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Educação Popular na Saúde

No SUS, as sementes de Paulo Freire e de outras experiências têm ajudado a mudar a relação entre profissionais e usuários
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/09/2021 19h12 - Atualizado em 01/07/2022 09h41
Tenda Paulo Freire é parte da programação regular de congresso da Abrasco Foto: Diangela Menegazzi/Abrasco

Herdeiro da concepção de Paulo Freire, se desenvolveu e cresceu no Brasil um movimento que reflete e aplica os princípios da educação popular no campo da saúde. A ideia é de que essa concepção também pode influenciar os diversos espaços envolvidos no processo de saúde e doença, inclusive as unidades de saúde. “A grande herança de Paulo Freire é o enfrentamento da educação bancária, que na saúde se apresenta também na forma da educação sanitária, de uma concepção firmada na ideia de que é preciso transmitir conhecimentos para que a população mude seu comportamento, higienizando-se melhor, alimentando-se melhor, sem levar em conta a realidade e as histórias, culturas e condições materiais de vida das pessoas”, explica Grasiele Nespoli, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Para Fabiana Silva, agente comunitária de saúde (ACS) do município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, ter passado pelo curso de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS), coordenado nacionalmente pela EPSJV/Fiocruz, provocou uma verdadeira transformação das suas práticas. “No início da minha atuação como ACS, toda orientação que a gente recebia era voltada mais para uma visão sanitarista de cuidado e de metas a serem alcançadas, como se a gente já tivesse um roteiro para fazer a visita domiciliar. Quando a gente ia até a casa dos usuários cadastrados, principalmente dos grupos mais específicos, como hipertensos, diabéticos, acamados, eu me via muito com um olhar de cobrança porque era o que havia aprendido”, relata. Ela conta que, logo que chegava aos domicílios, perguntava se o usuário estava tomando a medicação e, se ele respondesse negativamente, encaixava uma sequência quase automática de perguntas e procedimentos: questionar o motivo, reagendar a consulta com o médico para uma possível troca de remédios e assim por diante. “Hoje, se a gente chega e algum usuário fala que a medicação não está fazendo bem, as perguntas são diferentes. A gente consegue ouvir melhor sobre o que pode estar contribuindo para esse mal-estar. Será que ele está fazendo a medicação correta? Entendeu realmente o que o médico falou, o que ele tem, quais as reações possíveis? Além disso, será que o tratamento pode ser associado a outras formas de cuidado? Será que uma terapia não poderia ajudar nessa ansiedade?”, exemplifica, ressaltando que, com a educação popular em saúde, aprendeu a “valorizar o saber dos nossos usuários e fazer com que esses saberes contribuam para o próprio autocuidado deles”.

"Ao invés de culpar o outro pelo lixo na calçada, pela dificuldade de cuidar da casa, pela sua hipertensão, pela tristeza e depressão que esvaziam os sentidos da vida, os trabalhadores da saúde começam a ter uma atuação mais am-pla, envolvendo o diálogo, convocando a população à participação e à construção de saídas para enfrentar os problemas de saúde"
Grasieli Nespoli

Essa mudança de percepção que a educação popular visa promover no campo da saúde, partindo da realidade concreta e do reconhecimento do saber de todos, diz respeito tanto à formação dos profissionais, nos mais diversos níveis, quanto ao trato com a população usuária dos serviços. “Por exemplo, diante do predomínio da concepção sanitária que culpabiliza as pessoas por suas mazelas, a educação popular vai tentar apontar, pela problematização da realidade, pelo esforço de uma análise totalizante, a ligação entre as coisas do mundo, rompendo com visões parciais e particulares, focais. Ela buscará tratar de questões concretas para mostrar que os problemas de saúde que afetam os indivíduos e a população são produzidos e determinados socialmente. Que no contexto do capitalismo, a desigualdade social, a doença e a precarização da vida são estruturais porque são condições necessárias para a acumulação de riquezas. E aí quando os trabalhadores percebem que fazem parte de uma estrutura maior, eles começam a se movimentar de forma crítica, buscando caminhos transformadores da realidade”, explica Nespoli, que exemplifica: “Ao invés de culpar o outro pelo lixo na calçada, pela dificuldade de cuidar da casa, pela sua hipertensão, pela tristeza e depressão que esvaziam os sentidos da vida, os trabalhadores da saúde começam a ter uma atuação mais ampla, envolvendo o diálogo, convocando a população à participação e à construção de saídas para enfrentar os problemas de saúde”.

Foi para promover e espalhar esse novo olhar sobre as relações entre profissionais e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), que, por meio da portaria nº 2.761, em 2013 foi criada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS). Uma das principais estratégias para sua implementação foi o projeto EdPoPSUS, que, como explica Grasiele Nespoli, uma das suas coordenadoras, visava “sensibilizar, difundir a educação popular, colocar a educação sanitária em xeque por meio de um outro fazer educativo”. Voltado para lideranças comunitárias e profissionais de saúde, principalmente ACS, quase 10 mil educandos do Brasil inteiro passaram pelo projeto entre 2016 e 2018, ultrapassando a meta inicial de 7 mil. Um deles era Fabiana Silva.

Além da formação propriamente dita, o projeto gerou encontros, mostras, material didático e um conjunto de livros que sistematizam a experiência, que podem ser acessados na íntegra no site da EPSJV/Fiocruz. Já sem o financiamento do governo federal desde 2018, o curso continua acontecendo pela Escola Politécnica e, de acordo com Nespoli, há previsão de se retomarem turmas por meio de convênios nas cidades de Belém e Manaus e nos estados do Maranhão, Rio de Janeiro e Sergipe.

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Walter Kohan é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de vários livros que tratam sobre a vida e a obra freireana. Nesta entrevista, produzida para a matéria de capa da Revista Poli e que integra um especial comemorativo do centenário de Paulo Freire, o pesquisador contextualiza as experiências desenvolvidas pelo patrono da educação brasileira. Ele também questiona o uso da expressão “conscientização” associada à sua pedagogia, analisa os programas educacionais atuais à luz dessa concepção e explica por que Freire se tornou alvo de perseguição de grupos políticos no Brasil de hoje.
Na comemoração do centenário do patrono da educação brasileira, professorese pesquisadores defendem e praticam a atualidade da pedagogia freireana