diz. E sugere: “O que pode não estar sendo remunerado? É o armazenamento. Então vamos separar, calcular o custo por etapa do processo e propor os valores que deverão ser ressarcidos pela Hemobrás aos serviços privados fornecedores do plasma excedente por eles processado e armazenado”. Mesmo assim, MacDowell destaca que esse procedimento mais complexo e caro é necessário, principalmente, para preservar o fator VIII de coagulação, mas que, com a nova tecnologia recombinante, que não precisa mais de componentes do sangue – e que a Hemobrás promete produzir a partir de 2025 –, somada ao recolhimento mais frequente do plasma pela Hemobrás, ele se tornará cada vez menos necessário. Com isso ela quer destacar, por exemplo, que as imunoglobulinas, que são a maior necessidade de hemoderivados do SUS hoje, e que podem ser obtidas a partir do plasma armazenado nos freezers já existentes nos próprios serviços de coleta e armazenamento, não gerariam outros gastos, além do consumo de energia, “hoje muito oneroso para qualquer serviço”. “Eles estão querendo ser remunerados por algo que já está pago”, argumenta.

"Os bancos de sangue privados querem poder vender o excedente, porque no mercado internacional o sangue vira uma commodity"
Beatriz MacDowell

Independentemente desses cálculos, o que os bancos de sangue que têm vocalizado a defesa da PEC do Plasma querem é o direito de negociar o plasma humano num mercado que vai muito além do ressarcimento que o SUS pode oferecer. Perguntado se um acordo para que o SUS ressarcisse os custos dos bancos privados para o fornecimento de plasma excedente para a indústria substituiria a mudança que a PEC está tentando implementar, Paulo Tadeu responde que não, argumentando, primeiro, que a tabela do SUS está defasada para todos os serviços prestados pelo setor privado conveniado. Interrogado se com possíveis ajustes da tabela essa saída seria viável, ele reforça que não porque o plasma que sobra da coleta de sangue para transfusão não é suficiente para responder às necessidades do país. “Os bancos de sangue privados querem poder vender o excedente, porque no mercado internacional o sangue vira uma commodity. É uma mina de ouro para eles”, diz Joice Aragão. Uma das emendas incluídas no texto do relatório aprovado na CCJ garante que os hemoderivados produzidos a partir da “coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano” devem prover “preferencialmente” o SUS. Mas, na avaliação de Carlos Gadelha, trata-se de mais uma “falácia”. “‘Preferencialmente’ significa simplesmente que eu posso pegar 49% do plasma e dos hemoderivados para atender apenas a população rica de alta renda e a exportação”, alerta, lembrando que o SUS atende 100% da população brasileira.

Doação produtivista

É aqui que entra em cena outra pauta presente na PEC do Plasma: a defesa de que os serviços hemoterápicos privados sejam autorizados a colher diretamente o plasma, aumentando o volume e a velocidade dos estoques. Trata-se de uma técnica chamada plasmaférese ou simplesmente aférese, que permite devolver os demais componentes do sangue ao doador, ficando apenas com o plasma. A vantagem é que essa prática reduz abruptamente o intervalo de tempo em que uma pessoa pode doar, apostando numa espécie de ‘produtividade’ que permite aumentar exponencialmente o volume de estoque de plasma, já que, na doação da bolsa completa, ele representa apenas cerca de 200 ml de cada litro de sangue. “Quando doa sangue, você se restabelece para outra doação depois de quatro meses, no caso das mulheres; e três meses, no caso dos homens. Usando a plasmaferese, você pode fazer isso até duas vezes por semana”, explica Lucena, que completa: “É com isso que os bancos de sangue privados sonham: ter de graça a matéria-prima com muita abundância para poder vender”.

Pode não ser tão fácil assim: segundo o presidente da Hemobrás, uma doação de sangue por plasmaférese dura, em média, 1h20min, enquanto uma coleta de bolsa inteira, que serve para a transfusão, dura cerca de 15 minutos. “Como eu vou convencer os doadores de sangue a ficarem lá por todo esse tempo?”, questiona. Talvez isso justifique o fato de o ‘pacote completo’ de mudanças previsto pela PEC do Plasma prever, inicialmente, também a remuneração do doador. Talvez também por isso o presidente da ABBS sugira que esse debate pode voltar daqui a alguns anos, quando o país tiver maior “maturidade”.

A compreensão de que essa técnica pode ser uma estratégia para aumentar a extração da matéria-prima necessária à produção de hemoderivados para atender às necessidades do SUS não é nova. Assim como também não é inédita a constatação da complexidade e das contradições que ela carrega. Tanto é assim que a Lei 10.205, de 2001, no seu artigo 23, já prevê o uso da plasmaférese, mas, ciente de suas implicações, estabelece que seu uso não terapêutico, visando à produção de medicamentos, deve ser “atividade exclusiva do setor público”. “Isso foi pensado exatamente para não haver nenhum tipo de comercialização”, diz Lucena. O que a legislação reconhece, portanto, é que, sob a responsabilidade do setor público e orientada apenas pelo interesse da sociedade, essa técnica pode ser uma estratégia para aumentar o estoque de plasma quando o país precisar de mais hemoderivados do que aquele que a doação regular, de bolsas de sangue inteira, pode fornecer. Até porque, como explica MacDowell, aumentar a coleta de bolsa total a ponto de ampliar exponencialmente o volume de plasma geraria um desequilíbrio na rede, com o risco de se ter desperdício de hemácias, objetivo principal das doações de sangue total. Por outro lado, ela não descarta o uso da plasmaférese para a indústria, mas defende que, a princípio, a prática não deve ser realizada pelos serviços privados.  Por tudo isso, segundo Antonio Edson Lucena, mesmo com as dificuldades apontadas, a Hemobrás vai comprar e instalar o maquinário necessário em alguns dos maiores hemocentros do país para implantar um projeto-piloto, cuja meta será a coleta de 50 mil litros de plasma por plasmaférese por ano.

O estado da arte

Geraldo Magela/Agência SenadoTudo isso é o pano de fundo de um debate que vem polarizando posições, com manifestações públicas contra e a favor da mudança constitucional. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Conselho Nacional de Saúde (CNS), conselhos nacionais dos secretários municipais e estaduais de saúde (respectivamente, Conasems e Conass) e Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (Abraphem), além dos já citados MPF e MPTCU e o próprio governo federal são algumas das entidades que emitiram notas contra a medida. A principal voz no debate público a favor da PEC tem sido a ABBS, mas a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABBH) também se posicionou publicamente pela aprovação da mudança. No momento em que esta reportagem foi concluída, a PEC 10/2022 tinha sido aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, de onde seguiria para votação em plenário e, uma vez vitoriosa, seria remetida para tramitação na Câmara dos Deputados.

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