Visibilizar e denunciar os problemas trazidos pela privatização, expropriação e contaminação das águas na esteira da expansão das fronteiras de acumulação do capital no Brasil e no mundo, mas também contar as experiências das populações que resistem a esse processo: esse foi o objetivo da atividade promovida pelo Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em parceria com a ONG Fase e diversos outros movimentos, como a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, no dia 18 de março durante o Fórum Alternativo Mundial das Águas (FAMA).
O fórum, que acontece em Brasília do dia 17 ao dia 22 de março, está sendo organizado por movimentos sociais, ONGs, entidades socioambientais e sindicais como contraponto ao debate que deve ser realizado pelo Fórum Mundial da Água (FMA), promovido por grandes corporações, como Coca-Cola e Nestlé, em parceria com os governos de diversos países e que acontece no mesmo período na capital federal (veja cobertura na próxima edição da Revista Poli). Com o lema ‘Água como direito, não como mercadoria’, a ideia do Fórum Alternativo é trazer para o debate as experiências das populações atingidas pelo processo de privatização e mercantilização da água e do saneamento em diversos países e denunciar a aliança que existe hoje entre interesses privados e Estados na promoção desta agenda, que segundo os organizadores do FAMA deve nortear as discussões do Fórum Mundial da Água. A expectativa dos organizadores do FAMA é construir e fortalecer redes de movimentos em nível nacional e internacional para fazer resistência a esse processo.
Raquel Rigotto, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do GT Saúde e Ambiente da Abrasco, destacou o papel da saúde nas lutas de resistência contra a expropriação dos territórios e de seus recursos naturais promovida pelo avanço do capital sobre os territórios. “As grandes corporações caminham para governar cada vez mais o mundo, o que gera cada vez mais conflitos ambientais. E o que nós percebemos na leitura destes conflitos é que a saúde tem representado um potencial muito grande de luta e resistência. O progresso que tem sido foco da narrativa dos grandes empreendimentos do agronegócio, da mineração, o que muitas vezes é assimilado pelas comunidades. Mas na medida em que os impactos vão se afirmando sobre seus corpos, sobre a sua saúde, isso tem sido uma potência de ruptura dessa narrativa oficial de que isso é o desenvolvimento, isso é o futuro desejável”, afirmou Raquel.
Segundo ela, a água é fundamental para a manutenção dos modos de vida e da autonomia de um grande contingente populacional que sofre mais diretamente com a devastação causada pela implantação dos grandes empreendimentos hidrelétricos, do agronegócio e da mineração. “A água tem um papel fundamental para a saúde. A pesca, o extrativismo, a produção pecuária dos povos do campo, das florestas e das águas depende da água, sem falar na importância da água para a cultura, as tradições, o lazer desses povos. À medida que elas vão sendo desterritorializadas e perdendo o acesso a essa água para dar espaço para a exploração do território pelo grande capital, isso leva a um sofrimento psíquico muito grande, à depressão, ao suicídio, à perda da soberania alimentar”, listou a professora da UFC. E completou: “Seus modos de vida contrastam radicalmente com a humilhação do consumo de cestas básicas como medida compensatória da instalação dos empreendimentos, que introduz um padrão alimentar exógeno, obesidade, diabetes, geração de lixo das embalagens, que não tem a ver com o processo de produção de alimentos que reintegrava o que era descartado no ciclo da natureza”.
Raquel destacou o exemplo do que acontece hoje na Chapada do Apodi, região de expansão da fruticultura irrigada no Ceará marcada por conflitos pela água entre comunidades e grandes empresas. “Ali houve o caso de uma empresa que furou uma enormidade de poços artesianos para extrair água diretamente do Aquífero de Jandaíra. O órgão gestor ambiental identificou esse abuso e condenou a empresa a oferecer água para as comunidades que ficaram sem água. Isso foi apresentado pela empresa como ‘olha como somos bonzinhos, façam fila para beber água’. Ou seja, a mesma empresa que desterritorializa, que explora as pessoas no trabalho, ainda faz as pessoas esperarem o dia inteiro debaixo de sol para receber um balde de água. É extremamente humilhante”, lamentou Raquel. No processo de implantação dos empreendimentos, continuou, famílias de agricultores que antes produziam de maneira autônoma acabam tendo que se proletarizar, vendendo sua força de trabalho para as grandes empresas do agronegócio. “Elas perdem a gestão sobre o seu tempo de vida, sobre sua jornada de trabalho, perdem a própria criatividade do que produzir e como produzir, e ainda são expostos a riscos como agrotóxicos, metais pesados, radioatividade. As pesquisas têm mostrado com fartura como grandes empreendimentos provocam deslocamentos, redes de exploração familiar, inclusive de crianças e adolescentes, tráfico de drogas em comunidades que antes não tinham problema, processos de acirramento da violência intensos”, afirmou.
Flávio Valente, da Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar (Fian Internacional), falou sobre como nos últimos 40 anos o grande capital transnacional passou cada vez mais a investir na compra de terras em todo o mundo como saída para recompor suas taxas de lucro diante da crise de acumulação capitalista. Um dos efeitos colaterais desse processo tem sido a expropriação de milhões de pessoas do acesso à terra e também à água, o que tem levado ao deslocamento forçado de grandes contingentes populacionais impossibilitados de manter seus modos de vida diante da disputa por recursos naturais com grandes empreendimentos do agronegócio, da mineração, etc., e da contaminação gerada por eles. Flavio citou o caso do Matopiba, imensa região de cerrado que abrange áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que nasceu de um projeto do governo brasileiro e hoje é visto como a próxima grande fronteira de expansão do agronegócio em nível mundial. “O Piauí está passando hoje por um processo de ocupação extensiva das chapadas, que estão todas desmatadas, de ponta a ponta. Grandes empresas como Cargill, Bunge, têm investimentos ali. Nas cabeceiras dos rios as empresas constroem poços de 400 metros de profundidade retirando milhões de litros de água do aquífero diretamente. Dezessete rios já sumiram na região”, alertou. Além disso, afirma, 377 escolas de nível fundamental foram fechadas desde 2014 nas regiões que são foco do interesse do grande capital do agronegócio. “E por quê? Porque essa é uma maneira de expulsar as famílias dali. Há uma ausência total do Estado, em uma espécie de complô com o capital privado”, afirmou Flávio.
Para a procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, o contexto das eleições no Brasil em 2018 coloca uma oportunidade de colocar em discussão esse modelo de desenvolvimento baseado nos grandes empreendimentos hidrelétricos, do agronegócio e da mineração. “A disputa pela água diz respeito a esse modelo que vem desde o princípio da nossa história, com o avanço sobre os territórios indígenas, a escravidão, as sesmarias, que foram causando o deslocamento da população excedente para as margens. É hora de recuperar as lutas das várias margens, seja no campo seja nas cidades, contra o centro oligárquico e contra as elites modernas”, ressaltou. Para ela, o Direito tem papel central nessas lutas. “Temos que partir para uma atuação mais agressiva, para responsabilizar os Estados e as grandes corporações pelos danos que causam ao conjunto das populações”, disse a procuradora, para quem o sistema do direito internacional começa a dar atenção a essas questões. “O Conselho de Direitos Humanos da ONU tem interpelado os Estados nacionais para que cobrem de suas empresas pelos danos que elas causam e pela geração de desigualdade e discriminação”, disse.
No México, enfrentamento contra reformas neoliberais
No período da tarde, foi a vez de representantes de movimentos do Brasil e de vários outros países trazerem suas experiências de organização e resistência no contexto de disputas pela água envolvendo empresas e governos. Coordenador nacional do movimento Agua para Todos, Agua para la Vida, do México, Ricardo Ramirez afirmou que a luta em seu país é contra as reformas de cunho neoliberal promovidas por sucessivos governos mexicanos. Ele explicou que a cada nova eleição, o governo que entra deve elaborar um documento chamado Programa Nacional Hídrico. O atual, com vigência entre 2014 e 2018, reconhece que há uma grave crise da água no México, e afirma que 70% dos corpos de água superficiais do país estão contaminados hoje. “O Estado reconhece a crise, mas diz que a solução é promover acordos público-privados para resolver. Mas a sociedade mexicana está resistindo”, disse Ramirez. Segundo ele, desde 2012 a Constituição mexicana reconhece que a água é um direito humano, princípio que deveria ter sido regulamentado até fevereiro de 2013, o que nunca aconteceu. “O governo mexicano segue insistindo em propostas que violam o direito humano à água, mas a mobilização dos cidadãos tem impedido. Agora há a iniciativa cidadã de uma lei geral de águas que vamos apresentar ao Estado”, afirmou Ramirez.
A atual lei de águas nacional, diz Ramirez, que deveria ter sido alterada em 2013, prevê uma autoridade única para a gestão da água no país através de uma comissão vinculada diretamente ao gabinete do presidente da República. “O que queremos é transformar isso. Queremos que as águas sejam manejadas pelos povos, que a gestão comunitária da água seja empoderada pela lei. Para isso precisamos nos organizar a partir da base”, informou. Segundo ele, várias comunidades no México operam um sistema de gestão comunitária da água, que nasceu na década de 1950 depois que a implantação de políticas hídricas equivocadas por vários governos levaram ao esgotamento de várias lagoas que abasteciam de água diversas localidades. “Toda a sabedoria indígena na gestão da água que havia antes dos espanhóis foi destruída, e o que fizeram os planificadores desde 1600? Transpor a água das lagoas para abastecer as cidades. Na minha comunidade havia uma lagoa há 100 anos, mas ela secou. Em 1950 foi perfurado o primeiro poço de extração de água por uma comunidade onde a água secou. Nós sabemos que na zona rural a administração da água sempre foi dessa forma”, argumentou Ramirez. Na década de 1990, no entanto, quando o México estava implantando políticas neoliberais, o Estado criou um sistema de concessões de exploração da água, criminalizando as comunidades que extraíam água sem autorização do governo. “É contra isso que estamos lutando: contra a invisibilização, o despojo, a criminalização. Poder popular é o que queremos”, destacou Ramirez.
Petorca, Chile: água para poucos
Luiz Soto, do Movimento em Defesa da Água, da Terra e da Proteção do Meio Ambiente (Modatima), relatou a história da origem do movimento, que atua na província de Petorca, no Chile. Segundo ele, no ano de 1980, durante a ditadura do general Augusto Pinochet, foi aprovado um Código de Águas que separou a posse da terra da posse da água que corre por baixo dela. “Isso faz com que haja gente com terra e sem água, e também gente que não tem terra mas que tem muita água”, afirmou Soto, que destacou que essa concepção, contraditoriamente, foi aprofundada pelos governos democráticos do Chile. “Esse código gerou uma apropriação privada da água, e foram os governos democráticos que venderam e privatizaram as águas municipais”, criticou. Na província de Petorca, disse, havia dois rios que secaram há cerca de 15 anos.
O problema começou segundo ele quando políticos, associados com empresas e investidores privados , começaram a comprar grandes quantidades de terra na província para produzir abacate. “Enquanto os políticos e empresários acumulavam água, as famílias camponesas foram ficando sem, ficaram impossibilitadas de produzir alimentos e de viver ali. Por isso criamos o Modatima, como estratégia de luta para visibilizar esse conflito, mobilizar as pessoas e trazer o conflito para a esfera do parlamento”, explicou Soto, que disse que a estratégia de procurar o Parlamento rendeu poucos frutos. “Fomos à Câmara dos Deputados conversar com a comissão de direitos humanos, mas até hoje a única coisa que conseguimos foi a criação de uma comissão permanente de recursos hídricos, secas e desertificação em 2012. Nada mais que isso”, lamentou.
A atuação do movimento fez ainda com que suas lideranças fossem perseguidas e criminalizadas, com um de seus membros tendo sido condenado a três anos de cadeia por ter chamado o ministro do interior chileno de “ladrão de água”. Vários membros sofreram também ameaças de morte, segundo Soto. A necessidade de dar uma resposta aos membros do movimento, permitindo que as famílias permanecessem ligadas à terra, segundo Soto, fez com que o movimento buscasse um caminho que permitisse o cultivo nas condições que existiam na província de Petorca. “A solução que encontramos foi o cultivo da quinoa, a partis das experiências ancestrais das comunidades do altiplano que cultivam a quinoa há sete mil anos”, disse. Para evitar atravessadores, foi criada uma cooperativa para a comercialização da produção. “Hoje temos uma produção que nos permite seguir ligados à terra, com esperança de seguirmos sendo camponeses”.
Água para o semiárido
Luciano Silveira, da Articulação do Semiárido (ASA), problematizou a maneira como o Estado brasileiro vem historicamente tratando do problema da seca no semiárido nordestino, principalmente a partir do início do século 20. “As soluções eram pensadas com um olhar a partir das limitações do território, que via o semiárido como inóspito e suas populações como flageladas, negando as capacidades locais. A resposta sempre foram as grandes obras hídricas que nunca responderam à demanda da população difusa e sim a das oligarquias e elites modernas. Existem hoje no semiárido o equivalente a 12 Baías de Guanabara de água armazenada, mas toda concentrada em açudes”, criticou Luciano. Segundo ele, para as populações sobravam as chamadas frentes de emergência. “A cada período de seca elas vinham de modo emergencial para responder ao problema da fome, botando as pessoas para trabalhar para as oligarquias que dominavam a região em condições de subordinação, de dependência no acesso à água e aos recursos”, lamentou. A transposição do rio São Francisco, alardeada como solução para a seca do semiárido, não mudou esse quadro, privilegiando grandes empresas do ramo da fruticultura, que produzem para exportação com uso intensivo de água e com agrotóxicos nos perímetros irrigados. Segundo Luciano, a vazão do São Francisco, que historicamente nunca havia estado abaixo de 1800 metros cúbicos por segundo, em locais chega hoje a apenas 550.
Diante da falta de respostas do governo, diz Luciano, as populações do semiárido passaram a se mobilizar para construir alternativas, explorando as potencialidades do meio e a capacidade humana local. “Os movimentos passaram a trabalhar a partir da crítica à ideia de combate à seca, em uma outra perspectiva voltada a entender o bioma a partir de suas potencialidades e da sabedoria do povo”, afirmou Luciano, complementado. “A caatinga estoca recursos, água e energia, para atravessar os períodos de seca, e em cima disso é que nascem algumas experiências muito ricas das organizações do semiárido, como o projeto de distribuir cisternas de placa para as famílias estocarem água”, explicou.
Foi a partir da mobilização das populações do semiárido que o projeto foi ganhando escala, até se transformar no programa um milhão de cisternas a partir do primeiro governo Lula, em parceria com a ASA. “Isso foi transformando a paisagem do semiárido, garantindo autonomia no acesso a água potável para milhares de famílias. A partir daí fomos fortalecendo a produção de alimentos, a esfera produtiva nos quintais, com as cisternas de enxurrada, barragens subterrâneas, tanques de pedra, algumas técnicas tradicionais das populações. Fortalecemos redes de produção de conhecimento, com o intercâmbio entre agricultores. Isso foi muito importante no processo de valorização do potencial do semiárido e do conhecimento dos seus povos”, destacou. Segundo Luciano, no ano de 1983, foi feito um levantamento sobre mortes no semiárido por conta da seca que chegou ao número de quase um milhão de mortos, a maioria bebês e crianças que morriam de disenteria por causa da água de má qualidade. “De um milhão de mortos em 1983, passamos para 1 milhão de famílias com água potável para beber”, comemorou.