Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Governo cede a empresariado e segura cortes no Sistema S

Prevista no pacote de medidas do ajuste fiscal, proposta de direcionar recursos das entidades do Sistema para a previdência ainda não foi enviada ao Congresso.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 08/10/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Tão logo foi anunciada pelo governo federal a intenção de editar medidas que reduzem recursos do Sistema S, as confederações e federações da indústria e do comércio se apressaram em repudiá-las e, rapidamente, acionaram parlamentares e ministros para tentar colocar um freio nas mudanças. A grita parece ter surtido efeito. As medidas que retiram recursos do Sesi, Sesc, Senai, entre outros, são as únicas que dependem de aprovação do Congresso e  ainda não não foram enviadas.

O Sistema S é financiado principalmente pela chamada contribuição compulsória, que é descontada das empresas nas guias de recolhimento do INSS. O que o governo chegou a anunciar — e parece estar voltando atrás — é o redirecionamento de parte do montante desta contribuição. As empresas passariam a pagar 0,9 % a mais para o INSS, mas deixariam de pagar 30% ao Sistema S. Embora as porcentagens sejam bastante diferentes, os recursos se equivaleriam em termos líquidos, ou seja, os empresários não desembolsariam um centavo a mais com a medida.  

O governo anunciou também mudanças na isenção dada a empresas que investem em inovação. Hoje, esta desoneração varia entre 60% e 80% e é descontada do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). A novidade está em repassar este desconto para o total que financia o Sistema S e não mais para os dois impostos.

As duas medidas juntas significariam uma redução de R$ 8 bilhões para o Sistema S. Mas, em contrapartida, a Previdência passaria a arrecadar mais R$ 6 bilhões e o governo federal, mais R$ 2 bilhões, por meio da mordida que deixaria de ser dada no Imposto de Renda e na CSLL. Durante o anúncio do pacote, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, classificou as medidas como uma parceria.  “Faremos parceria com Sistema ‘S’ para cobrir déficit previdenciário”, disse. Levy acrescentou que o custo da Previdência vai subir muito em 2016 e as receitas não vão crescer na mesma velocidade. 
 
Plantão no Planalto

O presidente da Confederação Nacional da Industria (CNI), Robson Braga de Andrade, visitou parlamentares e ministros para reclamar das medidas. Em entrevista coletiva durante visita ao Senado, ele previu fechamento de cursos gratuitos, caso a proposta do governo siga adiante com o corte de 30%.  “Ninguém quer deixar de atender 1,2 milhão de alunos e 1,5 milhão de trabalhadores, que é o que iria acontecer”, ameaçou, de acordo com matéria publicada no próprio site da Confederação. Segundo ele, a Confederação está dialogando com os ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comercio Exterior, e Casa Civil, para que a proposta sofra modificações.

Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, do dia 2 de outubro, Robson Braga disse na saída de um evento que a negociação com o governo está avançada.  A matéria afirma que a CNI fez uma contraproposta ao governo para que o setor produtivo assuma encargos previstos no orçamento federal no valor de R$ 5 bilhões, em troca de não haver corte no repasse da contribuição compulsória para o Sistema S. Procurada pelo Portal EPSJV, a assessoria de imprensa da CNI disse que a informação ainda não é oficial. A entidade também negou o pedido de entrevista feito pela reportagem alegando que preferia não falar neste momento de negociação. A Confederação Nacional do Comércio (CNC) também disse que não vai se manifestar sobre o assunto.

O Ministério da Fazenda também não confirmou se o governo desistiu da proposta anunciada ou se fará mudanças nas medidas. A assessoria de imprensa da pasta respondeu apenas que os detalhes da proposta só serão conhecidos quando a Medida Provisória sobre o tema for publicada no Diário Oficial, sem previsão de data. Já a Casa Civil, com quem a CNI está negociando, confirmou disse, por meio da assessoria de imprensa, que o ex-ministro Aloízio Mercadante se reuniu algumas vezes com o presidente da CNI, Robson de Andrade, mas ainda não há nada oficial sobre o assunto no ministério, agora a cargo de Jaques Wagner.

A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), responsável pelo Sesi e Senai, lançou uma campanha contra o redirecionamento dos recursos. Ao contrário da postura da CNI, que afirma estar negociando, as federações, especialmente a do Rio e a de São Paulo, Fiesp, têm assumido uma postura mais agressiva contra o anúncio do governo. A campanha da Firjan convoca a sociedade a subscrever um abaixo assinado contra as medidas e ressalta que “cerca de 30% do público dos cursos técnicos, de aprendizagem e de qualificação básica” vão deixar de ser atendidos, além da “suspensão da oferta de cursos de qualificação profissional nas 40 comunidades pacificadas por meio do Sesi Cidadania”.

Para o professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Jorge Alberto Rosa Ribeiro, trata-se de uma briga dura, especialmente se for levado em conta que este mesmo empresariado tem sustentado no plano nacional — tanto na oposição, quanto na situação — políticas de caráter neoliberal. “O governo tem legitimidade para direcionar parte das contribuições para a Previdência, o que não sabemos, e o que não dá para ter clareza, é o que isso representa dentro do ajuste fiscal, e o que representa para os trabalhadores. Por outro lado, o abaixo-assinado da Firjan os pronunciamentos contrários tornam mais evidente a completa falta de transparência do Sistema S”, afirma.

Ribeiro cita um ofício da Controladoria Geral da União (CGU) que, a pedido do Senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO), informa em dezembro de 2014, que a receita orçamentária das unidades do Sistema no ano passado foi de R$ 31 bilhões, meio bilhão a mais do que o rombo fiscal inicialmente projetado pelo governo para 2016. Ele destaca ainda a discrepância entre o que foi anunciado no âmbito do ajuste e o que isso representaria de perda para o Sistema S. “Estamos na frente de um iceberg e conhecemos apenas um pouquinho da ponta. Se a receita do Sistema foi de mais de R$ 31 bilhões em 2014 e em 2015 este orçamento fecharia em aproximadamente R$ 36 bilhões, e agora o governo anuncia 30% de corte das contribuições [dizendo que] isso representaria R$ 6 bilhões, esta conta não está fechando. Porque, com os valores acima, o corte de 30% representaria R$ 9 bilhões e não 6 bilhões”, questiona.

Recursos públicos para o Sistema S

A polêmica aumenta porque os recursos destinados ao Sistema S por meio da contribuição compulsória são considerados parafiscais. Isso significa que este dinheiro é considerado público, uma vez que é descontado em folha e as empresas acabam embutindo o custo nos produtos e serviços que oferecem ao consumidor. Assim, o entendimento é que a cobrança de cursos por entidades como Sesc, Senac, e Sesi, entre outras, significa que os trabalhadores estão pagando duas vezes.

Não por acaso, em 2009, por meio de um decreto, o governo federal firmou um acordo de gratuidade que obrigou as entidades do Sistema S a aumentarem gradativamente os cursos oferecidos sem custo. Criadas nos anos 1940, estas instituições foram pensadas originalmente como prestadoras de serviços gratuitos. Mas, a partir da década de 60, como não havia proibição para cobranças nos decretos que as criaram, elas, paulatinamente, começaram a estabelecer cobranças.

Segundo o professor Jorge Ribeiro, os dados sobre as matrículas no Sistema S não são claros e não dá para saber se as entidades cumpriram até 2014 as metas do acordo de gratuidade. Por isso, ele considera que a gritaria em torno das medidas do pacote de ajuste fiscal e a ameaça de fechamento de cursos, caso as propostas se concretizem, criam um telhado de vidro. “Essas entidades vão acabar morrendo pela boca”, sentencia. Ele explica que não faz sentido falar em fechamento de cursos com a diminuição dos recursos recebidos, porque o Sistema S já deveria estar oferecendo cursos gratuitos, até por força do acordo de gratuidade. “Dessa forma se evidencia a falta de transparência”, reforça.

Para Ribeiro, o TCU deveria fiscalizar se o acordo foi cumprido, mas o monitoramento não acontece como deveria e os dados são pouco acessíveis. Questionado sobre a fiscalização, o Tribunal enviou, via assessoria de imprensa, um acórdão de agosto de 2015 que demonstra as disponibilidades financeiras das entidades e os percentuais de gratuidade. As tabelas indicam que esses percentuais vêm sendo cumpridos. Entretanto, no mesmo acórdão, o TCU ressalta que os dados não foram fruto de diligência do Tribunal, mas sim enviados pelas próprias instituições, e que algumas entidades do Sistema não enviaram os dados demandados — esse é o caso da CNI, CNC, CNA, Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) do estado do Maranhão referentes ao exercício de 2013 e do estado de Roraima, referentes ao exercício de 2014. O acórdão foi gerado após requerimento da Presidência do Senado, provocada pelo senador Ataídes Oliveira.

O Ministério da Educação mantém na internet um Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica – o Sistec. Lá é possível consultar os números relativos ao acordo de gratuidade com o Sistema S. Entretanto, só estão disponíveis informações de 2009 a 2012. O site avisa que os dados ainda estão em processo de consolidação. O Ministério foi questionado sobre os dados indisponíveis e também perguntado se o Sistema S cumpriu o acordo, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Mais recursos via Pronatec

As contribuições compulsórias não são a única fonte de recursos do Sistema S, que é financiado também por meio de convênios com o governo. Em 2011, o governo federal criou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que articulou diversas ações de formação profissional já em curso e instituiu, como novidade, a Bolsa Formação para estudantes e trabalhadores se qualificarem em instituições públicas e privadas. A partir desse programa, o governo passou também a transferir grandes volumes de recursos para os serviços nacionais de aprendizagem.

De acordo com o Portal da Transparência, o governo federal transferiu às entidades do Sistema S, mais de R$ 2,5 bilhões em 2014. Quase a totalidade destes recursos – aproximadamente 99% – foi repassada via Ministério da Educação para custear as chamadas bolsas-formação no âmbito do Pronatec. De acordo com o MEC, a transferência é realizada para o departamento nacional das instituições, com base no valor hora-aluno fixado, e, depois, o valor é repassado aos departamentos regionais. Até agosto deste ano, já foram repassados mais de R$ 923 milhões. O Ministério informou que entre 2011 e 2015, os Serviços Nacionais de aprendizagem efetuaram 5,6 milhões de matrículas no Pronatec, sendo 2,6 milhões por meio do acordo de gratuidade celebrado com o governo a partir de 2009, e 3 milhões por meio do bolsa-formação, cujo custeio é feito através do repasse federal. . Assim, os Serviços Nacionais de Aprendizagem têm sido grandes beneficiários de recursos públicos também pela transferência direta do governo.

Para o professor Jorge Ribeiro, a sociedade está pagando de novo por algo que já deveria receber gratuitamente. “Não haveria sentido o governo se mobilizar e destinar recursos para o Sistema S atender esses alunos via Pronatec se o atendimento gratuito já é uma obrigação do Sistema”, reitera.

Para o senador Ataídes Oliveira, do PSDB de Tocantins, autor do livro ‘A caixa preta do Sistema S’, as federações e confederações empresariais estão fazendo terrorismo quando dizem que vão ter que fechar cursos. “Acho que isso é terrorismo de quem chora com barriga cheia. Não há risco de paralisação dos serviços do Sesi e do Senai. O ‘negócio’ deles é lucrativo demais e, paralisando suas atividades, não teriam como justificar a arrecadação de dinheiro público que os alimenta”, observa.

O senador critica também a aplicação de recursos que as entidades fazem no mercado financeiro. “O Sistema S mantém aplicado em bancos mais de R$ 18 bilhões. Ou seja: arrecada dinheiro público que deveria ser para prestar saúde, educação e lazer para os trabalhadores, mas deposita esse dinheiro em bancos, para especular e lucrar como poucos, e continua cobrando do trabalhador pelos cursos de qualificação que deveriam ser gratuitos”, reforça.

Até o momento, o governo não dá mostras de que se manterá firme na proposta. Outras medidas do ajuste e que afetam trabalhadores já foram enviadas e até aprovadas pelo Congresso, como as medidas que modificam os benefícios de seguro desemprego, seguro-defeso, auxílio-doença, pensão por morte e abono salarial. O Congresso já recebeu também a proposta de alteração no abono permanência dos servidores, além de medidas como a recriação da CPMF e o aumento do imposto de renda da pessoa física.  Jorge Ribeiro lembra ainda que um dos ministros de Dilma, o ex-senador Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), da pasta de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, foi ex-presidente da CNI. Para o professor, o anúncio das medidas trouxe ao menos um ponto positivo. “A longa história do Sistema S está sendo exposta. O Sistema que foi criado originalmente para atender os trabalhadores, não está atendendo efetivamente. Eu até coloco em xeque se atende efetivamente as necessidades das indústrias, se analisarmos o perfil de vários cursos que oferece. Está ficando nítido e claro que as contribuições compulsórias são recursos públicos, não são privados, não são das empresas, mas sim dos trabalhadores das empresas e foram tomados por essas grandes corporações, que retiraram qualquer possibilidade de presença efetiva de trabalhadores das suas gestões”, diz. E conclui: “Não era para ter cursos de cabeleireiros a valores estratosféricos. No Sebrae, por exemplo, apenas 4,6% das atividades são gratuitas”.