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Educação e movimentos sociais

Frei Betto defende aproximação entre as escolas e os movimentos sociais para estimular a consciência política
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 29/05/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Frei Betto foi um dos mais concorridos debatedores do 3º Fórum Mundial de EPT Foto: EPSJV/Fiocruz

Você faz um curso técnico, se forma e vai trabalhar numa fazenda do agronegócio. Está feliz porque conseguiu um bom emprego. Mas quando o empresário expulsar uma aldeia indígena chamando todos de vagabundo, ou quando tratar o peão em regime de semiescravidão, como você vai reagir? Esse foi o exemplo que Frei Betto, frade dominicano e escritor, e um dos debatedores mais esperados do 3º Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, usou para explicar que nenhuma educação é neutra. “A questão é saber se o que estamos fazendo coloca azeitona na empada dos opressores ou dos oprimidos”, questionou, completando: “No Brasil, hoje, a educação visa principalmente formar para o capital privado”.

Para Frei Betto, três erros facilmente identificáveis nesse cenário são o fato de a maioria das escolas brasileiras não terem conteúdo de ética atravessando o currículo, não promoverem a reflexão por meio da filosofia e estarem afastadas do movimento estudantil. “O mínimo que uma escola precisa ter é grêmio, movimento estudantil, que é onde se forma consciência de cidadania e participação”. Exatamente por isso, ele frisou a importância de as escolas se vincularem aos movimentos sociais. “Vão para os assentamentos dos sem-terra, dos sem-teto”, exemplificou. Num exercício de vincular os problemas específicos da educação com questões mais gerais da conjuntura, que atravessou toda a sua fala, ele associou o processo que chamou de “despolitização” do país aos governos petistas. Ressaltando o mérito de governos que promoveram a “inclusão econômica de 45 milhões de brasileiros”, Frei Betto apontou como um “erro” o fato de esses mesmos governos não terem promovido uma “inclusão política”.

Sobre o contexto político atual, sua análise foi ainda mais rigorosa. Numa fala realizada um dia depois de a Câmara dos Deputados aprovar pontos de uma reforma política que Frei Betto classificou como “trágica”- que, entre outras coisas, oficializa o financiamento empresarial de campanha -, ele não poupou críticas à responsabilidade do PT nesse processo. Disse que a presidente Dilma Rousseff “terceirizou” o governo - para o PMDB, concentrando o poder nas mãos de Eduardo Cunha, presidente da Câmara, Renan Calheiros, presidente do Senado, e Michel Temer, vice-presidente da República – e a política econômica para o Joaquim Levy “mãos de tesoura”. Ele lembrou que, logo que chegou ao governo, o PT teve muito tempo e credibilidade para fazer não só uma reforma política importante quanto uma reforma tributária, educacional e muitas outras. Não fez, disse, porque escolheu assegurar sua governabilidade a partir do mercado e do Congresso e não mobilizando os movimentos sociais. “Hoje o PT e o governo são reféns dos dois”, atestou. O resultado, de acordo com o palestrante, é que, em 12 anos, nenhuma mudança estrutural foi feita no país. E ele lamentou que, nesse processo, o PT tenha perdido os seus três maiores “capitais simbólicos”: ser um partido dos pobres, da ética e da construção do socialismo. Apesar da dureza das críticas, Frei Betto fez questão de destacar que os governos Lula e Dilma foram, na sua avaliação, os melhores da história republicana brasileira. “Não sou ingênuo”, disse.

Produto de todo esse contexto de despolitização, o país vive hoje, nas suas palavras, um momento de “depressão cívica”. Diferente do que ocorria na sua geração, disse, depois do neoliberalismo e da falsa ideia do “fim da história”, o debate político deixou de ser marcado pela “racionalidade”. De acordo com o palestrante, isso foi comprovado nas manifestações que começaram em junho de 2013, em que se protestava contra “um mundo de coisas”, mas sem apresentar propostas, sem bandeiras e sem partidos. “As pessoas foram para as ruas como num luto cívico”, opinou. Característica semelhante tiveram, segundo ele, todos esses movimentos “ocupa”, que apareceram nos Estados Unidos e outros lugares do mundo. “Os Institutos Federais, as escolas, precisam discutir qual é o seu projeto político, que tipo de profissionais estão formando”, apontou.

Num evento em que os debates têm claramente privilegiado uma concepção de inovação vinculada às demandas e parcerias com o setor produtivo, Frei Betto dedicou também parte importante da sua fala a criticar a ideia de tecnologia vinculada aos interesses do capital e defender a prioridade das tecnologias sociais, produzidas pelo “povão”.

Participação e direitos humanos

A fala de Frei Betto foi parte de uma seção da programação do Fórum chamada “Observatório Mundial” que, nesse caso, discutiu “Gestão democrática, participação social e desenvolvimento humano na Educação Profissional e Tecnológica”. Participaram também da mesa Elisio Estanque, da Universidade de Coimbra, em Portugal, e Rildo Marques, do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Além de apresentar dados que mostram o estado de deterioração dos direitos que atinge Portugal e a Europa do Sul de modo geral, Elisio Estanque enfocou a importância de uma educação que não se restrinja ao conhecimento técnico, mesmo o mais avançado, priorizando a dimensão da formação humana e política. O enfoque tecnicista da educação teria relação com os “efeitos perversos” que ele identifica, por exemplo, no desgaste que mesmo as democracias mais avançadas estão sofrendo. E isso, por sua vez, tem tido consequências como o desinteresse dos jovens pelas urnas.

O processo de despolitização foi abordado nesse debate também como parte do problema da participação social. Falando da realidade brasileira, Rildo Marques explicou que a participação que se quer não é aquela em que a população é chamada a opinar a cada dois anos, apenas com o voto. Ele defendeu que a participação social pode ser um processo educativo e que só através dela se pode garantir uma plataforma que gere desenvolvimento humano. Exemplificando com o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, segundo ele, foi fruto de um amplo debate com os movimentos sociais da área, Rildo destacou que as “grandes diretrizes políticas e jurídicas” que o Brasil conseguiu traçar não são ensinadas nas escolas. Numa condenação do retrocesso que significaria a redução da maioridade penal, que está em pauta no Congresso Nacional, ele lamentou: “Não conseguimos fazer do ECA o livro de cabeceira das nossas lutas”.