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Coronavírus e os desafios das redes estaduais de educação

Governos estaduais querem adiamento do Enem e cobram mais participação do MEC na reorganização do calendário escolar devido à pandemia de coronavírus. Educadores e professores expressam preocupação com a implementação, pelos estados, de atividades a distância como parte da carga horária do ano letivo
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 22/04/2020 12h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Entre incertezas e alguns questionamentos, governos estaduais de todo o país vêm implementando estratégias para seguir com o ano letivo de 2020 em meio ao fechamento das escolas por conta das medidas de isolamento social tomadas em decorrência da pandemia de coronavírus. Medidas que inclusive contribuíram para ampliar uma crise nas relações entre o governo federal e alguns chefes dos executivos estaduais, que já vinha se desenrolando pelo menos desde o ano passado. 

O último capítulo desse imbróglio se deu na segunda-feira (20/04), quando o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed) emitiu um comunicado em resposta a uma postagem feita na véspera pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, no Twitter. Usando a hashtag ‘#VaiTerEnem’, Weintraub acusou os governadores de fazerem uma “quarentena generalizada e precipitada”. “Alunos sem aula ficam preocupados com o Enem”, alertou o ministro da Educação, que afirmou ainda que os governadores agora terão que “rebolar atrás do prejuízo”. A postagem ocorreu dois dias depois de uma decisão judicial da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo determinar ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) o adiamento do Enem em função dos impactos da covid-19 na educação, decisão da qual o ministro, também via Twitter, já anunciou que irá recorrer.
Em resposta, o Consed reiterou que defende as ações de isolamento social e cobrou do MEC apoio aos estados para “encontrar soluções que permitam a aprendizagem dos alunos” no contexto do fechamento das escolas. A entidade defendeu ainda o adiamento das datas das provas do Enem para que não haja prejuízo aos estudantes, principalmente os mais pobres.

O adiamento vem sendo uma das principais reivindicações dos secretários estaduais em meio às medidas de controle da pandemia no país, desde que o Inep anunciou no final de março que as provas do Enem seriam realizadas nas datas originalmente previstas, nos dias 1º e 8 de novembro. Em nota publicada no dia 1º de abril, o Consed alertou que a manutenção das datas de realização das provas “deverá ampliar as desigualdades entre os estudantes do Ensino Médio em todo o país no acesso às instituições de Ensino Superior”. Posição similar foi defendida em nota conjunta assinada pelas entidades representativas dos alunos, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), que lançaram ainda uma campanha no Twitter sob a hashtag “adiaEnem”, que chegou a figurar entre os tópicos que mais circularam pela rede social no início de abril.

O adiamento do calendário de realização do Enem foi defendido também diretamente por instituições de ensino, como a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que no dia 17 de abril divulgou uma nota defendendo que essa era a “decisão mais legítima e democrática” diante da suspensão das aulas presenciais em razão do coronavírus. “Em um país com tamanhas desigualdades sociais, nenhum estudante concluinte do ensino médio deve ser penalizado e ter ameaçado o seu direito de concorrer a uma vaga na universidade”, afirmou a instituição na nota.


Ensino à distância sob suspeita?

A manutenção das datas do Enem vem sendo usada pelos governos estaduais como uma justificativa para a adoção de medidas para cumprimento do calendário escolar no contexto da pandemia, o que também vem sendo foco de controvérsia. Particularmente a transferência de atividades pedagógicas que antes eram ministradas presencialmente para formatos à distância. Segundo levantamento feito pelo Consed, pelo menos 14 estados aprovaram, por meio de seus conselhos estaduais de educação, resoluções sobre os regimes especiais de aulas não presenciais a serem adotadas pelas instituições enquanto vigorar  o isolamento social. Isso vem se dando principalmente através da disponibilização de plataformas online, aulas ao vivo em redes sociais e envio de materiais digitais aos alunos. E as atividades remotas vêm sendo computadas como parte da carga horária letiva mínima de 800 horas estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Uma Medida Provisória apresentada pelo governo federal no dia 1º de abril isentou as redes da obrigatoriedade de cumprirem os 200 dias letivos previstos pela LDB, desde que mantenham as 800 horas. Para analistas ouvidos pela reportagem, contudo, computar as aulas à distância como parte da carga horária é um problema, já que tende a ampliar desigualdades educacionais no país.

Esse foi um dos argumentos utilizados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) em uma ação civil pública ajuizada no dia 20 de abril que pede que as aulas oferecidas à distância pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro não sejam computadas como carga horária, mas apenas como atividades complementares e de “estímulo intelectual”, “sem prejuízo da retomada das aulas presenciais”. Ainda em março, a Secretaria Estadual de Educação do Rio anunciou que disponibilizaria a partir do dia 13 de abril aulas no formato online na plataforma Google Classroom, através de um convênio firmado com a multinacional de tecnologia. Segundo a secretaria, os alunos que não tivessem acesso à internet receberiam o material impresso em suas casas, e caso tivessem necessidade, teriam aulas de reforço após o retorno das aulas presenciais.

Na ação, no entanto, o Ministério Público citou a falta de acesso à internet por muitos alunos, bem como as altas taxas de evasão no ensino médio, como justificativa para determinar que o estado se abstenha de reprovar qualquer aluno da rede, tenha ou não utilizado a plataforma Google Classroom, e que garanta o cumprimento integral do calendário letivo dos alunos que não cumprirem com os requisitos de frequência e aproveitamento por conta de dificuldades de acesso ou utilização da plataforma.

Gustavo Miranda, coordenador do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ), defende postura similar. “A nossa posição é que não haja equivalência entre a aula presencial e esses conteúdos que são passados online”, defende. E completa: “A utilização da plataforma para contagem de dia letivo deveria seguir uma série de critérios que o governo não está cumprindo, que estão na deliberação do Conselho Estadual de Educação. Um deles é o critério de você ter um planejamento específico para aulas online, que não foi realizado, bem como a garantia de que todos os estudantes tenham acesso de maneira igual aos conteúdos, o que não é possível na medida em que nem todo mundo tem acesso à internet”. E isso inclui muitos professores da rede estadual, segundo Miranda. “Os profissionais moram às vezes em locais que não têm acesso regular a banda larga, ou não têm computador em casa. E a saída do secretário foi disponibilizar a escola para receber profissionais que não conseguem gravar as aulas ou passar os conteúdos. O que quebra o isolamento social, sobretudo porque muitos professores não moram nos municípios em que trabalham. Então é uma situação complicada”, afirma o coordenador do Sepe-RJ.

A utilização da plataforma Google Classroom para oferecimento dos conteúdos online também gerou questionamentos. No dia 3 de abril, o MP-RJ havia recomendado a suspensão das aulas virtuais através da plataforma no estado, orientação que não foi seguida pela Seeduc-RJ. Na recomendação, o Ministério Público do Rio argumentou que as atividades não presenciais através da plataforma tiveram início antes que fosse assinado um convênio com a Google e antes que fosse garantido o “pleno acesso de seus professores e alunos aos meios tecnológicos necessários à garantia de universalidade, equidade e qualidade das atividades educacionais virtuais, em afronta ao texto Constitucional e à legislação educacional”.

A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro não havia respondido à solicitação de entrevista enviada pela reportagem do Portal EPSJV até o fechamento desta matéria.

No estado que concentra a maior parte dos casos de covid-19 no país, as propostas para lidar com a suspensão das aulas presenciais são similares, e as críticas também. A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) anunciou no início de abril que a partir do dia 22, quando termina o período de recesso escolar e de férias dos professores – antecipados por conta da pandemia -, o processo educativo no estado passaria a ser realizado a distância, também contando como carga horária efetiva. No mesmo dia foi anunciado o lançamento do aplicativo “Centro de Mídias SP”, plataforma por meio da qual serão disponibilizadas aulas na forma de vídeos e outros conteúdos, bem como o contrato do governo paulista com operadoras de telefonia celular para que os estudantes pudessem acessar a internet, restrita ao uso do aplicativo. Além disso, o governo estadual, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, instituiu o Programa Aprender em Casa, que prevê a distribuição de apostilas aos estudantes das redes estadual e municipal.

Em nota assinada pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e pelo Grupo Escola Pública e Democrática (Gepud), que reúnem professores e pesquisadores das instituições de ensino superior e também da educação básica do estado de São Paulo, as entidades defendem que a disponibilização de conteúdos e atividades escolares aos estudantes não pode substituir “de forma improvisada e pouco planejada” as aulas presenciais. “Somos contrários à continuidade do calendário escolar oficial nessas condições adversas, inseguras e precárias. A nova ‘oferta’ educacional à distância, que se dá em caráter estritamente emergencial, não tem equivalência com os processos educativos presenciais regulares que deveriam ocorrer no primeiro semestre de 2020 nas escolas estaduais de São Paulo, inclusive para efeitos de avaliação, promoção e reprovação dos estudantes”, afirma a nota.

Integrante da Repu e também da Campanha Nacional pelo Direito à Educação , o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Fernando Cássio reforça que a tendência é que as condições de trabalho e de aprendizagem na rede estadual, segundo ele já precárias, se tornem ainda piores com o ensino à distância. “A prioridade está sendo preservar financeiramente os orçamentos diminuindo a demanda por reposição presencial depois, fazendo o que for possível para mitigar algumas perdas dos alunos, mas nenhum estado, pelo menos até o momento, está adotando políticas radicais de inclusão digital. Há em geral um improviso que está basicamente só mudando a forma de gerar desigualdades educacionais”, avalia Cássio.

A Seduc-SP também não respondeu à solicitação de entrevista feita pela reportagem.


Estados aguardam resolução do CNE

“Cada estado está se virando como pode”, destaca a presidente do Consed, Cecília Motta. E completa: “Cada conselho estadual está normatizando como acha melhor nesse contexto, o que o Consed faz é orientar, debater experiências. Os estados estão se reinventando, essa é a palavra. Os professores e secretários estão tendo que se reinventar para que o aluno não fique em casa sem atividade nenhuma nesse período. Ninguém tem uma receita de como fazer”, afirma. Uma das apostas da presidente do Consed para dar “segurança jurídica” aos estados na oferta de atividades não presenciais aos alunos das redes estaduais durante o período de fechamento das escolas está na publicação de uma resolução normativa pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) com parâmetros para validar as horas letivas ministradas à distância após o retorno das aulas presenciais, bem como para as avaliações que as redes estaduais e municipais deverão realizar após o fim da crise sanitária, que segundo o conselho deve ser divulgada nas próximas semanas. No dia 17/04, o CNE divulgou um edital abrindo uma consulta pública para recebimento de propostas para serem debatidas pelos conselheiros, que fica aberta até o dia 23/04. A expectativa é que a resolução defina o conceito de ensino remoto, explicitando as atividades às quais as redes estaduais poderão recorrer neste período tendo em vista as diversidades socioeconômicas e de acesso à internet entre os estudantes. “Acho que há uma confusão de conceitos, entre EaD [Educação à Distância] e ensino remoto. O que os estados estão implementando é ensino remoto, e não EaD. Em uma aula remota eu posso usar o celular, eu posso usar até atividade em papel para crianças, eu posso usar televisão, eu posso usar várias ferramentas que não são a EaD. Então a gente tem que ter esses conceitos bem claros”, defende Cecília Motta.

O professor da UFABC Fernando Cássio, contudo, não tem grandes expectativas de que uma resolução normativa do CNE nesse momento daria conta dos problemas que ele identifica no processo de implementação de atividades educacionais não presenciais pelos estados. “O CNE até pode desejar capitanear um processo de âmbito nacional, mas ele chegou atrasado nesse processo. Porque a demanda já está lá na escola batendo na porta da secretaria da educação e o que os secretários da educação fizeram foi agir, em geral, da pior forma possível, excluindo as escolas e as comunidades escolares do processo decisório”, critica. E complementa, citando o exemplo de São Paulo: “Os planejamentos das escolas foram totalmente atropelados por um planejamento centralizado, unilateral, feito pela secretaria. A tendência, baseado na nossa cultura centralizada e pouco democrática na educação, é que este tipo de solução unilateral, centralizada e alheia aos planejamentos das escolas se generalize”, critica o pesquisador, ressaltando que o país vive hoje um conflito federativo. “As secretarias não vão voltar atrás porque o CNE recomendou alguma coisa diferente. A gente está em um momento de extrema fragmentação. Eu acho que dificilmente o CNE vai conseguir protagonizar uma coordenação nacional desse processo”, avalia.

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