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Educar para a produtividade ou para a emancipação?

Ênfase na adequação da política de educação profissional à  dinâmica do mercado e polêmica sobre protagonismo dos cursos FIC marcaram debate sobre Pronatec promovido pela Setec no segundo dia do Fórum.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 01/06/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

De um lado, apresentação de pesquisas que pautam a oferta de educação profissional nas dinâmicas e demandas do setor econômico e defesa dos cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) frente à 'realidade brasileira'. De outro, discussões mais propriamente pautadas pela educação - como aligeiramento da formação, politecnia, emancipação - trazidas pela plateia. A diferença de concepções deu o tom do debate sobre o Pronatec organizado, no dia 28, pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC) no 3o Fórum Mundial de EPT.

Participaram da mesa Paulo Vinicius Zanchet, assessor do secretário da Setec; Sofia Daher, do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), organização social que, desde 2002, mantém contrato de gestão com o governo federal; e Paula Montagner, da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Minitério do Desnvolvimento Social (SAG/MDS).

"Aproveitar indivíduos para a produtividade"

Segundo Paulo Vinicius Zanchet, o Pronatec é cercado de 'lendas', sendo a maior delas a de que o programa se resume ao bolsa-formação. A ação de custeio é voltada para a oferta de cursos técnicos e cursos FIC pelo Sistema S, Rede Federal, redes estaduais e, desde 2012, também as instituições privadas que podem apenas oferecer  cursos na modalidade subsequente (que, segundo o Censo, voltou a crescer no país).

O assessor admitiu que, em ano de ajuste fiscal, as verbas para as 'vagas de custeio' devem diminuir consideralmente. O que vai impedir que as matrículas despenquem - atrapalhando, consequentemente, o cumprimento da nova meta da segunda etapa do programa, de 12 milhões de vagas - são as 'vagas estruturantes' do programa. Ou seja, as ações ligadas às intituições públicas de ensino: expansão da Rede Federal (que atualmente conta com 562 unidades espalhadas por 507 municípios), o Brasil Profissionalizado (com 310 obras concluídas e 188 em fase de execução) e os 985 polos da Rede e-Tec.

Além da expansão e da interiorização da rede física e das vagas da educação profisisonal, um dos objetivos do programa é democratizar a oferta. "Democratizar não quer dizer só chegar em lugares onde não existe, mas chegar de forma adequada a todos os públicos", afirmou Zanchet. O argumento da especificidade de alguns públicos, junto com a caracterização da 'difícil' realidade brasileira, tem sustentado boa parte da defesa da implantação efetiva dos itinerários formativos, que junto com a adoção mais intensiva da Educação a Distância, são as principais pautas em discussão na Setec em 2015.

Veja mais sobre a discussão dos itinerários do ponto de vista da Setec

Dois outros objetivos do programa - ampliar oportunidades para trabalhadores e articular com as políticas de geração de emprego - também tem sido enfatizados em uma tendência crescente de ligar os rumos da política de educação profissional à dinâmica do mercado de trabalho. Durante a apresentação, Paulo Vinicius citou dados da Pnad de 2011 que revelaram que 7.625.457 pessoas haviam concluído o ensino médio mas não prosseguiram os estudos. "Esse número coincide com a primeira meta do Pronatec, de 8 milhões de matrículas. O que podemos fazer?  Como aproveitar esses indivíduos para o mercado de trabalho, a produtividade?".  

Mapa da Educação Profissional

A prospecção da demanda do mercado de trabalho e da dinâmica econômica do país são as bases do Mapa da Educação Profissional e Tecnológica do Brasil (MEPT). O projeto foi encomendado pelo MEC ao Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) para subsidiar o planejamento da oferta de cursos no médio e longo prazos. Segundo Sofia Daher, o Mapa levou em consideração 55 setores da economia, além de variáveis como demografia, políticas sociais, cenário externo, eficiência energética e grandes investimentos, com um nível de detalhamento que diferencia neste último a fase das obras, como, por exemplo, a construção de uma estrada, do período em que a via estiver em operação. Tudo isso para estimar o número de postos de trabalho para profissionais técnicos no futuro e, com isso, prever quantas vagas deverão ser abertas, em que cursos e locais.

Nesse sentido, o mapa trabalha com o conceito de sub-regiões, recorte territorial que não se baseia nos limites administrativos, mas considera capitais e grandes cidades e suas áreas de influência em relação a oferta de serviços e integração pela malha viária. A sub-região de Campinas, uma das 118 existentes no país, engloba alguns municípios de Minas Gerais. Lá, o Mapa prevê que, em 2023, haverá um total de 17 mil trabalhadores ocupados que sejam egressos de cursos técnicos da área de 'ciências da saúde humana' (o mapa não usa o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos mas a Classificação Brasileira de Ocupações).  

Sofia explicou que os pesquisadores chegaram a esse número a partir do cruzamento entre matrículas (sem levar em conta a conclusão do curso) e a estimativa da demanda por "mão de obra". Assim, a conta parte de 2013, quando foram registradas 6.561 matrículas e estimadas 4.463 novas ocupações. Em 2023, as 17 mil novas ocupações estimadas, segundo o cálculo, demandarão a abertura de 11 mil matrículas. Já na sub-região de Santa Maria (RS), se o número de matrículas se mantiver nos cursos técnicos das 'ciências da saúde', o déficit de ocupação estimado para 2023 é de apenas 188.

"Pretendemos aprofundar a visão da estrutura atual e potencial da oferta de educação profissional em saúde, incluindo variáveis como pessoas que não concluem os cursos, fluxo migratório, etc. E também incluir os cursos FIC, pois só levamos em consideração o nível técnico", afirmou, explicando que em 2015 o convênio entre MEC e CGEE deve ser aditivado em um ano. A projeto prevê ainda o lançamento de uma plataforma tecnológica integrada ao sistema de gestão do Pronatec que permita que novas informações possam ser inseridas sistematicamente.

MDS e a ênfase nos cursos FIC

O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) é uma das 16 pastas do governo federal que integram a rede de `demandantes` das vagas de custeio do bolsa formação. A experiência de oferta dos cursos técnicos e FIC para os beneficiários do Bolsa Família e do programa Brasil Sem Miséria foi apresentada por Paula Montagner. A pesquisa feita pelo MDS, que deve ser lançada no início de junho, se preocupou em comparar o desempenho dos beneficiários desses programas com aquele das pessoas inscritas no Pronatec que não constam na base do Cadastro Único. A conclusão é que taxas de conclusão e evasão, aprovação e reprovação foram semelhantes.

A pesquisa levou em conta dados do período entre janeiro de 2012 a junho de 2014, quando foram captadas 2,8 milhões de matrículas realizadas por 2,5 milhões de pessoas. Dessas, respectivamente 63% e 62% pertenciam aos incritos no CadÚnico. "Essa foi a primeira surpresa: dois terços das matrículas em cursos de capacitação estavam no Cadastro Único". Características desses 2,5 milhões de inscritos revelaram, segundo ela, uma grande semelhança com o perfil dos 17 milhões de beneficiários do Bolsa Família: 60% são mulheres, 60% são negros e 64% são jovens com até 29 anos.

Adotando o discurso que vincula prioritariamente educação ao mercado, Paula Montagner também falou sobre `mitos` na sua apresentação: "Um primeiro mito a ser derrubado é que não é porque esse público tem poucos recursos que deixa de buscar uma qualificação. O problema é que essa qualificação se dá em instituições com baixa visibilidade no mercado, culminando em uma certificação que tem pouco valor. Já um certificado do Senai, do Senac, da Rede Federal ou estadual faz muita diferença, tem reconhecimento do mercado".

Segundo Montagner, outra característica marcante do público do Bolsa Família e do Brasil Sem Miséria é a inserção informal no mercado de trabalho. "Pelo menos 75% trabalham e, destes, mais de 80% está inserido no mercado informal". Tendo isso em vista, ela afirmou que o objetivo do MDS com o Pronatec era "contibuir para que essas pessoas ingressassem em empregos com carteira assinada ou formalizassem seu microempreendimento individual ou familiar". Nesse sentido, a pesquisa detectou uma variação de 73% de aumento de pessoas com carteira assinada comparando os números de antes (361 mil) e depois (627,5 mil) do curso. Contudo, segundo dados da Pnad captados entre 2003 e 2013 revelam que o período se caracterizou pelo ingresso massivo de trabalhadores no mercado de trabalho formal, o que impede, por enquanto, que o MDS conclua que essa inserção se deveu ao Pronatec.

Também ganhou destaque o dado de que 83% das pessoas com escolaridade superior ao fundamental completo (sendo 79% do Bolsa Família) buscaram os cursos FIC ao invés dos cursos técnicos. Isso, segundo ela, sustentaria a conclusão de que o público dos programas sociais, por estar afastado da escola há muito tempo, prefere o formato da qualificação. "O MDS está demandando os itinerários formativos", disse durante a apresentação, complementando no debate: "Não é só o governo que quer. O empresariado vem junto na demanda do itinerário".

Polêmica sobre cursos FIC marcou debate

"Há uma preocupação grande em relação aos itinerários formativos, um medo de que os itinerários voltem como na década de 1990, com o Planfor, trabalhando no sentido de precarizar e dar uma educação de qualidade inferior". A fala do pró-reitor de Extensão e Cultura do Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul), Manoel Porto, marcou o tom do debate que sucedeu a mesa sobre o Pronatec. Na plateia, muitas pessoas questionaram a preponderância que os cursos de Formação Inicial e Continuada adquiriram na política de educação profissional do MEC a partir do Pronatec, demonstrando que a 'lenda' mencionada por Paulo Vinicius Zanchet no início de sua apresentação está bem viva na realidade.

Entre as questões levantadas pela plateia, estiveram a necessidade de separar na nova meta de 12 milhões de vagas a parcela que caberá aos cursos técnicos e aos FIC e, indo além, a sugestão de que os recursos para cada uma das modalidades seja discriminado. Perguntas sobre o Proeja no Pronatec e sobre o recuo do MEC em financiar cursos FIC com flexibilidade de carga horária (era possível aumentar em 50% as 160 horas obrigatórias) também foram dirigidas ao representante da Setec. Segundo Zanchet, o Ministério planeja separar o montante de recursos destinados ao programa, assim como a estimativa de número de matrículas, por iniciativa do Pronatec e "não apenas a divisão entre FIC e técnico". Ele também admitiu que "o Proeja não recebeu o destaque adequado" mas afirmou que isso deve mudar, sem dar maiores detalhes. Zanchet anunciou também que o MEC, mediante a recente definição do orçamento, bateu o martelo sobre a flexibilidade dos FIC, que deve ficar em 25%.

O assessor da Setec rebateu os questionamentos, afirmando que a pasta considera os cursos FIC "benéficos" e os itinerários formativos "facilitadores": "É muito complicado para uma pessoa afastada da escola há muito tempo voltar regularmente para a instituição. O itinerário para FIC é um facilitador, tanto no aproveitamento de conhecimentos entre diversos FIC e no caminho que leva do FIC ao [curso] técnico". Ele esclareceu que, embora os itinerários existam na teoria, não são adotados pelas instituições ofertantes na prática, daí a prioridade da Setec em mudar o quadro. Contudo, o MEC vai deixar a cargo dessas instituições a definição de qual itinerário estão dispostas a oferecer, em quais cursos.

Novamente questionado sobre os FIC, desta vez sobre se os princípios presentes na criação da Rede Federal - como politecnia, omnilateralidade, emancipação - seriam compatíveis com a ênfase na Formação Inicial e Continuada, Zanchet afirmou que é preciso "ter noção da realidade do país" e comparou com a Alemanha, onde morou: "Lá os cursos técnicos duram de dois a três anos, mas o país se estruturou para isso".