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Epidemia além do SUS

Para combater o coronavírus e minimizar seus efeitos sobre a população de rua, moradores de favela, idosos em situação de asilo e outros segmentos vulneráveis, especialistas e militantes destacam a importância de políticas integradas de proteção social
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 13/05/2020 09h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Artur Luiz/Midia Ninja

De que adianta proteger a própria saúde se o preço disso é não conseguir colocar comida na mesa? Com versões variadas, frases como essa têm permeado o discurso de empresários, gestores e entidades que reivindicam o fim do isolamento social como estratégia de controle do coronavírus no Brasil. O dilema parece real. A saída é que merece ser discutida: afinal, há quem garanta que, mais do que evitar a oposição entre saúde e economia, como tem sido defendido, o caminho é recuperar a articulação originária da saúde com outras políticas sociais. Desempregados, trabalhadores informais, população de favela, moradores de rua, idosos em abrigos: é grande e variada a parcela da população brasileira que vive numa situação de vulnerabilidade que a epidemia agravou – e escancarou. “Essas pessoas agora são chamadas de invisíveis, mas a gente encontra com elas na rua todos os dias”, diz Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz e coordenadora da plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Quando definiu a saúde como parte da Seguridade Social – que inclui também a previdência e a assistência social –, a Constituição brasileira já reconhecia que, sozinho, mesmo um sistema público e universal como o SUS não daria conta de garantir as condições necessárias a uma vida realmente saudável. E isso independentemente de qualquer contexto de pandemia. Ivanete Boschetti, assistente social e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que isso remete à importância de um sistema de proteção social, composto por um conjunto de políticas que tem a seguridade como seu “núcleo duro”, mas que precisa ir além. “Estamos falando da necessidade de um Estado Social que intervenha, que tenha uma ação ativa na regulação das ações econômicas e sociais, de modo a proteger a sociedade, mas sobretudo a classe trabalhadora, dos efeitos da desigualdade”.

Salta aos olhos a carência de várias outras políticas de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras

Por isso, ela destaca que uma das medidas mais importantes desse sistema de proteção social que hoje faz tanta falta no Brasil é exatamente a garantia de trabalho e emprego com direitos – o oposto do cenário que a epidemia encontrou por aqui. Batendo recordes históricos, na virada do ano, o país já somava 12 milhões de desempregados e 38 milhões de trabalhadores informais. “Não adianta criar um recurso emergencial de R$ 600 durante três meses se essas pessoas continuarão nesta condição quando a epidemia acabar”, alerta Ivanete. Em seguida, ela cita a importância das políticas de educação formal e não formal, destacando como a desinformação neste momento pode prejudicar a adesão às formas de prevenção da doença, o que se torna um obstáculo a mais, além das dificuldades concretas que essa parcela da população já enfrenta para cumprir o isolamento.

E é aqui que salta aos olhos a carência de várias outras políticas que a professora caracteriza como de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras. “Definir como principal medida o isolamento social sabendo que 40% a 50% da população brasileira não tem condição para isso é viver no mundo da fantasia”, resume Sonia Fleury. E a crítica não é voltada ao isolamento, mas à falta de uma ação coordenada pelo Estado e articulada com a sociedade civil. “Nenhuma prefeitura, que eu saiba, fez um plano de contingência específico para quem não pode se isolar, para quem não tem água [para lavar as mãos] nem dinheiro para comprar álcool gel”, diz, referindo-se às três medidas mais promovidas no controle da contaminação. E completa: “A pessoa não pode trabalhar, não pode sair, não tem dinheiro porque é [trabalhador] informal. Não pensaram em uma internet livre, por exemplo, para que as pessoas pudessem ficar melhor em casa. Não pensaram em dar comida, não pensaram em fazer chegar o auxilio emergencial às pessoas sem que elas precisassem ir para a fila. Não pensaram na realidade dos pobres do Brasil”.

A carência nas ruas

Jorge Marazzo/Mídia NinjaFoi pela redução das ações solidárias, e não por qualquer iniciativa dos governos, que parte desses “pobres do Brasil”, a população em situação de rua, descobriu que havia uma pandemia por aqui. Quem conta é Vania Rosa, ex-moradora de rua que hoje promove um projeto chamado Juca, Juntando os Cacos pela Arte, e integra o Fórum Permanente Sobre População Adulta em Situação de Rua do Rio de Janeiro. Ela conta que, já no início de março, a população de rua do município começou a perceber que Organizações Não-Governamentais (ONGs), projetos sociais e voluntários em geral que, cotidianamente, distribuem comida e promovem outras ações semelhantes, começaram a desaparecer. Num esforço de se antecipar à tragédia, ainda no dia 17, o Fórum, junto com outras entidades, emitiu uma nota em que lista dez propostas que buscam minimizar os efeitos da epidemia sobre essa população. “A principal medida para se combater o coronavírus é o isolamento social. Contudo, só na capital, quase 20 mil pessoas não têm casa para morar”, explica o texto – embora, de acordo com Vania, ao longo desses quase dois meses de epidemia esse número tenha aumentado, com a migração de moradores de rua de outras cidades para o centro.

“Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa"
Vania Rosa

Entre as medidas sugeridas, há mudanças mais estruturais – como a suspensão da Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos para o governo federal, e a interrupção dos obstáculos ao recebimento do Bolsa Família e do BPC, Benefício de Prestação Continuada, voltado para idosos e deficientes de baixa renda. Mas a maior parte das ações propostas eram de efeito imediato e de responsabilidade do governo local. Disponibilizar pias e banheiros químicos para facilitar a higiene, ofertar pequenos abrigos – com prioridade para o acolhimento de idosos, que são grupo de risco da Covid-19 –, distribuir tickets para almoço nos restaurantes populares e contratar novas equipes dos Consultórios de Rua são algumas das propostas que, de acordo com Vania, não se tornaram realidade.

Segundo ela, a única medida concreta anunciada foi a construção de um abrigo no sambódromo do Rio. Com a denúncia de entidades e movimentos sociais – inclusive o próprio Fórum – de que as 460 vagas inicialmente prometidas não caberiam no espaço com as devidas condições de proteção, elas foram reduzidas para 180, sem que novas alternativas fossem providenciadas. “Nossa proposta era utilizar estádios, escolas que estavam fechadas e outros prédios públicos como abrigo, em vez de construir”, diz Vania. Ivanete completa: “A assistência poderia organizar espaços de acolhimento, abrigos abertos para essas pessoas dormirem, tomarem banho, se alimentarem, mesmo que durante o dia elas trabalhem na rua. Muitos trabalham como catadores, por exemplo, mas não têm como voltar para casa, porque é muito longe ou porque não têm família”.

Especificamente no caso do Rio de Janeiro, no dia 8 de maio, uma ação da Defensoria Pública junto com o Ministério Público Estadual resultou na determinação de que o estado e o município, além da empresa responsável pelo abastecimento na região, a Cedae, devem garantir acesso à água e condições de higiene durante a pandemia à população de favelas e moradores de rua. Neste último caso, a decisão orienta a “instalação de pontos de água ou pias e torneiras comunitárias em praças e logradouros públicos”.

Promovendo ações cotidianas para a população em situação de rua durante todo esse tempo, no momento em que esta reportagem era finalizada, Vania comemorava que ainda não tinha se deparado diretamente com nenhuma morte por coronavírus nas ruas do Rio. “Mas eu estou vendo um povo assustado”, diz. Além disso, ela não tem dúvida de que as condições já precárias em que eles viviam se agravaram com a epidemia, com a redução ainda maior dos Consultórios de Rua e das ações solidárias que passam ao largo do poder público. “O que tinha antes se tornou dez vezes pior”, lamenta.

Como se não bastasse, essa população tem muita dificuldade de acessar a principal medida concreta de assistência social que foi implementada em função da epidemia, o auxílio emergencial de R$ 600. “Eles não têm celular, muito menos computador”, exemplifica, ressaltando ainda que existem outras barreiras, já que “muitos não têm documentos” e o cadastro requer que se informe o CPF. “Como garantir o auxílio emergencial das pessoas em situação de rua se você não tem, por exemplo, equipamentos de proteção individual e coletivos para chegar até elas?”, reforça Ivanete. Segundo Vania, a Defensoria Pública do Rio tem buscado formas de reduzir esses obstáculos e iniciativas voluntárias da sociedade civil organizada têm tentado ajudar parte dessa população a se cadastrar e receber o recurso, mas isso se dá de forma pulverizada, sem qualquer centralização ou coordenação do poder público. “Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa”, resume.

Assistência social em crise

Um dos espaços mais procurados por essa e outras populações vulneráveis são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), mas aqui novamente se esbarra num conjunto de deficiências que vêm de muito antes da epidemia. Para se ter uma ideia, descontando-se o Bolsa Família e o BPC, que são as duas principais ações estruturantes e nacionais empreendidas pela área, o orçamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) previsto para 2020 foi quase metade do de 2012, oito anos antes. E, de acordo com Ivanete, excetuandose o auxílio emergencial, que é considerado uma ação da assistência, nacionalmente não foi divulgado qualquer recurso extra para as políticas sociais de combate aos efeitos da epidemia. No desenho orçamentário da assistência, a maior parte dos recursos – que vêm escasseando – são transferidos pelo governo federal.

Thiago Leon de Oliveira Quiroz/Mídia Ninja

Espera-se o investimento próprio dos municípios e estados mas, diferente da área da saúde, não existe aplicação mínima para cada ente federado prevista em lei. “Não tem como manter as condições que o serviço social exige nessa pandemia, não há recursos para garantir esses serviços socioassistenciais que são muito mais demandados agora. Então a gente está vendo situações terríveis: as pessoas buscam os CRAS e eles estão fechados ou tem uma pessoa lá atrás do vidro para dizer que não estão atendendo”, alerta Ivanete.

Nessa combinação de uma carência que vem de longe com os agravos da epidemia, são vários os problemas sociais que acabam sendo invisibilizados. Ivanete lembra que uma ação “muito concreta” dos CRAS é  voltada para crianças e famílias vítimas de violência doméstica ou sexual. “Nessa pandemia, os trabalhadores não têm nem condições de fazer esse trabalho”, denuncia. E completa: “A gente não sabe o que está acontecendo com essas pessoas durante o isolamento social. Está-se falando do aumento da violência contra a mulher, mas e quanto à criança e o adolescente? [A preocupação é] tanto a violência física e simbólica quanto a própria exploração sexual, que muitas vezes acontece dentro de casa, na família”.

Graziela Kohl/Mídia NinjaTambém não se tem informações precisas, embora já apareçam notícias nos principais meios de comunicação, sobre casos, mortes e mesmo surtos de Covid-19 em asilos para idosos em diversas cidades. No final de abril, a maior parte dos casos que tinham vindo a público referiam-se a instituições privadas. Mas isso não reduz a preocupação com os asilos públicos, que, segundo Ivanete Boschetti, acumulam um histórico de desfinanciamento. De acordo com a professora, a carência chega ao ponto de ter lugares que pedem contribuição aos idosos para a sua manutenção, o que, além de flexibilizar o caráter público desse serviço, ainda cria barreiras de entrada, porque acaba-se priorizando, por exemplo, usuários que recebem o BPC e portanto têm alguma renda para colaborar. “Se você não tem condições adequadas neste momento, isso vai impactar diretamente no aumento das pessoas contaminadas, seja as que estão nos abrigos de assistência, seja aquelas que estão em casa, mas em moradias com pequenos cômodos e alta concentração de moradores”, diz a professora. E, sem ações concretas para esses espaços, o discurso da prevenção acaba se descolando da realidade. “Como é que você vai falar para uma pessoa se isolar num quarto da Rocinha onde não tem nem janela?”, questiona Sonia Fleury, referindo-se à maior favela do país, localizada no Rio de Janeiro.

Nas casas e ruelas da favela

Esse é o caso de 13,6 milhões de pessoas que vivem em favelas no Brasil, segundo dados de uma recente pesquisa desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva. No último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, esse número era de 11,4 milhões. Já segundo Geovana Borges, presidente da Central Única de Favelas (Cufa) de São Paulo, essa população hoje beira os 16 milhões. “O que o IBGE chama de aglomerados subnormais nós chamamos de favela”, explica.

De acordo com Geovana, é preciso levar em conta que a realidade da favela é completamente diferente da do asfalto. “É um território aonde nada chega”, diz. E exemplifica: toda a população está tendo que mudar – e intensificar – hábitos de higiene, mas como fazer isso num espaço que não tem saneamento básico? O distanciamento físico é outro desafio, num território em que, segundo ela, vivem de seis a nove pessoas por metro quadrado. Exatamente pelas condições de moradia, em vários pontos do Brasil, as favelas se destacam, inclusive, na quantidade de casos de tuberculose, uma importante comorbidade da Covid-19. Isso sem contar o papel dos moradores dessas comunidades na economia e na prestação de serviços em geral das cidades brasileiras. “Para que o asfalto faça quarentena, a favela tem que trabalhar”, lamenta.

"Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres"
Sonia Fleury

É por isso que, entre tantas coisas de que esses territórios precisam neste momento, na avaliação de Geovana a mais urgente é renda. “As mães das favelas são as mais prejudicadas. Muitas tiveram que deixar seus empregos para ficar com os filhos”, conta, alertando que, seja por falta de informação ou de acesso à tecnologia, entre outras razões, nem o auxílio emergencial criado durante a epidemia tem conseguido chegar devidamente a essas comunidades. “Tem gente que não tem internet, que não tem conta bancária... E falta informação. Esse processo não tem sido didático na favela. O resultado são aglomerações nas portas da Caixa Econômica. Tem gente que nem se cadastrou e está na fila achando que vai resolver”, explica. Em compensação, por meio de doações de empresas e pessoas físicas, a própria Cufa conseguiu fazer o pagamento de 50 mil mães de favelas distribuídas pelo Brasil. A estratégia foi dupla: um sistema online para quem tinha internet e, para quem não tinha, a entrega de tickets pessoalmente, a cada mulher, com a ajuda de lideranças locais. “Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, voltado para as pessoas e não para os burocratas, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres, a maneira que eles vivem, o que eles precisam”, diz Sonia Fleury.

Fotojornalismo ESPM/Mídia Ninja

Logo que a epidemia chegou por aqui, a Cufa produziu um documento com 14 recomendações ao poder público para reduzir o impacto do coronavírus nas favelas. Algumas delas acabaram se concretizando com foco na população em geral. É o caso da demanda pela criação de uma renda mínima e do apoio para que empresas de água, luz e gás suspendessem o pagamento das contas por até 60 dias – o que aconteceu só parcialmente e mesmo assim foi objeto de batalha jurídica. Exemplos de outras propostas, que não foram implementadas, são a ampliação das equipes de Saúde da Família nas favelas, o aluguel de pousadas e hotéis para idosos e grupos vulneráveis e “apoio específico” para famílias cujas crianças não estavam podendo frequentar a creche e com pessoas portadoras de deficiência. 

Os ‘sem-tecnologia’

Nessa mesma lista produzida pela Cufa, duas recomendações se referiam ao acesso à informação. Uma sugeria o “financiamento para as redes de comunicação próprias de cada favela”, como jornais, sites e rádios comunitárias. Outra defendia a liberação de pontos de internet “para garantir acesso universal à rede”. E essa é outra bandeira que vem sendo empenhada por entidades e movimentos tanto do campo da democratização da comunicação quanto da área de educação. Isso porque a solução encontrada principalmente pelas secretarias estaduais de educação para superar o fechamento das escolas durante o isolamento social tem sido a oferta de ensino remoto, o que esbarra na dificuldade de acesso que parte da população mais pobre tem à internet, entre outros problemas (sobre isso, leia mais aqui e aqui). “As pessoas não têm internet livre e não vão gastar o pouco de dinheiro que têm comprando planos de dados maiores”, alerta Sonia Fleury, ressaltando que esse acesso é importante também para facilitar o isolamento. “Os jovens não aguentam ficar trancados sem internet”, diz.

Por tudo isso, ainda em março o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social protocolou um requerimento para que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) emitisse uma “liminar proibindo a suspensão de serviços de conexão à Internet móvel ou fixa por 90 dias, incluindo o bloqueio da navegação em caso de atingido o limite da franquia”. A iniciativa teve apoio de parlamentares e várias entidades científicas e sindicais. “Neste cenário, a garantia de acesso à conexão é fundamental para garantir que os cidadãos possam ficar em casa e seguir, na medida do possível, com suas atividades, especialmente as produtivas”, diz o site do Intervozes. Na mesma direção, a Coalizão Direitos na Rede, composta por 38 organizações da sociedade civil e pesquisadores, enviou ao Congresso Nacional um ofício em que pede, “como medida emergencial”, a aprovação de um projeto que garanta o “acesso da população aos serviços de telecomunicações e, em especial, à conexão à Internet fixa e móvel, mesmo em caso de atraso de pagamento, eventual inadimplência ou atingido o limite da franquia, sendo alternativa adequada a redução da velocidade, até o final efetivo da crise”.

4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária

E os números apresentados no documento não deixam dúvidas sobre a necessidade. Citando dados da pesquisa TIC Domicílios, de 2018, o ofício mostra que 33% das residências brasileiras não têm conexão com a internet, número que sobe para 59% nas classes D e E. Mesmo entre os “domicílios conectados”, 27% do geral e 47% das classes D e E só acessam a internet pelo celular. Por fim, de acordo com a Anatel,
55% dessas conexões móveis se dão na modalidade pré-paga, com baixos limites de tráfego de dados, o que se repete nos chamados clientes “controle” que têm planos pós-pagos.

Dados preliminares da pesquisa TIC Kids Online 2019, divulgados agora no dia 12 de maio atualizam esse cenário. De acordo com o estudo, 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária. Ela é maior também nas regiões Norte e Nordeste (21%) e entre as classes D e E, em que chega a 20%. Além disso, a pesquisa mostra que 11% dessas crianças e jovens não tinham acessado a internet nem em casa nem em qualquer outro espaço nos três meses anteriores à entrevista, o que as classifica como uma parcela da população não usuária da rede. “Em tempos de coronavírus e isolamento social, a rede se torna ainda mais importante para garantir a continuidade da aprendizagem, manter contato com amigos e cuidar da saúde mental, se proteger contra a violência e ter acesso a informações confiáveis”, afirma o texto da Unicef Brasil, propondo que o governo federal e as empresas de telefonia “invistam para prover o acesso livre à internet para todas as famílias vulneráveis”. A entidade propõe, concretamente, que todas as famílias beneficiárias do auxílio emergencial ou que tenham renda percapita mensal menor que R$ 178 tenham garantido acesso gratuito à internet.

Tudo junto e misturado

Tudo isso ajuda a compor o retrato de um país cuja desigualdade social já era alarmante muito antes de a pandemia chegar por aqui. Dados do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, divulgados em agosto do ano passado mostravam que, nos últimos cinco anos, a renda per capita do 1% mais rico da população cresceu 10,1% acima da inflação enquanto a dos 50% mais pobres caiu mais de 17%. “Nunca tivemos um sistema de proteção social amplo, universal, que tivesse de fato um comprometimento responsável, permanente e regular com a redução das desigualdades sociais”, lamenta Ivanete, ressaltando que nenhuma iniciativa nesse sentido se sustenta “só com saúde, previdência e assistência”. Ainda mais quando essas políticas sofrem um longo processo de subfinanciamento.

“O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo"
Ivanete Boschetti

A chegada da Covid-19 tem todos os elementos para agravar ainda mais esse cenário. Primeiro na expressão da própria doença e da sua letalidade – já que nas aglomerações das favelas, dos asilos, dos ônibus lotados e outros espaços semelhantes, o vírus encontra condições mais favoráveis de transmissão. Segundo, pelo agravamento de uma crise econômica que é anterior à epidemia e já castigava os mais pobres. Ivanete resume: “O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo”.