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Escolas estaduais na berlinda

Governos de São Paulo, Paraná e Goiás promovem reestruturações nas redes estaduais de educação que incluem fechamento de unidades e transferência da gestão para organizações sociais. Só em SP, mais de 300 mil alunos vão ter que mudar de escola.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 06/11/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Jesus Carlos

O termo usado pelo governo do estado de São Paulo para mexer com a vida de mais de 311 mil alunos é ‘reorganização escolar’. A mudança inclui a extinção de 94 escolas a partir do ano que vem e a transformação de 754 unidades que vão passar a receber alunos de uma mesma faixa etária. As modificações desencadearam reações de estudantes, professores e pais, que, desde o anúncio das medidas, realizaram vários protestos na capital e no interior do estado. No Paraná, a intenção era a mesma: fechar 40 escolas e promover uma reestruturação. Mas ao contrário de São Paulo, a mobilização já produziu resultados e o governo recuou da proposta, embora o Sindicato dos Professores tenha receio de que a qualquer momento possa ser ressuscitada e unidades continuem a ser fechadas, como já vêm acontecendo com as escolas do campo. Em Goiás, além de escolas já estarem sendo desativadas paulatinamente há alguns anos, outro fantasma preocupa os professores: a transferência da gestão das unidades para Organizações Sociais (OSs).

Na chamada reorganização promovida na rede estadual de ensino de São Paulo, a justificativa principal é a melhoria da qualidade da educação fazendo com que as escolas funcionem atendendo apenas a uma faixa etária. A Secretaria de Educação chama o modelo que será implementado de “escolas de ciclo único”, que passarão a representar 43% de toda a rede. Isso significa que haverá unidades específicas para estudantes dos seis aos dez anos, outras para os jovens de 11 a 14 anos e outras ainda para aqueles com idade entre 15 e 17 anos.

Crítico à reestruturação que está sendo promovida, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) contesta este conceito de ciclo. “Eles inventaram outro conceito? Porque o que nós entendemos como ciclo não é isso. Ciclo é a capacidade de agrupar os alunos de acordo com a aprendizagem, vai além de séries e faixas etárias, leva em consideração as etapas de aprendizagem. Não tem nada a ver com essa temporalidade. É outra visão de currículo. Se nós não entendermos que a educação básica é o conjunto das etapas, vamos continuar fragmentando a educação e não vamos avançar na qualidade do ensino”, questiona a presidente da Apeoesp, Maria Izabel Azevedo Noronha.

O dirigente de ensino da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, Sandoval Cavalcanti, defende a concepção, dizendo que o governo leva em conta outros fatores ao fazer a separação por faixas etárias. “O que o governo quer fazer é melhorar a aprendizagem dos alunos. Estamos levando todos os elementos em consideração. Inclusive o elemento de que uma escola melhor adaptada às condições de série e ano do aluno é muito mais atrativa do que uma escola que funcione com alunos de sete anos de idade, de 14 e de 17. O que nós queremos é que os ambientes escolares também estejam adaptados à realidade dos alunos, respeitando obviamente as suas condições de aprendizagem e a cultura escolar e de conhecimento que ele traz de fora da escola”, defende. Sandoval complementa reconhecendo que atualmente há escolas que não estão com estrutura adequada. “Imagina que nós tenhamos hoje uma escola com alunos de seis anos de idade e a carteira usada por ele é a mesma usada por um de 17. Quando você tem escolas com vários segmentos isso acontece.”

Mas para a ex-diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em educação básica, Lisete Arelaro, o argumento que vincula qualidade à segmentação não tem fundamento. “Este argumento não se sustenta pedagogicamente e nem cientificamente. As melhores escolas do Brasil, de ponta a ponta, ou até do mundo, não funcionam nessa lógica. O que vai garantir qualidade são condições de trabalho, boa formação dos professores, um projeto pedagógico que seja consistente, um trabalho em equipe que possa efetivamente ser realizado e não uma bobagem dessas. As famílias estão revoltadas. O que estão fazendo na verdade é uma desorganização do ensino, movimentando professores, alunos e pais sem nenhuma discussão. É uma decisão de um autoritarismo surpreendente”, critica.

Lisete lembra que não é a primeira vez que essa mudança ocorre em São Paulo. Em 1995, o então governador Mario Covas, também do PSDB, promoveu uma reestruturação nos mesmos moldes. Na época, foram fechadas 140 escolas e 11 mil turmas. Segundo ela, a mudança não trouxe nenhum ganho de qualidade. A professora sustenta que o objetivo, agora travestido de melhora da qualidade, parece o mesmo: municipalizar o ensino fundamental especialmente nas séries iniciais, o que reduziria consideravelmente o custo da educação para o governo do estado. Lisete cita uma meta incluída pelo governo de São Paulo no projeto de lei que cria o Plano Estadual de Educação (PL 1083/2015). “O próprio secretário disse na Assembleia Legislativa que ele introduziu aqui em São Paulo três metas. A primeira é a meta 21 que diz exatamente que o ciclo inicial, da 1ª à 5ª série, deverá ser gradativamente municipalizado no estado. Então, essa é a verdade na chamada reorganização. Não é qualquer coisa relativa à qualidade, a menos que eles [o governo do estado] admitam que os municípios fazem melhor do que eles”, arremata.

Baixa demanda

 

 
Outra justificativa usada em São Paulo para o fechamento das escolas é a demanda menor pelo ensino. “Nos últimos 20 anos, a rede pública do estado diminuiu o número de alunos de seis milhões para aproximadamente quatro milhões. Então, a readequação neste momento foi identificada em função das escolas que mantém proximidade. E a transferência desses alunos está ocorrendo para unidades que não fiquem a mais de 1,5 quilômetro de distância de onde o aluno se encontra hoje”, justifica Sandoval.

No entanto, tanto Lisete Arelaro, quanto a Apeoesp afirmam que o corte feito em 1995 já levava em conta uma diminuição. Lisete acrescenta que só em 2015 houve o fechamento de 300 salas de aula de ensino médio, sob a alegação de que existe um grande índice de evasão de alunos. “A Secretaria colocou 45 alunos nas salas obrigatoriamente, alegando que no segundo semestre as turmas já seriam de 25 porque os alunos já teriam evadido e as turmas já estariam com os números ideais”, relata. “Para nós, fechar escola é um crime e apostar na evasão é pior ainda, é um crime premeditado”, complementa Maria Izabel da Apeoesp.

Para o Sindicato, se a procura pelas escolas diminuiu, esta poderia ser uma oportunidade também de diminuir o número de alunos nas salas de aula e garantir mais qualidade. Segundo a Apeoesp, atualmente, muitos professores já trabalham com salas superlotadas e que não respeitam a própria definição estadual de limitar em 30 o máximo de alunos por turma no ensino fundamental I, 35 no fundamental II e 40 no ensino médio. O ideal, para o Sindicato, seria turmas de 25 alunos para todos os ciclos de ensino.

O governo de São Pauloreconhece que o número de alunos por turma é maior hoje do que o estipulado na regra estadual, e aponta essa adequação como mais uma justificativa para a reorganização. “Nós caminhamos de forma efetiva para a consolidação desses números, a reorganização vem exatamente para que isso aconteça. Se a partir dos últimos 20 anos nós tivemos uma diminuição do número de alunos e, consequentemente, um superávit do número de vagas, vamos conseguir adequar porque a readaquação só está sendo feita onde de fato havia condições para que esse movimento pudesse acontecer. Então os professores podem ficar tranquilos”, responde o porta-voz da Secretaria de Educação.

As preocupações dos professores, no entanto, vão além da superlotação. O temor também é de que os docentes não consigam completar toda a carga horária contratual em uma única escola. Segundo o Sindicato, isso já acontece hoje e o quadro pode piorar, uma vez que muitas escolas não terão mais o ensino fundamental e médio juntos, o que ajuda o professor a completar a carga horária em uma mesma unidade. A Apeoesp teme também que professores fiquem “adidos”, ou seja, “encostados”, já que vai aumentar entre os profissionais a disputa por aulas nas escolas que restarem. Ficando adido, um professor tem o salário drasticamente reduzido porque deixa de receber gratificações. A Secretaria de Educação afirma que o temor é infundado e aponta como solução o fato de os professores das escolas fechadas, assim como os alunos, poderem optar se querem ir para nova escola designada ou outra unidade que atenda mais de um ciclo.

Segundo a Secretaria de Educação, as 94 escolas que vão deixar de funcionar vão manter alguma função educativa, já que em alguns casos serão devolvidas para as prefeituras e podem se tornar creches ou unidades de educação infantil e, em outros, vão ser administradas pelo Centro Paula Souza, uma autarquia do governo de São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, que oferece educação profissional.

O Sindicato planeja para o próximo dia 10, mais uma grande manifestação contra o projeto do governo do estado, que está sendo chamado de “bagunça na educação”. Estudantes e pais também têm participado ativamente dos protestos. Uma pesquisa do Datafolha, divulgada no último dia 5 pelo jornal Folha de S.Paulo, afirma que 59% da população está contra a chamada reorganização e seis em cada dez entrevistados acreditam que as mudanças vão trazer mais prejuízos do que benefícios. Algumas das 94 escolas que serão fechadas são, segundo a Apeosp, unidades que têm atingido resultados muito satisfatórios e a população tem consciência disso. “O mais dolorido é você ver escolas que os pais conferem padrões de qualidade, escolas de bairros mais distantes, escolas que não têm violência, que a comunidade tomou para si e que agora estão sendo fechadas”, lamenta Maria Izabel.

Apesar da reprovação, a Secretaria diz que não está aberta a negociar. “Está mantido o projeto, o que vamos fazer é intensificar junto à comunidade escolar os esclarecimentos do porquê da reorganização. Porque talvez a posição desfavorável seja em função do desconhecimento dos resultados que podem vir dessa reorganização”, conclui Sandoval.

Pressão no Paraná deu certo, por enquanto

No Paraná, a principal justificativa para o fechamento das escolas, de turmas e de turnos era ocupar melhor as salas de aula e economizar, já que algumas unidades funcionam em prédios alugados. No dia 30 de outubro, entretanto, o governador Beto Richa (PSDB) anunciou oficialmente a desistência da proposta. A secretária educacional do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP Sindicato), Walkíria Mazeto, conta que a reorganização não foi discutida nem com a comunidade escolar nem com representantes dos trabalhadores. “A secretaria estava afirmando que era só um estudo, e que as escolas estavam sendo contatadas para avaliar o estudo. Esta era a tese da Secretaria, mas não era isso que ocorria na prática. Aqui em Curitiba, quando os diretores de escolas que chegavam à Regional [da Secretaria de Educação] a ata da reunião já estava pronta. E aí estava dizendo: aqui compareceu no dia tal, a diretora tal, para ser notificada de que a escola que ela dirige fecha as atividades a partir de 2016 e os estudantes desta poderão ir para as escolas tais, tais e tais.”, denuncia.

Segundo Walkíria, a participação da comunidade escolar se deu, de fato, nas manifestações contra o fechamento, o que fez o governo do estado recuar. O sindicato diz, no entanto, que continua atento, já que a Secretaria de Educação afirmou que, apesar da suspensão do fechamento de escolas, a reorganização será pautada nas mesmas regras de 2014. “Isso ainda nos traz alguns problemas. No ano passado, as escolas foram reorganizadas na perspectiva sempre de montar turmas com o número máximo de alunos previsto nas resoluções estaduais. Então, as salas ficaram superlotadas sempre no limite ou um pouco mais”, diz.

Pela resolução estadual do Paraná, as turmas de 6o e 7oanos podem ter no mínimo 25 e no máximo 30 alunos, os 8oe 9o anos no mínimo 30 e no máximo 35, e no ensino médio, 35 e 40 respectivamente. “Mas temos turmas do ensino médio que ultrapassam os 40 alunos em sala. A Secretaria dizia: ‘ah, mas não tem importância, porque pode ser que alguns desistam ao longo do ano’. Ou seja, já trabalham com a perspectiva da evasão e não que a escola precisaria ter algumas vagas para buscar matrículas ao longo ano. Então, é uma lógica diferente da que a gente acredita, que é a da perspectiva da inclusão e da busca de estudantes para a escola”, aponta Walkíria.

A preocupação é grande também, segundo o Sindicato, porque o mesmo governo vêm encerrando turmas a cada ano paulatinamente, além de escolas do campo. Em sete anos, 18 escolas do campo da rede estadual foram fechadas. De acordo com o Sindicato, a Secretaria chegou a anunciar para 2016 o fechamento de outras 31 escolas situadas na zona rural. “O governo já vem há anos fazendo a política de ir fechando uma turma de cada vez, aí, por óbvio, chega um momento em que eu não posso mais matricular para o 6º, nem para o 7º, e aí sobram só as séries finais. Então, essa política levou a cessação de algumas escolas porque vai impedindo as matrículas nas séries iniciais”, detalha Walkíria.

O sindicato pediu à Secretaria de Educação uma reunião para entender o que está suspenso da reorganização e o que será mantido, mas até o fechamento desta reportagem, não houve resposta ao pedido. O órgão também foi procurada pela reportagem para a realização de uma entrevista, mas enviou apenas a seguinte nota: “A Secretaria de Estado da Educação informa que o acompanhamento para reestruturação das escolas da rede estadual de ensino foi suspenso. A medida foi reforçada pelo governador Beto Richa, em reunião com pais e diretores de sete escolas estaduais nessa quarta-feira (4/11), no Palácio Iguaçu, em Curitiba. O objetivo inicial da proposta – reestruturar a distribuição de alunos para melhor ocupar salas de aula. Na ocasião, Richa confirmou que o governo estadual está sempre aberto ao diálogo para debater qualquer projeto. A intenção da Secretaria da Educação era remanejar os alunos para prédios públicos, reduzindo despesas com aluguel – medida já estava sendo estuda desde 2006. Com a determinação do governador, estão cancelados os estudos de reestruturação que incluíam principalmente imóveis alugados. Não haverá o fechamento das escolas e será encontrada uma solução em comum acordo com a comunidade escolar para otimização das salas de aula”.

Em Goiás: pressão das OS’s e militarização

No estado de Goiás, também governado pelo PSDB há 16 anos, os professores estão mobilizados contra a transferência da gestão das escolas para Organizações Sociais. O projeto foi anunciado pela secretária de Educação Raquel Teixeira em um seminário internacional realizado em São Paulo, no mês de setembro. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Goiás (Sintego), que organiza um abaixo-assinado contra a mudança, o governo já está realizando a licitação para escolha das OSsque vão gerir as unidades. A Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás foi procurada para falar sobre o assunto, mas não respondeu ao pedido da reportagem.
Para a presidente do Sintego, Bia de Lima, o quadro que se desenha no estado é assustador para o futuro da educação. “O preço a ser pago com certeza não será barato. Serão inúmeros prejuízos, primeiro de ordem trabalhista, já que os trabalhadores em educação perdem a possibilidade de ter uma carreira, prestar um concurso público. Do ponto de vista do aluno, essa escola vai perder o caráter de pública e será vista como se privada fosse. E aí a qualidade do ensino é a grande questão. Estamos agora, a pedido do MEC [Ministério da Educação], discutindo a Base Curricular Comum. Como é que nós vamos ter em Goiás condições de acompanhar a aplicação desses currículos se cada escola terá um dono? Como vamos ter cuidado com o conhecimento a ser produzido?”, questiona.

A professora denuncia também, que a exemplo de outros estados, vem havendo um sucateamento e esvaziamento de várias escolas. Segundo cálculos do Sindicato, 10% das escolas estaduais foram fechadas ou foram sendo inativadas nos últimos anos sem que o governo do estado informe o que será feito dos prédios. “E a maior parte das escolas, aquelas com piores estruturas, vão ficando sempre a ‘deus dará’, sem investimento, sem estrutura para receber os alunos, sem concurso público, e vamos ficando na penúria. E aí a ideia que se transmite para a sociedade é que o público não é bom e que, por isso, o governo vai passar a gestão das escolas para as Organizações Sociais ou para a Polícia Militar”.

Goiás já tem 26 escolas literalmente administradas pelos policiais militares. “Essas escolas cobram taxas, uniformes, selecionam os alunos e professores. E as regras são as mesmas das instituições militares. Há 20, 30 militares em cada escola e eles cuidam da disciplina”, conta Bia de Lima. A professora detalha que o processo, tão assombroso para o Sindicato como a transferência da gestão para as OSs, vem acontecendo desde 1999. Segundo Bia, as últimas oito escolas foram militarizadas neste ano em retaliação à adesão massiva dos professores destas unidades à greve da categoria realizada no primeiro semestre. “Se você olhar hoje para essas escolas que foram militarizadas lá atrás, a adesão dos professores destas unidades às mobilizações da categoria é muito baixa”, lamenta.
 

Fotos: Manifestações contra o fechamento das escolas em São Paulo. Crédito: Jesus Carlos